Kelly Garcia
Sobre esperança e as reformas recentes
do patrimônio histórico
*Ilustração é de autoria do artista visual cearense Vando Figueiredo
Ando esperançosa com as notícias de reformas. Mas, nem sempre fui desse jeito. Durante todo o processo de construção do livro Cidades Invisíveis, toda vez que eu via notícias de que algum lugar histórico seria fechado para reformas, eu já me decepcionava por antecipação. Imaginava que nunca mais veria o prédio em funcionamento. Das duas, uma: ou a reforma não seria concluída ou modificaria o imóvel de uma maneira irreversível, a ponto de deixar tudo desinteressante ou estragado.
No entanto, depois de ver como ficou linda a nova Estação das Artes, com tantos espaços culturais bem aproveitados, eu passei a ter esperança.
Há dez anos, a maior parte de todo aquele complexo era formada por galpões fechados em ruínas, praticamente. Tenho certeza, inclusive, que a maioria dos usuários do transporte ferroviário nem prestava atenção na beleza do prédio. Também, pudera. Ali era só uma estação central, muitas vezes, suja e lotada. Os espaços eram escuros.
Hoje, ao percorrer o Kuya – centro de design, a Estação das Artes, com tantas programações bacanas, o Museu Ferroviário e a Pinacoteca, só tenho muito é orgulho de terem transformado a minha velha estação João Felipe naquela lindeza. Valeu muito a pena.
A mesma impressão eu tenho da Ponte dos Ingleses. Se ocuparem bem os quiosques e tudo permanecer seguro e conservado, temos um mirante ainda melhor que o anterior. Isso porque o piso está mais seguro pra gente passear e põe ser de cimento, vai permanecer assim por muito mais tempo.
Além disso, a escultura La Femme Bateau, de Sérvulo Esmeraldo, lá no fim da parte inconclusa, quando anoitece, fica ainda mais charmosa iluminada.
Então, se anunciaram uma grande reforma para o Farol do Mucuripe, eu já quero começar a comemorar. Porque talvez assim eu possa mostrar aquela vista para os meus filhos.
Com aquela vista linda e uma revitalização, ali poderia ser até mesmo um polo gastronômico. Tem outros lugares do grande Mucuripe que já são, inclusive. Vide o exemplo do morro de Santa Terezinha, que tem uma muqueca de arraia deliciosa, dizem.
O Farol transformado em museu, com um mirante acessível e um polo gastronômico? Será se eu posso sonhar com isso? Ou é uma quimera? O tempo vai dizer.
Eu quero uma casa no campo
Quando criança, sonhava em ter uma casa com um quintal na parte da frente e roseiras. Em São Paulo, geralmente, os jardins tinham rosas, muro baixo e grades. Eu passava no caminho do metrô e ficava olhando, tentando decorar para desenhar e colocar na minha redação da volta das aulas, porque, a cada dois anos, passava as férias naquela cidade.
Por lá, nem na casa em que eu morei, nem nas que fiquei hospedada havia jardins, embora existisse espaço. A área da frente sempre era ampla, com chão de caquinhos, colocados pelo meu avô, mas empoeirada e suja. Nada de plantas. Era tudo sem cor e triste.
Em Caucaia, sempre morei em apartamento. No primeiro, em que vivi por 30 anos, minha mãe tinha algumas plantas na escada, assim como a minha vizinha. Depois que minha mãe foi embora, a vizinha cuidava do nosso pequeno jardim. Eu nunca tinha tempo, nem paciência, porque, desde que me formei, trabalhava em dois empregos. Nos fins de semana de folga, eu dormia o máximo que podia. Na semana, saía bem cedo e pouco olhava para as plantas porque geralmente não floriam. Eram folhagens, como espada-de-São-Jorge/comigo-ninguém-pode.
No meu período de sete anos sem trabalhar fora de casa, eu passei a comprar plantas com flores. Nunca sabia o nome das espécies, mas enchi a janela com elas, esperando as borboletas e os beija-flores. Mesmo com roseiras de várias cores, gérberas e cravos, nunca apareceu nada de insetos bonitos na minha janela. Só mesmo as cores e a alegria que eu cultivava devagarinho. Em vez de me preocupar com o futuro, que, para mim, não parecia existir, eu observava as flores e guardava os novos botões dentro dos livros. Me alegrava com a nova roseira amarela, as flores branquinhas do pé de manjericão. E fotografava meus livros entre elas.
A falta de sol do novo apartamento matou todas as roseiras. Tentei cultivar cactos e eles mofaram. Para compensar, o condomínio tinha um jardim lindo. As borboletas, assim como as mariposas e vários insetos diferentes sempre apareciam para me visitar, mesmo eu não tendo plantas e morando no quarto andar.
Recentemente, eu pedi para a minha mãe algumas mudas para tentar um novo jardim na janela. Todas morreram e eu desisti por um tempo.
Vai ficar para quando eu tiver a minha casa dos sonhos no campo, muito provavelmente, na zona rural de Jijoca de Jericoacoara, terra dos meus parentes do lado paterno. Por lá, talvez eu encontre uma nova profissão, possa cultivar flores de outros tipos, fruteiras para atrair os passarinhos.
Poderia ser pequena, com alpendre e varanda, para armar uma rede. Com poucos móveis, muitos livros, uns artesanatos para deixar tudo com o meu jeitinho. Uma mesa que tenha uma vista para a lagoa ou um dos rios que banham aquele lugar privilegiado. De prioridades, apenas um notebook, um caderno e um jeito de escutar música.
Uma casa no campo, onde eu possa criar minhas histórias e para onde eu possa voltar dos meus passeios, um pouso acolhedor e seguro. Olhando para esse horizonte, eu consigo prosseguir nessa rotina caótica de hoje. Ainda não esqueci do versículo bíblico: Quero trazer à memória aquilo que me dá esperança.
Obra é de autoria do artista plástico autodidata cearense Demeilson Ferreira. Desenhista e pintor, tem obras em vários estados brasileiros e países como França, Portugal, Canadá e Estados Unidos.
A minha estação João Felipe
É entre lágrimas que escrevo essa crônica. Não sei se pela trilha sonora, do concerto número 2 para piano do Sergei Rachmaninoff ou mesmo da dor que eu reavivei por lembrar que minha Estação João Felipe não existe mais. Não com seu uso de antes.
Passei por ela faz uns quinze dias e, cercada de tapumes, ela estava sem o telhado. Senti essa dor fina quando soube que o trem tinha feito sua última viagem até lá, há alguns anos, quando anunciaram que teria outro uso, como um grande equipamento cultural.
Assim como para muitos cearenses, que viriam a ser ilustres ou não, a centenária Estação Ferroviária João Felipe foi minha porta de entrada para Fortaleza. Como já disse aqui, eu sempre morei na Região Metropolitana, no município de Caucaia. Meu destino, por mais de 20 anos, foi a última parada antes do fim da linha na Caucaia, a estação Araturi.
Daria para vir pra Fortaleza de ônibus? Sim. Mas não foi essa a escolha da minha turma de amigos. Acredito que até hoje o trem seja bem mais barato que o ônibus. Nos meus tempos de adolescente, o preço chegava a ser três vezes menor. E assim, numa tarde de não sei qual dia da semana, eu viajei sem meus pais de trem para comprar folhagens para os arranjos florais que eu estava aprendendo a fazer. Fui até a também centenária Cadeia Pública de Fortaleza, onde funciona a Encetur, melhor lugar para encontrar esse tipo de produto. Esse belo lugar também fazia parte das minhas idas ao Cine São Luiz, tempos depois, porque a mãe de um dos integrantes da minha turma de amigos trabalhava lá.
Em 1996, os trens não tinham ar condicionado, obviamente. O projeto do Metrofor só seria anunciado no ano seguinte. Os trens tinham vagões ainda dos anos 1970. Muitas portas não fechavam mais. Outras, sequer existiam, o que facilitava a entrada das temidas pedras, arremessadas por crianças e adolescentes que moravam próximos dos trilhos.
Nessa época, uma legião de pessoas usava o trem para garantir o sustento. Pedintes de todas as idades, vendedores de jujubas, pastilhas, bulins e até de pomadas medicinais dividiam espaço com a multidão de usuários do transporte público, além de pregadores do Evangelho de várias denominações e alguns artistas populares.
Os principais artistas eram dois deficientes visuais, que atuavam separadamente. Uma mulher que tocava flauta. O outro, um homem que cantava, tocava gaita e pandeiro. Ambos estavam sempre atualizados dos sucessos do momento, mas também utilizavam muito o Roberto Carlos no seu repertório. Depois que esse tipo de show foi proibido nos trens, os dois migraram para os ônibus. Os que eu usava, principalmente. E de certa forma ainda fizeram parte do meu cotidiano por vários anos, como se fosse para que eu não me esquecesse disso.
Nos meus tempos de escola, quando estudei no Colégio 7 de Setembro, só usava o trem para o lazer. O ônibus me dava mais conforto porque me deixava na porta e tinha um intervalo menor entre as viagens, o que evitava atrasos. Já na faculdade e, depois, como repórter, o trem foi o meu principal meio de transporte. Meu primeiro estágio era quase vizinho à antiga estação, na Delegacia do Trabalho. Foram talvez mais de dez anos de viagens diárias.
Eu conseguia enxergar a magia diferente que tinha aquela Estação. Para a maioria das pessoas, o desconforto era o ponto principal. Tenho certeza de que a maioria só escolhia o trem por ser mais barato. Quem andou de trem por aqui certamente não se esquece de ser praticamente vomitado pela multidão para dentro do vagão assim que as portas se abriam e nem da corrida em busca de um lugar nos bancos desbotados, seguida de uns sorrisos moleques de alívio, ao finalmente conseguir sentar, para quem era rápido o suficiente, claro.
Entretanto, nas longas esperas de 40 ou 50 minutos de quando eu perdia o trem pra casa, eu me perdia em mim e nas divagações de como aquilo tudo era 50 anos antes ou mesmo em tempos mais antigos. A Estação foi fundada ainda no Império, em 1880. São 140 anos de histórias passadas naqueles assoalhos vermelhos, que devem ter tido outras cores e desenhos, claro.
Embalada pela MPB das tardes da Rádio Tempo, que era transmitida pelos autofalantes da velha estação, eu percebia que estava sim na atualidade. Mas, bastava olhar ao redor para me transportar para os tempos em que a velha estação recebia os trens do interior. A inspiração vinha ligeira em alguns fins de tarde, bastava olhar ao redor, no rumo de casa ou mesmo para os galpões desativados. Quantos encontros e desencontros aquela estação teria presenciado? E despedidas? Foi por lá que milhares retirantes chegavam nos anos de seca para os Campos de Trabalho. Uma tristeza ter lido isso.
Ao iniciar minha trajetória como repórter, uma das minhas primeiras matérias assinadas foi sobre esse trajeto longo, cheio de personagens pitorescos, entre a Vila das Flores, em Maracanaú e Caucaia, com a Estação João Felipe no centro do percurso. Isso faz mais de 15 anos, mas lembro bem de ficar atenta igual a menino pequeno, olhando pela janela para apreciar cada detalhe das paisagens nunca vistas antes para aqueles lados da cidade. Afinal, eu só conhecia do Centro para Caucaia. Nunca tinha ido para o outro extremo da linha. O fotógrafo que me acompanhou, o Tuno Vieira, muito experiente, registrou tudo e chegou, bem enfadado como eu na redação em pleno sábado, depois de uma manhã inteira andando de trem. O trajeto completo demorava mais de duas horas. Imagine o tempo que seria gasto de ônibus, com tantos engarrafamentos pela cidade?
No sacolejar do trem nessa década de uso, me rendeu muitas leituras. Até hoje, não entendo o porquê da velocidade maior da leitura e menos enjoo ao ler nesse ambiente tão barulhento. Só interrompi minhas viagens ferroviárias ao ser finalmente atingida por uma pedrada, nos anos 2000. Os trens já tinham vagões mais novos, a administração era do Metrofor, mas as portas abertas continuavam permitindo esse tipo de acidente. O impacto da pedra foi na minha aliança, que ficou marcada e o meu dedo anelar, ferido. Isso protegeu minha filha mais velha, de dois anos, que viajava comigo. Livramento que até hoje agradeço a Deus.
Depois que a estação mudou para o espaço vizinho ao Cemitério São João Batista, perdi ainda mais o gosto pelo transporte. Desde esse tempo, estou de luto pelo fim da minha estação. Tem uns seis anos que iniciaram essa obra, que transformará o prédio centenário em um importante equipamento cultural, com museu, biblioteca, pinacoteca e muitas outras novidades, se integrando até mesmo com os prédios do Panorama Artesanal, de onde avistei o meu primeiro Pôr-do-Sol no mar, em 1996. Não creio que uma obra tão grandiosa fique pronta tão cedo. A certeza que eu tenho é que a Estação João Felipe virou mais um trecho das cidades invisíveis. Isso porque por mais que a restaurem, nunca mais o trem chegará apitando por lá, nem se descerá por aquelas rampas ou compraremos seus bilhetes. Passou essa era.
*A Estação das Artes foi inaugurada em 30 de março de 2022, quase um ano depois da publicação desse livro.
A beleza do amanhecer
*A gravura em monotipia “Janela ao Espaço” é de autoria do artista plástico autodidata cearense João Paulo José da Silva. Historiador, trabalha com as linguagens artísticas da xilogravura, monotipia, pintura e escultura em madeira. No Instagram, publica no perfil @jp.artesubjetiva
Quantas vezes eu pude contemplar o nascer do Sol? Como foram poucas, consigo lembrar da maioria. Não costumo acordar de madrugada. Quando posso, desperto tarde mesmo. Amo dormir. Então, não é algo costumeiro, mas especial.
Fechando os olhos, eu me recordo da época em que o amanhecer pintava o céu de roxo com vermelho escuro e parecia que o mundo estava se acabando. Eram os tempos do confinamento da pandemia e eu chamava meu caçula para ver aquela belezura comigo. Pena que era só a poluição que mudava as cores.
Mais de uma década antes, eu via o sol nascendo já chegando no bairro Antônio Bezerra, quando o horário de verão era aplicado aqui no Ceará. Isso aconteceu pouquíssimas vezes. Nessa época, aprendi a acordar ainda de noite. Eu era adolescente e só Deus sabe o sacrifício que eu fazia para me manter de pé. Um banho bem gelado era indispensável para isso. No entanto, bastava eu encostar no ombro do meu pai dentro do ônibus da Empresa Vitória indo para a escola, que logo eu dormia de novo.
Em São Paulo, poucos dias depois da virada do milênio, passei uma madrugada inteira conversando com o vizinho da minha prima sobre todo tipo de assunto. Era a véspera de eu voltar pra casa de uma viagem de dois meses. Essa longa conversa, temperada com alguns beijos, mudou tudo o que eu tinha decidido para a volta e atrasou por mais de um ano que eu reatasse com um dos meus amores mais duradouros. Nunca mais soube dessa criatura. Como teria sido a minha vida se em vez de eu conversar com ele, eu tivesse virado a cara? Não tenho ideia.
Com outro, porque eu estranhei a casa diferente, eu vi o sol nascer três vezes. A janela daquele quarto ficava de frente para o sol e não tinha cortina. Tentei dormir de rede e o sol esquentou o meu rosto. Ele acordava antes dos passarinhos e vinha me chamar com um monte de cheiro no cangote para tomar café. Por causa disso, via todas as cores das nuvens, sempre diferentes. Acordava suspirando, cheia de arrepios. O sorriso largo.
Com meus meninos recém-nascidos, o meu cansaço era tão grande que, quando o sol aparecia antes de eles finalmente dormirem, eu não conseguia ter paciência para contemplar nada. Às vezes, a vontade era correr doida. O zumbido no ouvido era um dos sinais mais pesados dessa exaustão.
No entanto, o meu amanhecer mais marcante ainda continua sendo o do dia mais feliz que eu tive até hoje, quando vi o sol nascendo por trás da finada duna do por-do-sol, em Jeri, enquanto a lua se punha no mar.
Quantas auroras eu ainda terei para contemplar? Eu continuo dividida entre acordar cedo e dormir até cansar. Mas vamos com calma. Ainda tenho uma lista de coisas legais para fazer pela primeira vez. Amanhecer de novo de frente para o mar, hospedada ou acampando, é uma delas. E vamos em frente.
O consolo das borboletas
*A arte é de autoria da ilustradora autodidata cearense Luciana Braga. Professora, pesquisadora, escritora e desenhista. Autora e ilustradora do livro Escrita Infinita. Suas páginas no instagram são @luciana_braga7 e @escrita.infinita
Tenho dormido pouco. Comemoro quando consigo adormecer por mais de cinco horas seguidas. A sensação ao abrir os olhos não é de energia, nem de disposição. Parece que fui atropelada por um caminhão. Não, eu não tenho insônia.
Olho o celular ao lado, que me acordou, checo o horário. Sento na cama, olho para o meu filho mais novo que dorme comigo. Tenho 20 minutos para me arrumar e colocar ele para ir para a escola. Amarro o cabelo, chamo o menino. Cada um vai se ajeitando em um quarto.
Começo aquele check-list: escovou os dentes? penteou o cabelo? passou perfume? calçou o sapato? colocou a roupa e o lanche na bolsa?
Olhamos para a janela, as plantas estão murchando. Pena que eu não tenho a mão boa para a jardinagem que nem minha mãe. No apartamento em frente, uma gata siamesa exibe a barriga sedutora no meio das roupas penduradas na grade. A gente se pergunta: será se o gato da vizinha de baixo já notou essa possível namorada?
Saímos correndo, tomamos café no caminho. Ao deixar meu filho mais novo na escola, eu me pergunto se essa escuridão vai ter fim. Parece que estou no meio de uma tempestade de novo. As calmarias são raras.
Me afogo em lágrimas, a raiva me toma. Bebo água na escola em que ele estuda, me acalmo, sigo para a passarela imunda, atravesso a rodovia. Nos fones, Gal Costa me diz que a pele do futuro, cicatrizada, será imune ao corte e à lâmina do tempo. Aguardo isso há meses. Parece que essa ferida não sara. Continuo em carne viva.
Sigo tentando me acalmar enquanto um rio corre pelos meus olhos. Chego no Centro. Mais um ônibus me leva para o destino final. Talvez os passageiros tenham se assustado com meu rosto vermelho e molhado. Lembro dos olhos assustados que cruzaram com os meus enquanto eu atravessava o vão para a porta do transporte.
Desço e noto a mesma borboleta monarca de ontem de manhã que, tranquila, beijava as flores do flamboyant do discreto jardim da repartição. Ela também estava por aqui na tarde de ontem. Outra borboleta dessas atravessou a rodovia comigo outro dia e mais uma descansava na tela da passarela, enquanto eu andava rápido, perdida em pensamentos.
Se eu não tivesse acompanhado a metamorfose de cinco borboletas dessas na minha casa, talvez isso passasse despercebido. Vou interpretar como mais um consolo nesse caminho dolorido dos últimos tempos.
Antes de voarem, elas ficam no casulo escuro por mais de uma semana. Para saírem do casulo, sangram. Então, um dia, isso passa. Tudo é vário, temporário, efêmero, como disse Chico Buarque. Não há dor que dure para sempre.
Os atropelos e descompassos dos namorados
para além do mês de junho
*A xilogravura é de autoria do artista plástico autodidata cearense João Paulo José da Silva. Historiador, trabalha com as linguagens artísticas da xilogravura, monotipia, pintura e escultura em madeira. No Instagram, publica no perfil @jp.artesubjetiva
Junho sempre foi um mês que trouxe muitos eventos. Além das festas juninas, eram dois aniversários para comemorar, o da minha mãe e o do meu irmão. O Dia dos Namorados também era uma espécie de acontecimento dos grandes. Especialmente na adolescência, quando as comparações e os hormônios deixam tudo mais dramático.
Quando eu mudei de escola para uma maior, nesse dia era uma profusão de buquês de flores, chocolates e presentes entregues no horário da aula. Uma vez, tinha até um trio de violinos esperando na porta do colégio. O povo caprichava mesmo para surpreender as namoradas.
Por essa época, eu praticamente só namorei uma pessoa e compartilhávamos a liseira e o fato de não sermos herdeiros. Então, a simplicidade era a nossa marca. Eram cartas manuscritas, poesias, desenhos, flores arrancadas dos jardins dos outros e bijuteiras minimalistas. Eu achava fofo.
Depois, ainda tive uma ida ao cinema escondido, com direito a gazear aula, porque meu pai não me deixava namorar. (Eita, agora ele ficou sabendo…). A árvore na frente da escola era nosso local de encontro, antes da aula. Além do porteiro da escola, todos os motoristas e passageiros dos ônibus que passavam na movimentada Avenida do Imperador, no Centro, no horário do almoço, eram nossas testemunhas. Não sei como não recebi uma advertência e nem meu pai chegou a descobrir.
Aos quinze anos, a curiosidade para saber quando eu iria me casar fez com que eu copiasse as mocinhas de outros tempos e arrancasse um fio de cabelo, pegasse uma aliança emprestada e testasse a simpatia de vidência numa fogueira de São João. Compartilhamos a experiência, eu e a minha melhor amiga.
Era só amarrar o fio de cabelo de uma moça em uma aliança benta e colocar em um copo com dois dedos de água em cima da fogueira de São João. Quantas vezes a aliança batesse na borda eram os anos que faltavam para o casamento.
Arrancamos um fio de cabelo nosso, pedimos a aliança da avó dela emprestada e seguimos para a fogueira. Descobrimos quantos anos faltava e deixamos pra lá. E, para nossa surpresa, tudo saiu conforme São João tinha revelado.
Mais adiante, não no mês de junho, eu levei uma queda e caí na lama por pegar uma carona na bike do namorado até a parada do ônibus. Era domingo e as pessoas saíram das suas casas para ajudar a gente a levantar e perguntar se tínhamos nos machucado. Nunca esqueci essa vergonha.
Outra peculiaridade eram os nossos locais de encontro. Aos poucos, deixaram de capinar o mato ao redor da calçada e, ao atravessar para o abraço cotidiano antes de ir para casa, sempre levava comigo nas barras das calças da farda um monte de carrapichos.
Transcorridos tantos anos, essas lembranças me arrancam alguns sorrisos. Parece que tem coisas que a gente vivencia para poder ter o que contar ou mesmo para rir nos momentos tristes. Eu ainda acredito que o amor continua belo, leve e divertido, não importa quanto tempo passe.
Memórias prévias de um cobrador pensante
ou o primeiro livro que eu ganhei de presente
O ano era 1998. Há dois anos, eu era aluna de um dos cinco colégios que mais aprovava no Vestibular. Era muito sozinha. Na hora do recreio, em vez de papear com os amigos, eu preferia ficar na biblioteca da escola, até porque não podíamos levar os livros do acervo para casa. Eu não tinha ficha em biblioteca nenhuma e os livros da minha casa eram enciclopédias. Ler era uma das minhas poucas diversões.
Sobre Machado de Assis, eu já tinha ouvido falar. Muita gente dizia que era difícil, arrastado. O primeiro livro paradidático daquele ano era dele, Helena. Eu achei super chato, a protagonista insossa. Naquela época, já gostava mais dos naturalistas. Amava o Cortiço, por exemplo. E gostava muito do Paulo Coelho, o queridinho dos meus amigos de outras escolas.
Desde o início do ano, por causa do horário, eu sempre pegava o mesmo ônibus na ida e na volta para a escola. Na ida, no expresso das 6h10, eu passava a viagem dormindo no ombro do meu pai. Na volta, umas 12h30, sempre era a mesma turma esfomeada de adolescentes. Eu, Wellington e Raphael éramos colegas na escola anterior. Estávamos sempre juntos, embora eu estudasse em uma escola e eles dois, em outra. O cobrador fez amizade com a gente. O nome dele era Luís Antônio.
Apesar de trabalhar há muitos anos como cobrador da Empresa Vitória, Luís queria ter feito Letras. No entanto, quando tentou o vestibular a primeira vez, não passou e desistiu. Teve que começar a trabalhar e o sonho ficou esquecido. No entanto, sempre tentava ler em casa e tinha ficha na Biblioteca Pública.
Aos quase 30 anos, amava Machado de Assis e vários outros autores clássicos, como José de Alencar e Eça de Queiroz. O realismo era o seu período preferido na Literatura. Como só eu gostava de ler, ele falava mais desses assuntos comigo.
Comendo uma pipoca de isopor, a gente discutia sobre os livros preferidos, no percurso entre o Centro de Fortaleza e o Araturi, em Caucaia. Eu gostava de A viuvinha e Cinco Minutos, do José de Alencar, que li por conta própria e do Guarani, que a escola mandou ler. Já conhecia Dom Casmurro, que pedi emprestado a um amigo.
Ao falar isso para ele, ele logo falou: já sei o que eu vou te dar de presente de 15 anos! Um livro ainda melhor, que é o meu preferido dele: Memórias Póstumas de Brás Cubas. Você vai gostar muito. Não desanime se você achar alguma coisa difícil nele, apenas continue.
Então, numa noite de sábado, o Luís Antônio me entregou o Memórias Póstumas de Brás Cubas embalado num papel de presente. Foi o primeiro livro que eu ganhei de um amigo. Antes desse, eu tinha recebido uns paradidáticos de uns primos distantes de São Paulo.
A edição simples, talvez de sebo, da Editora Ática, com uma capa nada a ver, trazia estampada um cara morto de barba grande e derretendo em cores. A maioria dos clássicos paradidáticos daquele tempo tinha umas capas bem ruins.
Lembro que, com o meu repertório fraco daquela época, eu precisei reler para entender. Depois de mais de 20 anos, só lembro que das muitas conversas com o leitor, o que é uma característica do autor que eu amo, ironia e a frase que abre o livro.
O Luís Antônio, nunca mais eu vi, embora tenha me acompanhado ainda o Ensino Médio inteiro e o início da faculdade, no mesmo horário de ônibus. Além das conversas sobre Literatura, a gente também falava sobre religião. Eu, muito católica e ele, sem religião definida, sempre questionava minhas crenças. Em alguns dias, eu ficava com raiva. Em outros, ele me colocava para pensar.
O livro, eu devo ter emprestado para alguém e nunca mais voltou. Esse tipo de erro eu aprendi a não cometer mais.
Nesse mês, uma moça americana disse que esse livro do Machado era o melhor já escrito. Isso fez com que a obra disparasse nas vendas em toda a América e também no Brasil. Só tem entrega para meados de junho, eu conferi. Isso me fez recordar que eu tinha prometido reler, que nem fiz com o Dom Casmurro e Helena, dois dos livros mais fantásticos que já reli na vida depois dos 30 anos.
Vou tratar de colocar no meu kindle. Também fiquei curiosa em saber como está o Luís Antônio. Sua casinha na Jurema continua no mesmo lugar. No entanto, nem tem mais cobrador nos ônibus. Tomara que ele esteja bem e ainda goste de ler. Qualquer dia, eu bato no portão dele e agradeço pelo livro de novo.
O Velho Farol do Mucuripe
*Esse texto faz parte do livro Cidades Invisíveis, publicado pela autora em 2021 e que permanece à venda por meio do instagram @eukellygarcia. Ilustração foi feita especialmente para a obra pelo artista plástico cearense Vando Figueiredo.
Qual a serventia de um farol? Não seria para orientar os marinheiros sobre a posição da costa? Eu conheço um que se tornou praticamente invisível depois que se tornou obsoleto, o Farol Velho do Mucuripe, em Fortaleza. Hoje, ele não passa de um monte de ruínas em que dormem muitas lembranças de namorados que aproveitaram a sua vista para fazer juras de amor, acredito eu. Depois de ter sido condenado pela Defesa Civil e ter desmoronado a sua cúpula, a Secretaria de Turismo do Estado prometeu um restauro para breve. Foi feito um escoramento e a comunidade que ali reside também não deverá mais sair dali. Haviam planejado uma desapropriação, mas desistiram, para alegria de quem mora ali, com uma das vistas mais lindas da cidade.
Esses dias, fui pesquisar mais sobre os chamados “olhos do mar”, na visão poética do cantor Ednardo e descobri que temos algo em comum, assim como ocorreu com o navio Mara Hope. Em 1983, quando nasci, ocorreu o seu tombamento histórico. O Farol Velho é a segunda edificação mais antiga da cidade ainda de pé. Perde apenas para a Igreja do Rosário.
Estive por lá em 2012, logo quando comecei a ser repórter de rua pela segunda vez. Sonhava em ver de perto aquele prédio. Mesmo sabendo que estava bem deteriorado, até porque era uma matéria de denúncia. Mesmo sabendo que era extremamente perigoso. Eu sabia que aquela era uma oportunidade única. Talvez nunca mais pisasse naquela área da cidade.
Quando fui lá, fiquei tão impressionada com a estrutura que cheguei em casa ainda matutando. Um prédio de 1846 viu toda aquela região ficar totalmente outra. Possivelmente, fosse só areia e coqueiros ao redor daquele Farol por muito tempo. Na inauguração, era a época ainda do império. Passou boa parte do Segundo Reinado, atravessou muitos mandatos de presidentes e funcionou até 1957, quando foi construído outro, mais moderno, em uma região mais alta.
Em 2017, esse outro deixou de ser usado e construíram um ainda maior. O sexto maior do mundo. Um colosso.
Naquele 2012, eu ainda sonhava que poderia levar meu filho para se admirar com aquela vista e aquela arquitetura. Cheguei toda empolgada pra mostrar uma foto e ele desenhou um parecido. Tinha só 4 anos. O desenho deixei no meu Facebook.
Cá estou eu, muitos anos depois sem nenhuma esperança de ver de novo o farol velho. Naquele tempo, ainda não existiam as facções e tivemos que ir com a polícia. Há alguns anos, ele perdeu a cúpula e algumas partes desmoronaram, por conta da ação do tempo. Implacável. O afeto que a população do Titanzinho tem por aquele lugar fez com que guardassem o que o tempo tombou, assim como as lembranças de antigas brincadeiras, de amores e segredos.
Para mim, virou cidade invisível. Ainda bem que há fotos. Pinturas. E que pude guardar, aqui dentro, sua vista.
Mais um casarão
que irá ruir
A ilustração é de autoria do artista plástico autodidata cearense Raony Rodrigues Bernardo. Arquiteto e Urbanista, aquarelista, integrante do grupo Urban Sketchers Fortaleza, amante da vida e de tudo o que a ponta do seu lápis consegue desenhar. Suas páginas no instagram são @raony_rb e @bernardoatelie
Quando eu lancei o financiamento coletivo do livro Cidades Invisíveis, há pouco mais de três anos, eu intuía que Fortaleza poderia ter mais perdas em seu patrimônio histórico entre eu concluir o livro e ele ser publicado. Aqui, não se valoriza a história. Fato. No entanto, não imaginava que teria tanto a ser atualizado, inclusive com os locais que eu falei nas crônicas.
Estamos na terceira tiragem e o Mara Hope teve um pedaço afundado, o Edifício São Pedro está em plena demolição. A Ponte Velha quase foi botada abaixo e caiu uma pedra dela em cima da cabeça de um motoqueiro que quase o matou.
Do Farol Velho do Mucuripe, caiu a parte de cima e os vizinhos levaram pra casa para guardar melhor o pedaço do patrimônio histórico. A Ponte dos Ingleses nem sinal de conclusão da reforma. Já tem sete anos que teve início.
Esses locais estão no meu livro. Mas tem outros que não entraram e eu poderia fazer outra edição contando deles. O Casarão das Pianistas Gondim, na rua General Sampaio, edificação dos anos 1920, mesmo em processo de tombamento, foi demolido e virou terreno para ampliar o estacionamento que já existia.
O bangalô dos Jereissati sumiu e no seu lugar está sendo construído o maior prédio de Fortaleza, onde os carros poderão subir de elevador, que luxo! Eu acho muito é brega, vou nem mentir… Isso até que outro mais alto se erga, porque agora é só pagar uma taxa que em Fortaleza se pode construir do tamanho que quiser.
Tem locais que permanecem fechados e sem uso, sabe-se lá até quando. A Associação dos Merceeiros, o Hotel Excelsior, o antigo restaurante L’Escale. O sobrado que abrigava o Chopp do Bixiga, pertinho do Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura, foi fechado de tijolos e deve ser derrubado em breve. Será que os vizinhos também? Nas ruas do entorno, outros sobrados também seguem desocupados. Muitos edifícios novos estão sendo construídos. Dá para ter vista pro mar. Quantos resistirão nos próximos dez anos nessa região da Praia de Iracema?
Anunciaram que não dá mais para restaurar o Casarão da Santa Casa, na praça do Liceu. Um dos primeiros bangalôs construídos por Emilio Hinko. Está escorado, com tapumes. Várias plantas nasceram nas brechas. Ali, com seu design hoje ultrapassado, ideia do arquiteto que mais modificou a capital cearense, resiste há quase cem anos. Ninguém sabe quando foi construído. Talvez nos anos 1930, que o Hinko chegou em Fortaleza em 1929. Dizem que foi uma das primeiras obras assinadas por ele.
Quantas famílias moraram ali? Quantos casos de amor e desamor se desenrolaram no tempo que o Bar do Fabiano ocupava o térreo? E as amizades dos tempos da escola, as fugas do Liceu, os copos de bebida. Quantos adolescentes terão tomado seus primeiros goles escondidos ali naquele lugar? Será que alguém se agarrou no andar de cima? Terá funcionado alguma pensão alegre? Mas se era da Santa Casa, devia ser lugar de família… Porém, alguém deve ter beijado na boca dentro e fora daquele bar. Suas paredes devem ter algumas boas histórias a serem contadas.
Como ninguém que tenha poder suficiente se importa com patrimônio histórico, logo, logo, vira poeira e entulho. E em seu lugar nascerá, muito provavelmente, algum prédio de apartamentos. Quadrado, sem nada demais. Aquela área nem é tão valorizada. Foi-se o tempo da Jacarecanga e não é de hoje. Fica só a dor e a lembrança de quem gostava daquele lugar.
Dia das Mães no tempo da
Telemar e da Teleceará
*A linoleogravura “Nossa Senhora” é de autoria do artista plástico autodidata cearense João Paulo José da Silva. Historiador, trabalha com as linguagens artísticas da xilogravura, monotipia, pintura e escultura em madeira. No Instagram, publicada no erfil @jp.artesubjetiva
Domingo das Mães nos tempos da pandemia. Sua mãe mora longe. Como não deixar o seu dia especial passar em branco? Muito fácil! Era só encomendar uma serenata, mandar ir deixar na casa dela um almoço especial e um buquê de rosas. Fazer um delivery de presente. Tudo isso, se você tivesse dinheiro, era facinho de encomendar pelas redes sociais, ao alcance de um botão, com um pix. Depois, uma chamada de vídeo pelo WhatsApp. Pronto!
Agora, então, a coisa mais simples é abraçar pessoalmente. Não temos mais restrições sanitárias de nenhum tipo, embora as mudanças climáticas estejam cada vez mais destruidoras e isso pode impedir o reencontro, a depender do lugar.
Volte 30 anos. Sua mãe mora em outro Estado. Você, com dois filhos pequenos, sai em busca do único posto da Teleceará no seu bairro que faz interurbano. É um pouco longe da sua casa, mas como é Dia das Mães, você vai assim mesmo. Para sua sorte, sua mãe faz parte do grupo privilegiado de pessoas que têm uma linha telefônica em casa. Consigo lembrar até do número: 578-7856. Que coisa doida é a memória da gente!
A mãe com duas crianças é a minha. As crianças, eu e o meu irmão. Ele, nesse tempo, ainda nem andava direito.
Lembro que o posto da Teleceará ficava em um apartamento na parte mais alta do Araturi. Era caro e tinha fila. A gente sempre ia uma vez no mês e nas datas comemorativas. Talvez fosse algo como 30 reais por 5 minutos. Não sei direito.
Já para o meu pai falar com a minha avó, era só pessoalmente, quando ia na sua casa, no Córrego do Urubu, em Jijoca de Jeri. Para compensar, os filhos de Fortaleza sempre se juntavam para dar um bom presente. Quando chegou a energia, em 1993, compraram uma geladeira, um fogão e um liquidificador. Até pensaram em comprar uma televisão também, mas meu avô não quis. Ele cansava de dizer que enquanto ele fosse vivo, não ia ter televisão naquela casa. E não teve nunca mesmo. Em outro ano, compraram um motor de moer mandioca para casa de farinha. Os filhos eram generosos.
Minha mãe, nos poucos Dias das Mães que fui na minha avó Francisca, em São Paulo, isso ainda no meu tempo morando lá, até os cinco anos, me recordo de levarmos um presente simples. Era um conjunto de xícaras, um bule ou mesmo um kit de sabonetes com a colônia que ela mais gostava, a Leite de Alfazema, da Phebo. De comida, ela preparava uma macarronada à bolonhesa bem substanciosa, com bastante carne moída, herança dos Lavorato dela, que ela perdeu ao casar com meu avô espanhol.
Vivi todas essas transformações da comunicação entre parentes. Da carestia em ir para o posto da Teleceará para fazer ligação interurbana, passando para a nova era dos cartões telefônicos, quando tínhamos que comprar uns 4 de 50 unidades para tentar ver se dava para falar uns quinze minutos. O meu pai comprou um telefone em 1998, mas colocou uma chave. Tava era certo. Adolescentes têm muito assunto. O primeiro celular, ele só me deu já perto de eu concluir a faculdade e era o dele, usado.
Após a gente gastar tanto com ligações tão curtas, chegou minha vez de ter a mãe morando longe. Era ela quem comprava o cartão e ligava para a nossa casa. Foi morar em São Paulo quando se separou do meu pai e ficamos com ele. No nosso primeiro Dia das Mães separadas, ganhei um buquê de rosas em um sorteio. Como não podia mandar para ela pelo correio, fiz um pacote especial com meus melhores produtos do primeiro emprego, como vendedora da Avon. Eu havia acabado de completar 18 anos.
Na caixa dos correios, coloquei uns esmaltes vermelhos, o batom Marajoara Encore e o Pop Love de Melancia, que ela gostava, um splash de alfazema, um porta-joias de resina que comprei na Caucaia e fechei o pacote. Ela recebeu uns 20 dias depois e ficou muito feliz, disse. Em outro ano, comprei uns CDs da Clara Nunes e do Roberto Carlos.
O tempo passou, os cartões telefônicos deixaram de existir, chegou a Tim sem limites de interurbano e começamos a nos falar dessa forma. Aí, ela veio morar no Ceará de novo e nós falamos todos os dias pelo WhatsApp.
Jamais imaginei que a comunicação pudesse evoluir tanto. Não consigo deixar de me surpreender.
Dragão de sorrisos e lágrimas
Em 1999, quando o Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura foi inaugurado, eu era uma adolescente de 16 anos. Por essa época, eu já amava ir com os amigos na Ponte dos Ingleses. Para isso, a gente passava por dentro dele. Dessa forma, o percurso ficava mais longo e charmoso, especialmente na ponte vermelha de ferro. Não tinha smartphone, então nada de fotos. Uma pena.
Nossa turma sempre tinha mais de um violão. Às vezes, nas mochilas, alguém levava um vinho São Brás ou um Rum Montilla, para misturar com Coca-Cola.
Quando eu conheci esse Centro Cultural, imaginava que tinha esse nome porque era um lugar comprido, com um rabo grande como os dragões da fantasia. Depois que fui saber quem era o jangadeiro.
Na sua Praça Verde, construída provavelmente em cima da velha casa do Mister Hull, que mantinha o tradicional hábito do chá da tarde mesmo em Fortaleza, ouvi o finado Cordel do Fogo Encantado, a Nana Caymmi e a Fernanda Takai, com seu projeto especial para crianças. Naqueles bancos, também conheci minhas amigas que escrevem para a foto histórica com as escritoras cearenses. Ali, começava um novo movimento na minha vida.
Essa parte dos shows, eu fiz questão de povoar de novas lembranças, assim que pude. Vi Fausto Nilo, um dos idealizadores daquele lugar, pela primeira vez cantando ao vivo com um show emocionante no ano passado. Depois desse show, tomei o último chopp de vinho do Bixiga, ali embaixo da ponte vermelha. Já tinham anunciado o fim daquele lugar. Dois meses depois, fecharam portas e janelas de tijolos. Aquele sobrado viu tantas versões minhas, acompanhada dos grandes amores que eu tive e pensava ser eternos. Fui feliz ali.
Com a Ana Cañas, no Anfiteatro, eu levei uma queda que me deu hematomas nos joelhos e me fez chorar de dor. Mas, quando ela cantou Fotografia 3×4, eu chorei foi relembrando o quanto eu imaginei que nunca mais pisaria naquele lugar, por tantos motivos. As lágrimas deram lugar ao riso depois que encontrei minhas amigas e dividimos tantas histórias hilárias bebendo uma cerveja, no bar do avião. Quase duas décadas antes, minha versão mais jovem e rockeira dançou naqueles degraus de cimento, ao som dos Renegados e do Arnaldo Antunes.
Embaixo do Planetário Rubens de Azevedo, único lugar do equipamento cultural do Dragão do Mar em que nunca entrei, eu esperei o dia amanhecer algumas vezes para pegar o meu ônibus pra casa. Por lá, também me abriguei da chuva e curti uma pequena ressaca, depois do meu casamento civil, porque emendei depois do cartório, um show no Cine São Luiz e mais umas apresentações no Amicis e no Bixiga. Só fui para casa amanhecendo o outro dia.
Nas salas do Cine Unibanco, passei um ano inteiro conferindo tudo que era filme, depois de ganhar meu passe livre por ser jornalista. Nunca tinha me sentido tão importante na vida, embora o único filme que tenha ficado vivo na memória tenha sido o Lavoura Arcaica, com Selton Mello e algumas cenas bem toscas.
As exposições do Museu de Arte Cearense, o MAC, eu adentrei trabalhando num domingo, fiquei admirada com tudo e prometi retornar com todos de casa, o que ainda não aconteceu. Nessa mesma tarde de plantão, ainda tinha o Pintando no Dragão, que reunia uma multidão de crianças com guache e folhas nas mãos.
No Café Santa Clara, o mais sofisticado que eu conhecia, deixei muitos 50 reais por dois capuccinos e tapiocas recheadas. Eu acreditava que valia muito a pena apenas por estar naquele ambiente perfumado, decorado e chique. Muitos contos perdidos meus tiveram esse café como cenário imaginário. Hoje, só o que tem é café legal nessa cidade, embora eu continue conhecendo poucos.
Quem mais lembra da Livraria ao Livro Técnico, com seus livros caríssimos de arte e suas instalações ao lado do banheiro que já era bastante malcuidado nesse tempo?
Hoje, trabalho pertinho do Dragão, o que me possibilita dar umas passadas rápidas por lá, de vez em quando. Desço todos os dias naquela ladeira que já me deu frio na barriga em outros tempos e observo o vermelho das flores dos flamboyants do seu terreno. Pena que sempre tenho medo de atravessar aquela praça deserta a pé, na maioria dos dias.
Quero viver o Dragão de novo mais do que antes. Ouvir as canções de quem por ali se apresentar, conferir as peças de teatro, desfrutar da sua vista, construir novas memórias que não deixem os meus olhos marejados com o que já passou. Eu sei que vou conseguir.
P.S- *Ilustração é de autoria do artista visual cearense Vando Figueiredo
No fim, que sabor você pediria?
Obra é de autoria do artista plástico autodidata cearense João Paulo José da Silva. Historiador, trabalha com as linguagens artísticas da xilogravura, monotipia, linotipia, pintura e escultura em madeira. No instagram, publica no perfil @jp.artesubjetiva
E se você tivesse como escolher qual o último sabor que provaria, antes de morrer e virar pó? Fiquei pensando sobre isso, ao ler uma notícia sobre pessoas que estavam recebendo cuidados paliativos em unidades de saúde. Alguns pacientes pediram para dar um tempo das comidas servidas no hospital, como últimos pedidos em vida. Um deles quis comer um doce de leite de tablete; outro, carne de porco e um bolo de chocolate.
Perguntei para alguns amigos e se descortinaram muitos sabores, alguns que talvez seriam impraticáveis para o ambiente hospitalar ou de alguém em estado terminal.
Na lista de pedidos, além de sobremesa de chocolate, estavam macarronada – a cearense, a tradicional dos imigrantes italianos e uma com molho branco, bacon e camarão – baião de dois com queijo, bolo, café, vinho branco e mousse.
Outro amigo falou que comeria algo com bode ou carneiro. Teve também quem preferisse um super sanduíche mega gorduroso, com carne bem suculenta, coração de frango, vários queijos, molho bbq e batata palha. Uma bomba que apressaria o fim iminente, com certeza.
Apesar do que falam sobre a falta de sabor das comidas no ambiente hospitalar, minha experiência com comida de hospital foi bem satisfatória. Quando criança, em São Paulo, minha avó precisou ser internada para colocar um marca-passo. Lembro de ter ido visitá-la e comer um pouco da sua gelatina. Foi muito bom, porque eu amo gelatina. E ainda era de morango, a minha preferida.
Depois, quando fui hospitalizada para as cesáreas dos meus filhos, aprendi a comer mingau de Neston. Disseram que ajudaria a produzir leite. Eu gostei tanto, que comecei a tomar de vez em quando em casa e isso me atrapalhou a perder os quilos extras da gestação. Era delicioso.
Sou uma pessoa que, em geral, gosta bastante de comer, apesar do sobrepeso. Penso que tenho todo o tempo do mundo. Tenho dificuldades de lidar com a minha finitude. Não fico refletindo sobre a morte com frequência.
Entretanto, meu apetite some diante de situações problemáticas. Então, desenganada pelos médicos, talvez eu nem quisesse mais comer. Em vários momentos decisivos, eu preferi deixar a comida de lado. Mas passou e eu voltei à minha vida de comer por prazer, na maioria das vezes.
Espero que nenhuma doença terminal apareça tão cedo. Eu não sei qual seria a minha reação diante da péssima notícia de que teria apenas alguns dias ou meses pela frente. Muito provavelmente, eu estancaria imóvel, chorando até acabar as lágrimas ou tomaria várias decisões precipitadas, já que não teria mais tanto tempo para me arrepender. A comida ia ficar em segundo plano.
Teria outros prazeres para resolver, como tomar meu último banho de mar, me despedir de todo mundo que fez diferença na minha vida, para o bem ou para o mal. Iria distribuir alguns beijos e abraços e uns bons tapas e palavrões também. E você, o que comeria, se não tivesse mais tempo?
Quinze minutos de bicicleta
Tem horas que a gente precisa dividir a dor em pequenos pedaços, para poder enfrentar. Tive essa lição no meu recente hábito de ir à academia.
O instrutor me recomendou uma série de exercícios para as pernas, terminando com esteira e bicicleta. Era domingo, mas eu não queria arregar e fazer feio logo no meu primeiro dia. Fiz todos os exercícios pedidos e pensei que a bicicleta seria super tranquilo. O que são 15 minutos? Pelo menos, no celular, esse tempo corre muito veloz. A gente nem percebe.
O que eu não sabia era que o peso dos pedais era grande. Comecei e logo na quarta pedalada comecei a sentir minha coxa esquentando. Fiquei mais ofegante que o normal, mas continuei. O cronômetro digital demorou séculos para sair do primeiro minuto. Quando chegou no terceiro, eu já estava com o coração muito acelerado e suando horrores. Decidi parar um pouco porque fiquei tonta e com vontade de vomitar.
Dali a um minuto, recomecei e fui pedalando até onde aguentei. Era um minuto e meio, o meu máximo. Racionalmente, dividi os 12 minutos restantes em trechos desse tempo. Devagarinho, fui me adaptando e, por fim, consegui concluir os longos quinze minutos que encerrariam o meu primeiro treino em dois anos.
Pode parecer ridículo que uma pessoa de 40 anos não consiga pedalar 15 minutos, mas é isso que o sedentarismo de anos faz com a gente. Eu não quero perder essa batalha. Quero ser saudável e viver uma vida dentro da normalidade.
Para além dos treinos, na vida da gente, muitas vezes é assim também. É necessário dividir as lutas em pequenos pedaços. O recomeço em uma nova profissão, após anos em uma que não nos satisfaz deve ser feito devagar, passo a passo. Arrumar a bagunça de dias em uma casa desorganizada ou lavar aquela louça acumulada que a gente deixou para depois. Se reconstruir, depois de um coração partido.
De passo em passo, mesmo que eles sejam curtos, podemos chegar mais longe. É melhor do que exagerar e ficar lesionado. Parar no meio do caminho, pelo exagero de quem não calculou direito a rota, sai bem mais caro.
Por isso, mesmo que a mudança seja minúscula, eu sigo no meu ritmo lento. Para continuar, pelo menos na academia, eu preciso ter paciência e me planejar. Me abraçar pensando que faço o que dá. Se essa semana, não conseguir ir as três vezes, posso bolar um plano para não falhar na semana seguinte. Mesmo que esse ano eu tenha lido apenas um livro, há a possibilidade de voltar a ler dez minutos diários e melhorar esse hábito. Sempre fui boa em roubar tempo.
Posso ser menos afoita. Quem sabe assim, o caminho fique mais claro e plano. Devagar, se vai mais longe. Essa lição não é para o mundo, mas para mim.
Um março atípico
Dizem que março é um mês sem fim. Entre o dia primeiro e o dia 31, cabem separações e recomeços, revelações bombásticas, empregos que surgem e se despedem, boletos que brotam do chão, doenças vindas da chuva ou das aflições e lembranças que aquecem o coração.
No dia 31 de março, recebi minha primeira carta de amor. Era copiada de um livro, cheia de desenhos dos Cavaleiros do Zodíaco e figurinhas de Icekiss. Eu era adolescente.
Já bem depois, foi em março também que atravessei a Avenida da Universidade para conhecer meus colegas de Jornalismo. A maior parte segue espalhada pelo Brasil e pelo mundo todo. Por muitos anos, eu quis desistir desse caminho. Hoje, sigo firme nele de novo.
Em março, dali a outro bom espaço de tempo, fui mãe de um bebê recém-nascido. Meu primogênito é de fevereiro e por essas épocas, eu andava tentando me acostumar a banhar, amamentar, dormir e sossegar. Isso nunca é fácil, muito menos indolor, mas passou.
Foi nesse terceiro mês do ano que comecei na maioria dos meus empregos. Como assessora de vereadora, fui aprovada em uma entrevista após uma prece. Depois, fui aceita para um emprego no jornal. Outra prece atendida, desta vez em um dos meus momentos mais sombrios. Quando já tinha tentado de tudo e todas as portas permaneciam fechadas.
Sete anos depois, em outro março sem fim, eu aguardava a minha demissão desse mesmo lugar. Já fazendo outras matérias, porque o jornal era bem diferente do que me acolheu. Eu era mãe de novo e tentava fazer de outra forma o que fiz da primeira vez. Ia criar eu mesma meu filho de oito meses. Mal sabia tudo que teria que aprender nesses anos duros e pesados. Saí outra de tudo isso. Não sei se mais amarga, mais dura ou mole, ou mais triste. Outra, certamente.
Nesses anos de pausa, morri tantas vezes. Tanta coisa apodreceu de quem eu era. Porém, a semente germinou e se alimenta dessa fertilidade do que o passado deixou. A experiência me fez mais forte. Tem erros que eu pretendo não repetir. Sigo olhando o horizonte e ele me parece luminoso. O novo me instiga a seguir adiante. Estremeço um pouco de medo, mas o frio na barriga não me paralisa mais.
Março dessa vez passou mais ligeiro. Muitos feriados. A chuva que ia ser escassa, veio abundante. Eu também precisei me refazer, tive outras surpresas. Algumas boas e outras que me pediram para ter mais força. A paciência é sempre difícil, mas tem coisas na vida da gente que só o tempo resolve. Todos passamos por transformações. Parece que estou no meio de várias. Quem não está?
O que será que abril trará? Aguardo algo bom porque até aqui, o ano trouxe muitos desafios. Prefiro ter esperança.
A metáfora do Edifício São Pedro
e do Mara Hope
*Edifício São Pedro, os últimos suspiros!, obra feita em Uni Pin 0,5 fine line, nanquim e café líquido sobre papel kraft, é de autoria do artista visual cearense Vando Figueiredo.
Quantas certezas você pode deixar de ter em quinze dias? Assim foi com o fim de fevereiro e o início de março desse bissexto ano de 2024. Perdi o chão por mais de uma vez. Depois de uma série de fins de ciclos, familiares e afetivos, o Sol parecia surgir, através das frestas das nuvens cinzentas. E então, na mesma semana, anunciam a demolição imediata do Edifício São Pedro e o Mara Hope cede no banco de areia, dias antes de completar os 39 anos encalhados.
Nem mesmo o concreto dos anos 1950 do primeiro prédio à Beira Mar conseguiu resistir ao tempo e à especulação imobiliária. Tampouco, o aço do convés do meu velho amigo, Mara Hope, testemunha de tanta coisa importante na minha vida.
Tudo vira pó quando não recebe reparos. Uma hora, a erosão completa o seu papel transformador. Sete andares de concreto podem se transformar em uma montanha de poeira e entulho. As paredes, as arandelas, as banheiras, o restaurante Panela, quem se amou naquelas camas, as risadas, as lágrimas dos hóspedes e moradores. Lembranças esparsas que vão se apagando na memória.
Há mais de uma década, pouco a pouco, aquele gigante ia deixando de existir. Nas frestas e rachaduras, nasciam árvores. Virou abrigo de pessoas em situação de rua e em drogadição. Se tornou um sinônimo de descuido.
No meu imaginário, a força maior das lembranças se volta para os primeiros anos do meu filho menor, João Nuno.
Quando ele nasceu, iniciamos nossos passeios com o carro recém-comprado. Foi ali que ele viu o mar pela primeira vez. Afoito, já se acostumando com a estabilidade dos pezinhos, saiu correndo direto para aquela imensidão verde azulada que olhava o Edifício São Pedro.
Nosso passeio simples era sempre o mesmo. Deixávamos o carro no estacionamento ao lado do velho edifício em ruínas, alugávamos patins, comíamos pipoca, açaí, cachorro quente e olhávamos o mar sentados na calçada do casarão que hoje é uma loja para surfistas. Fiz isso dezenas de vezes.
Alguns anos depois, eu fui agradecer pela vida e olhar meu Mara Hope de frente para o São Pedro, cercado de um multicor lindo no entardecer. Uma das tempestades tinha amainado, eu senti uma paz e uma esperança de que era o começo de um novo tempo.
Sobre o Mara Hope, para quem escrevi a carta que abre o meu livro Cidades Invisíveis, também vejo o trabalho lento da corrosão, tão comum nos relacionamentos. Aos pouquinhos, o sal do mar corrói o mais forte dos metais. A falta de zelo, aliada ao tempo, transformam tudo. Um navio encalhado, um prédio abandonado, as relações da gente, sejam de amizade ou amorosas. Para muitas situações, não há volta. O mais sensato é passar o trator por cima, esperar afundar. Não tem mais conserto.
No caso do Edifício São Pedro, desde que foi anunciado o tombamento, começou um trâmite longo, que findou por ser desfeito. Um patrimônio tombado e “destombado”. Os donos deixaram de se importar com a segurança. Foi só esperar a invasão, para que se tornasse um problema para o Poder Público. Alguém ia ter que resolver.
Tem relações, seja por preguiça ou por comodismo, que recebem esse mesmo tratamento que foi dado ao primeiro prédio com mais de três andares da orla. A gente deixa de se importar. Uma hora, alguém vai ter que resolver o impasse. Que seja o outro. Ele quem vai ficar como vilão. Na maioria das vezes, não tem jeito. A gente vai empurrando com a barriga até que alguém decida pelo fim.
No entanto, uma vez começado o processo, não tem mais volta. Pode até ser construído outro prédio melhor em cima do terreno, mais moderno. No entanto, aquele que existia deixou de ser. Será outro.
Quem irá definir o tempo de permanência do novo será o mesmo zelo, presente nos detalhes. A pintura do afeto, por dentro e por fora do edifício das relações, o óleo do desejo para lubrificar as dobradiças das portas e portões de cada encontro amoroso, o carinho e as palavras que adoçam o cotidiano. Tudo isso tão trabalhoso e necessário a todo laço e vínculo que firmamos.
Ou nos damos ao trabalho desse cuidado permanente ou um belo dia, o prédio desaba. O navio cede e afunda no oceano. E não haverá mais nada além de lembranças, quando os olhos fecharem.
Ser repórter
* A colagem “Olhar” é obra do artista plástico cearense João Paulo José da Silva. No instagram, ele publica no perfil @jp.artesubjetiva.
No colégio, em todo o Ensino Fundamental, eu quis ter várias profissões. Quis ser escritora na quinta série, geóloga na sexta, bióloga na sétima e cantora na oitava. Mas no Ensino Médio, tive que decidir porque precisava ranquear nos simulados e, pensando no quanto eu amava escrever e ler, optei pela Comunicação. Pesou muito saber que escritores como Clarice Lispector e Nelson Rodrigues eram jornalistas. Talvez fosse um meio para escrever e ser reconhecido.
Passar no vestibular para uma Universidade Pública foi difícil, mas bastou uma vez. Ao chegar no Centro de Humanidades, há 24 anos, vi outros estudantes que, como eu, não tinham muita ideia do que era ser jornalista. Depois de mais de três anos entre cadeiras teóricas e práticas, cheguei finalmente à redação de um jornal para estagiar. Faltavam só três meses para eu me formar.
A zoada era grande. Os dedos furiosos nos teclados cinza dos computadores de tubo. Uns 30 telefones tocando ao mesmo tempo, gente falando… Até hoje, eu me arrepio lembrando da gente correndo pra terminar o texto antes do deadline, prazo máximo para a entrega, para não atrasar o jornal. Todo dia, a pauta era uma surpresa. O chefe de reportagem sentado atrás de uma bancada com seus rabiscos e releases para pautar os repórteres.
Eu não tinha a menor idéia de para onde seria enviada. Isso dava medo. Comparo ao artista quando sobe no palco. Tem que ter sangue frio ou nos olhos. Não dá pra ser em cima do muro. Você poderia ir para uma pauta no Jangurussu, para escrever sobre os impactos do chorume na vida das pessoas que moravam perto de onde era antes o lixão. Ou para entrevistar o prefeito ou o governador. Mas o que eu vou perguntar? Te vira, bacana!
Era frio na barriga, todo dia subindo aquelas escadas. Fiquei viciada nessa falta de rotina. E em olhar tudo nos mínimos detalhes no caminho para lá, porque talvez pudesse virar pauta.
Quando a estagiária era novata, saía com o repórter uns três dias pra ver como funcionavam as coisas. Ele fazia a matéria principal e a estagiária, a coordenada. Assim, nos primeiros dias, eu ouvia atenta a frequência do rádio, pra ver como voltaríamos pra redação, enquanto a Martinha escrevia apressada com os bloquinhos de resto de papel do jornal a fala do entrevistado. Rapidinho, eu aprendi as manhas de deixar minha letra garranchosa para captar tudo. Só não consegui desaprender. Também aprendi que o melhor Pó de Guaraná da cidade ficava na rua Assunção, e dava tempo de tomar um copão antes de voltar para a redação nas pautas do Centro.
Nesses tempos de estagiária, o olho era atento para observar se a matéria sairia assinada no dia seguinte. Todos aguardavam ansiosamente por esse momento de glória. E se virasse capa?
Em dois meses como estagiária, consegui as duas coisas, embora tenha sido por um assunto inusitado, entrevistando alguém de quem as pessoas fugiam. A manchete “Carne de jumento vira mortadela no Rio de Janeiro” me rendeu muita zoação. E foi logo a primeira!
Depois de passar pela Coluna Social, entre muitas viagens e aniversários que viravam notícia, o que faço até hoje, passei por outras editorias, mas a minha preferida sempre foi a de Cidades.
Quando saí do jornal, fiz um freela pra uma revista de decoração e passava as tardes nos apartamentos chiques da Beira-Mar e as mansões das Dunas e do Porto das Dunas, observando. Depois, traduzia meus garranchos voltando pra casa de trem, saindo da Estação João Felipe. Que contraste!
O que eu sei é que ser repórter é ver pauta em todo canto. É atender ao celular com um “redação” antes do alô, porque aquele costume já enraizou. É segurar o choro na hora de entrevistar os familiares no velório de alguém que você conhecia e também ao ouvir aquela mãe que nunca saiu do hospital porque o seu filho espera um transplante de coração desde que nasceu.
É ficar com ódio por ter sido escalado para trabalhar no Réveillon e, depois de chegar às 4 da manhã em casa, com duas páginas de anotações de bêbados, seguir pra escrever na redação do jornal às 9 e descobrir que vai ter que espremer tudo em cinco linhas.
Ser repórter é sentir aquele frio na barriga só de lembrar dessa rotina louca, mesmo passados tantos anos. Uma vez repórter, sempre repórter. Por isso, sigo escrevendo o que pude observar nas entrelinhas das notícias. Tem experiências que sei que não viverei nunca mais e lugares que deixaram de existir. Acabou virando parte de mim e das crônicas que escrevo, como essa, em homenagem ao ofício que tem data comemorativa no próximo dia 16. Parabéns aos colegas que seguem na profissão.
Carta para o avô espanhol
* A gravura experimental em azulejo é obra do artista plástico cearense João Paulo José da Silva. No instagram, ele publica no perfil @jp.artesubjetiva.
Vô Pedro Luiz,
Eu não tive a chance de te conhecer pessoalmente. Sempre carreguei esse apagamento comigo. A curiosidade foi crescendo conforme eu ficava mais velha. No entanto, as pessoas ao meu redor não descreviam muita coisa.
Quando eu perguntava para o meu pai, no caso, o seu ex-genro, ele se limitava a dizer que o senhor era muito trabalhador. Por isso, conseguiu construir tantas casas, ter carro, telefone, televisão e uma vida confortável em São Paulo.
Esse ritmo frenético de trabalho, assim como o esforço físico, talvez tenham custado a sua saúde, porque sua profissão de azulejista te fez inalar muito pó de cimento e adquirir uma bronquite crônica que te levou embora cedo, aos 60 anos.
Meu tio Edison, seu filho, falou da sua paixão por futebol, você era corintiano. Outra característica marcante era que sempre gostava de presentear os filhos com brinquedos. Minha mãe tinha uma boneca linda, a Beijoca, presente seu e eu ganhei a minha, do meu tio, quando completei seis anos.
Ele me contou também que o senhor chegou pela Bahia, trabalhou assentando pedras em Salvador, depois seguiu para o Chile, voltou por São Paulo e pretendia regressar para a Espanha. Estava com saudades da família. Mas minha vó apareceu e você mudou os planos para se casar com ela.
Eu sempre me perguntei se, ao atravessar o Atlântico, você sabia o que era a paixão. Teria deixado alguma espanhola à sua espera? Ficava inventando roteiros românticos e dramáticos. Porque eu, aos 29, que era a sua idade ao chegar ao Brasil, já era mãe e casada. Como chegou a ser azulejista? Teria trabalhado com outra coisa? Se dava bem com a família da Espanha? Eram tantas perguntas…
Minha vó, eu não me recordo do que tenha me contado. Ela ficou deprimida depois que você se foi. A ponto de passar anos sem sair de casa e depois, a memória foi sumindo, pouco a pouco. Ela partiu muitas décadas depois de você, em 2011.
Em 1984, quando você foi embora dessa Terra, eu era um bebê. A gente se conheceu, embora eu não lembre. Passei a vida olhando a foto do meu batizado, que o senhor era meu padrinho. Eu tinha quatro meses apenas, mas como meu tio falava, deu tempo de se apaixonar por mim, sua primeira neta. Me deu um terço rosa de presente e um apelido impublicável, que eu não vou me expor aqui desse jeito no jornal.
Minha mãe intuiu a sua morte com um sonho premonitório. E numa madrugada de fevereiro, poucos dias depois dessa foto do batizado e do seu aniversário de 60 anos, te faltou o ar e você se foi.
Os anos se passaram e eu, olhando as suas poucas fotos, percebi seus olhos claros, a pele bronzeada, a baixa estatura, os pés e o nariz grandes, o rosto afilado. Não parecia um europeu convencional. De onde viriam esses traços? Eu sequer sabia qual era a sua cidade, a região da Espanha em que o senhor nasceu, muito menos porque veio para o Brasil ou se voltou para sua terra natal alguma vez para visitar seus parentes.
A primeira investida para descobrir alguma coisa a mais sobre a sua trajetória, eu fiz pouco depois que me formei em jornalismo, em 2005. Em uma viagem rápida para São Paulo, entrevistei o seu único amigo vivo, também espanhol, seu Alfredo. Com ele, soube de qual porto vocês viajaram, o de Vigo, qual era a sua região, Pontevedra, na Galícia e que tinha trabalhado na construção de Brasília. Meu avô Pedro Luiz, era um dos muitos candangos que construíram a capital federal… Me surpreendi, nunca ninguém tinha me dito.
Nessa época, eu tinha 21 anos. Fui perguntar sobre o senhor por curiosidade e porque a minha vida tinha dado uma mudada e eu pensava que eu poderia aproveitar meu curso de espanhol para ir conhecer o país e fazer o Caminho de Santiago. E a sua cidade estava no roteiro desse famoso roteiro peregrino.
Porém, minha vida mudou de tal forma que essas ideias se tornaram totalmente inviáveis. E eu segui curiosa e sem ter mais ninguém para perguntar sobre sua vida. Como eu não sabia de quase nada, ficava me perguntando se o senhor no convívio com a mulher e os filhos era ausente, calado demais, bravo… Minha mãe sempre muda o assunto, quando eu questiono. Parece que não gosta de lembrar.
Em uma tarde tediosa e quente de fevereiro, em 2016, quando eu não trabalhava mais com jornalismo e me dividia entre fazer comida, amamentar e fazer faxina, me deu uma vontade louca de colocar o seu nome no google e ver o que eu poderia descobrir.
Essa busca alucinante me tomou a tarde e boa parte da noite. Um link levando ao outro, eu resgatei o seu passaporte, sua identidade e descobri o seu navio, que aportou na Bahia em 1953. Descobri também que tinha se hospedado em uma pensão na Vila Mariana, em São Paulo.
Entre os textos que achei no google, procurando pela cidade e o sobrenome, encontrei Por Amor, um romance escrito por uma brasileira, que se passava na mesma região em que você nasceu. Andrés, mesmo nome do meu tio falecido bebê, era o patriarca. Além disso, a autora tinha um sobrenome parecido: David. Fiquei cabreira, senti os sinais.
Entrei em contato com a autora, Goreth Kling, e descobri que ela conhecia a parte da sua família que ficou na Espanha. A sua irmã, Maria Doviso, que recebeu cartas e não sabia ler em português, só alisava o papel, dizendo do irmão que foi para o Brasil e nunca mais deu notícias. Ela sabia que você tinha tido dois filhos, Edna e Edison, porque o meu tio escreveu para ela.
Por meio da Goreth, vi a casa de pedra onde você nasceu, em Carracedo, na Galícia, e soube do dom para o desenho dessa parte da família, porque tem vários artistas e designers. O marido dela, Eduardo David, é seu parente. O livro Por Amor foi escrito em homenagem à mãe dele.
Com a Goreth, eu soube que você vem de uma longa linhagem de homens que se chamavam Pedro Luiz. Eu sempre achei Pedro um nome lindo, mas como meu pai também tem esse nome, não achei legal colocar com Neto no final. Meu filho homem se chama João Nuno, seu bisneto. Luiza coloquei por outra razão, mas acabou homenageando você sem querer. A nossa família Garcia continua pela minha descendência e do meu irmão. Por ele, tem o bisneto Ravi Miguel. O Doviso acabou nos seus filhos, que não repassaram para os descendentes.
Vô, eu continuo sem saber muita coisa sobre o senhor. Não sei que heranças físicas eu tenho que se relacionem contigo. Já o meu irmão é a sua cópia. Pude atestar nas fotos do seu casamento com a vó Francisca. Sorte grande, a sua. Minha vó era muito linda, aos 35 anos, quando vocês se casaram. Eu me pareço mais com ela, modéstia à parte. Próximo dia 7, você faria 100 anos, meu tio me contou. Por isso, essa carta.
Quem sabe um dia eu descubra mais alguma coisa ou possa pisar no chão que sustentou os seus pés em sua infância. Ou posso inventar uma história sobre você. Será se eu consigo?
Ouro do sertão
Obra Mandacaru, em acrílica sobre papel duplex, é de autoria do artista plástico autodidata cearense João Paulo José da Silva. Historiador, trabalha com as linguagens artísticas da xilogravura, monotipia, pintura, escultura em madeira e gravuras experimentais. No instagram, publica no perfil @jp.artesubjetiva
Qual a sua lembrança mais marcante da infância? Na minha, teve muita coisa boa e ruim. Assim é com todo mundo, eu acho. Nunca fui criança de brincar muito na rua. Nasci em São Paulo capital, onde vivi até os cinco anos. Já nesses tempos, era perigoso brincar na rua, especialmente nos dias de semana. Corria o risco de ser atropelado, sofrer um rapto ou coisa pior. Por isso, criança, era do portão para dentro.
Eu gostava de ficar olhando pelos buraquinhos das grades do portão miúdo. O muro era baixo, mas eu, com meus cinco anos, não dava conta de pular. Ficava só olhando os carros passando. Como minha mãe é de lá, minha rotina não mudou muito depois que passei a morar em Caucaia, no Araturi, onde passei 30 dos meus 40 anos.
Meu apartamento era pequeno. Então, eu tentava me apoderar ao máximo dos lugares abertos que eu visitava, das paisagens, dos cheiros, das plantas, de tudo. Eu me agarrava às cidades para onde eu viajava para que eu pudesse voltar sempre que eu quisesse, na imaginação. Avistá-las, quando fechasse os olhos.
Foi assim, me agarrando aos flashes, que fiquei marcada pela dureza de Apuiarés, no sertão cearense. Fui naquele lugar poeirento uma única vez, talvez com uns nove ou dez anos.
Chegamos na casa que nos receberia com o sol alto. Algumas crianças e adolescentes estavam no alpendre debulhando milho. Para mim, uma brincadeira que feriu minhas mãos finas de criança da cidade e logo desisti.
Banho era de balde, como em qualquer interior. Só que nesse lugar, em vez de cacimba, a água era do rio. Para trazer, tinha que andar mais de uma hora com os baldes na cabeça.
Descobri isso depois de desperdiçar a terceira caneca de água, acostumada que era à fartura dos chuveiros e mesmo do tanque lá da Jijoca. No interior do meu pai, a gente enchia um tanque grande com a água da cacimba, para tomar banho e lavar roupa. Não tinha problema se derramasse, era até diversão.
Enchi meus olhos de água do carão que eu levei, mas depois entendi. Água é ouro no sertão. Tem que economizar o máximo que puder.
A senhorinha dona da casa, já com mais de 60 anos, era quem andava até o rio para buscar essa água preciosa. Tinha muita razão em brigar comigo. Eu não tinha noção do que era esse trabalho duro.
Foi lá em Apuiarés também que vi um capote pela primeira vez, essa galinha que parece pintada à mão e fala do nosso cansaço, com seu modo de cantar: tô fraco, tô fraco.
Depois desse carão, fiquei fraca mesmo pra chorar e foi o que aconteceu quando eu vi a galinha do almoço sendo morta e tratada para a gente comer.
- “Coisa fraca é menina da cidade. Qualquer coisa, chora e ainda é lesada. Será que se cria?”, escutei sem querer.
O sofrimento e as privações, às vezes, geram gente bruta, incapaz de um carinho. Era o caso dessa senhorinha que me recebeu. Mas quem vai condenar? Cada um dá o que tem.
Não dormimos naquela casa e seguimos viagem de volta para Fortaleza ainda de dia. No caminho, a estrada era muito esburacada, não tinha asfalto. Piçarra. Sei que o carro do meu pai, um Corcel II, deu o prego em Pentecoste. Não aguentou o sacolejo. Acho que voltamos apertados no carro do meu tio, enquanto meu pai consertava.
Entrou para a minha coleção de lembranças. Essa não é boa, mas serviu pra eu ver na realidade o cenário dos meus livros preferidos de hoje, os regionalistas. Das recentes leituras, tem Outros Cantos, de Maria Valéria Rezende e A Casa, de Natércia Campos.
A crônica foi digitada enquanto eu escutava “Onde canta o sabiá”, do Mastruz com Leite, para dar uma força na inspiração. A música sempre me ajuda a avivar as recordações e era com a trilha sonora dessa banda que a gente viajava de carro na minha infância.
Quando os bem-te-vis espantaram
os fantasmas
Depois do meu casulo se abrir, no primeiro de janeiro, como eu contei aqui na primeira crônica, passou apenas uma semana para que os voos ficassem mais lentos. A vida é assim, uma montanha russa, tem um gosto agridoce. Eu já aprendi um pouco sobre isso nessas quatro décadas de vida.
Por uma tontura, minha mãe caiu de costas e quebrou uma vértebra, na coluna lombar. Para tratar a dor, passamos duas noites internadas no hospital referência de trauma do Ceará, o Instituto Dr. José Frota, um lugar cheio de emoções fortes, que merecia uma série de crônicas. Ela teve alta, graças a Deus, já está em casa e consegue se movimentar.
Com esse acontecimento, precisei modificar minha rotina e retornei ao apartamento onde morei por 30 anos para dormir com ela. Lá, reencontrei meus fantasmas, o que me deu alguns calafrios. Tem lugares em que as paredes, mesmo pintadas com outras cores, são impregnadas com a cartela de tons de outros tempos. No meu caso, uma boa parte dessas cores e desenhos, eu queria esquecer. Porém, nem sempre a mente obedece a gente.
Naquele pequeno espaço de 52 metros quadrados, eu cresci, chorei, gritei, ri, amei, tive medo. Ao me encostar na janela, eu consigo lembrar de quando assistia Tieta e pulava para ver o que tinha do outro lado porque não alcançava o batente.
No mesmo armador em que coloquei a rede nova para dormir, eu coloquei outras redes para fazer adormecer os meus dois filhos incontáveis vezes. A janela da sala eu preenchi de uma ponta a outra com minhas roseiras quando eu tentava colorir o meu desânimo nos meus dias mais cinzentos.
No quarto da frente, dormiam os meus pais quando eu era criança. Quando me casei, herdei aquele cômodo, que depois se tornou o quarto dos meus filhos. Hoje, minha mãe pegou o quarto de volta.
Da escada, hoje muito desgastada, eu usava os degraus como os cômodos para a minha casa imaginária da Barbie. Apostava uma perigosa corrida com as crianças dos vizinhos, o que me rendeu alguns machucados.
Adolescente, ouvi e respondi muitas declarações de amor embaixo daquele teto. Toda vez que passo por ela, os fantasmas dos amores perdidos reaparecem. Surge até mesmo o da minha vizinha, que era a minha figura materna por mais de uma década e que dividiu aquela escada comigo nos 30 anos em que morei por lá, a dona Maria das Neves Teles, que o Alzheimer levou há uns seis anos.
Depois de duas noites mal dormidas naquele apartamento que me viu crescer, eu saí meio chorosa para resolver a matrícula da minha filha. Atormentada pelo medo de me acidentar e ter que ir para o IJF de novo, dessa vez como paciente, porque precisei pegar um moto uber, a minha mente vagava enquanto os olhos molhavam e escorriam. Eu me sentia só. Não tinha ideia de como ia administrar tantas questões. Vivo equilibrando um monte de pratos. Mas quem não é assim?
Ao chegar no trabalho, me surpreendo com dois pequenos passarinhos piando na grade da repartição. Seus bicos escancarados e as plumagens meio bagunçadas denunciam que devem ser pássaros crianças. Terão caído da árvore?
O motorista do aplicativo diz que eram sanhaçus. Mas, com o peito amarelo, deveriam ser bem-te-vis, o que confirmei quando os pais deles apareceram com comida. Um trouxe uma semente e o outro, um pequeno besouro.
Com essa cena simples, eu me esqueci por um instante do choro, das preocupações e segui sorrindo para mais um dia de trabalho. É, Deus sabe como mudar meus pensamentos e espantar meus fantasmas. Ainda bem.
Sobre listas de Ano Novo
e casulos de borboleta
“Para ganhar um Ano Novo
que mereça este nome,
você, meu caro, tem de merecê-lo,
tem de fazê-lo novo, eu sei que não é fácil,
mas tente, experimente, consciente.
É dentro de você que o Ano Novo
cochila e espera desde sempre”.
Carlos Drummond de Andrade in Receita de Ano Novo (1977)
Depois de muitos anos sem realizar as metas pretendidas, dei um tempo nas listas. As minhas, ano após ano, por mais de uma década, incluíam perder peso, fazer exercícios, cuidar da alimentação, fazer menos dívidas e ler mais.
Mesmo querendo realizar, achava que era lugar comum. Eu era só mais uma correndo atrás do mínimo e, mesmo assim, não chegava onde queria. Evitava pensar no futuro, porque era sempre a mesma coisa. Enquanto o ano escorria entre os dedos, eu refletia, calada, com a auto sabotagem de sempre.
"Para que cuidar da alimentação nessa vida tão sem graça? Eu ando tão cansada… Esse chocolate não vai me fazer mal, é só hoje. Amanhã, eu começo os exercícios. Essa parcela é pequena, não vai fazer diferença no orçamento. Depois eu leio, tô com tanto sono" - era o que eu repetia.
No dia 31 de dezembro, era o mesmo peso na balança, o dinheiro curto, o mesmo jantar, as mesmas pessoas, as discussões pelo prato que eu fiz, a indecisão pelo que fazer no dia seguinte, o primeiro do ano. E tudo voltava ao começo, como um eterno retorno triste. Parecia a Caverna do Dragão, aquele desenho animado que quem tem a minha idade assistiu na infância. A gente pensa que vai dar certo e, no fim, continua tudo igual. Cadê o Mestre dos Magos? Sumiu de novo…
Esse marasmo permaneceu até chegar a pandemia. Um ano sem escola para as crianças, convivendo com problemas psicológicos, rotina de homeoffice pesada. Estresse, medo do futuro. As metas de sempre foram esquecidas e eu focava em vencer mais um dia. "Deus, me ajude a não morrer hoje". Essa era a oração que eu fazia em silêncio.
Quando a pandemia amainou, algo tinha se quebrado. Eu tinha fome de viver. Não aguentava mais aquele cinza indefinido. Queria cores mais fortes e fui forçando a velha casca que me circundava. Precisava correr o mundo, falar com as pessoas, abraçar, ouvir histórias reais, olhar nos olhos, ao invés da ligação de vídeo e as mensagens no WhatsApp. Sentir o frio da barriga que toda primeira vez traz consigo. Eu era outra, o mundo também.
Em vez de querer perder peso apenas para agradar o mundo, eu fui pensando que poderia ter mais tempo com os que quero bem, se tivesse mais saúde. Que poderia ter mais disposição para passear e me divertir. E seria aos poucos, sem dietas malucas. Eu não precisava de tantos livros assim, para quê colocar mais um na estante? Preciso poupar e comprar coisas mais urgentes, como roupas e calçados. Eu posso ler assim que acordar por 15 minutos. Na hora de dormir, eu já vi que não consigo. Vou mudar a estratégia.
Como eu mudei, tudo ao redor foi se modificando junto comigo. As oportunidades de melhoria começaram a surgir. Primeiro, a casa ficou mais clara e espaçosa porque me desfiz de muitas coisas que não tinham mais sentido.
Comecei a colecionar as primeiras vezes e a vida foi mudando. A escrita me lançou para o mundo como autora e não tinha mais volta. Os caminhos foram se escancarando. Voltei a trabalhar como jornalista presencialmente, perto dos meus amores maiores: o Mara Hope e a Ponte dos Ingleses.
Fiz uma nova lista de metas, mais subjetiva e colei no meu caderno desse ano. Quero rever mais meus amigos e familiares. Sair com meus filhos e apresentar o que sei de Fortaleza para eles, conhecer o novo e experimentar a surpresa juntos, experimentar o frio na barriga de arriscar o novo. Não quero mais economizar o tempo de vida que me resta. Eu não sei quando irei partir, preciso aproveitar melhor, me importar menos com a opinião dos outros. Ver o dia nascer e terminar, com aquele colorido único. Sentir o sal do mar queimando minha pele e os meus lábios. Beijar e dizer que amo. Se não houver eco, a gente junta os cacos do coração e continua a vida.
Quero um 2024 assim, merecer os novos 365 dias que irei ganhar. Sorver cada segundo, sem economizar nos afetos, nem na esperança. Deixo o cinza do passado junto com as roupas que não me cabem mais. Sou outra. Meu casulo se abriu.
Em honra à Santa Luzia
Festa do padroeiro é a confraternização suprema de toda cidade pequena. Até em cidade grande, a depender do bairro, tem movimentação maior e tudo parece ganhar cores mais vivas. Tudo se atiça: as vendas, os amores, as brigas…
Só estive na festa de Santa Luzia, a padroeira de Jijoca de Jeri, em dezembro de 1993. As lembranças, os sons e os cheiros permaneceram, mesmo passadas três décadas. Em cada casa de parente, estava lá na porta da sala o quadro da santa com decoração de espelhos, ao lado da foto do casal pintada. Eu nunca entendi como ela podia ter olhos no prato e no próprio rosto. Mais tarde soube que ela foi martirizada e arrancaram os seus olhos. Achava a santa bonita, era tão jovem. Por causa dela, tenho uma prima Luzinete, que todo mundo chama de Luzia. São muitas as Luzias espalhadas por lá.
Aos dez anos, eu ainda não tinha liberdade para ir nas festas, mas via o alvoroço das primas mais velhas, todas muito perfumadas, maquiadas e na expectativa de quais seriam as bandas de forró e os gatinhos que estariam presentes para dançar. Os forasteiros faziam mais sucesso, os nativos nem tanto. Eu imaginava quando seria a minha vez de provar esses prazeres. Ficava na expectativa e atenta aos possíveis pares para o futuro. Pelo jeito, seria algum primo que dançaria comigo. No entanto, nunca fui muito boa para as danças. A timidez impediu o molejo de chegar em mim. Isso me atrapalha até hoje.
Em vez da casa velha do Córrego do Urubu, a hospedagem era em uma casinha menor, na rua, com um pequeno alpendre e uns cobogós na sala, perto do único posto de gasolina da cidade. Na festa, a família toda se mudava para a sede de Jijoca, para participar dos festejos. Afinal, meu avô era um dos principais celebrantes da zona rural.
Não gostei muito da novidade. A lagoa na cidade não era tão limpa quanto a que era próximo da casa velha. Além de ser mais longe. O chão tinha lodo. Não era tão fundo, tinha uns matos em alguns lugares. Em apenas um lugar tinha umas tábuas para pular, quase em frente ao balneário, que era o epicentro das festas e dos namoros que nasciam.
A tia Terezinha era quem puxava a reca de meninos para a beira da lagoa. Minha mãe, quando ia para a casa da sogra, só vivia de casa em casa, visitando todo mundo que podia. Eu e meu irmão preferíamos ficar onde estavam os nossos melhores amigos, que eram os filhos dessa tia. Estávamos sempre juntos e, no Araturi, onde nós morávamos, éramos praticamente vizinhos.
Dezembro é tempo de manga e os caminhos para a lagoa na sede da Jijoca eram cheios de mangueiras. O cheiro da fruta apodrecida misturada com o de mato molhado até hoje me leva em pensamento para esse tempo. Minha tia sempre trazia várias para casa e ainda fazia uns dindins.
No nosso grupo vindo de Fortaleza, uma vizinha dela também veio para aproveitar a festa, a Socorro, mulher solteira e madura, que prometeu voltar outras vezes. Lembro dela falando das vantagens de não ter marido e filhos. A liberdade de poder viajar para onde quisesse, sem precisar dar satisfação, nem se preocupar com os querer de crianças. As casadas com filhos pareciam se ressentir daquela conversa. Talvez invejassem essa liberdade. Em toda casa sempre alguém perguntava se ela tinha filhos, namorado, marido e o porquê dessa escolha por ser sozinha. Eu, criança crescida, ficava reparando nessa disputa velada, nesse despeito. Isso ainda acontece tanto…
De noite, o parque funcionando perto da igreja. A roda gigante e o barco eram os meus brinquedos preferidos. O espalha brasa, eu só experimentei ir uma vez, dava enjoos, tontura. Dessa vez, eu tentei andar nos carros da autopista, a convite do meu primo quase irmão, o Junior. Não saí do canto e desisti de dirigir até hoje. Toda vez que eu pego em um carro lembro dessas vezes em que não consegui guiar algo tão simples. Quem sabe um dia?
Para a missa, ninguém ia. A gente queria era ficar ao redor da igreja, conversando, rindo, correndo. Nossas mães nunca foram muito religiosas. Lá fora, na feira, eu perturbei por uma maçã do amor. Bonita, brilhosa, mas tão dura. Machucou minha boca e eu ainda fiquei com as mãos sujas do melado. Para piorar, a roupa ainda era branca. - Desastrada, estragou a roupa nova! - minha mãe falou. Quase apanhei nesse dia.
Depois, voltar para casa, lavar os pés e dormir. O som alto das bandas no balneário, com os forrós do momento, embalavam os sonhos da gente, enrolados com o lençol nas redes rústicas e brancas. Mastruz com Leite já era o auge, junto com bandas de nomes estranhos, como Cavalo de Pau, Mel com Terra… Eu adormecia pensando se ainda ia dançar com alguém.
Nunca mais voltamos nesse tempo para os festejos. O ano novo era muito melhor. Um dia eu retorno lá em dezembro para renovar essas lembranças. Talvez dessa vez eu não me suje com a maçã do amor, mas o meu Joãozinho, muito provavelmente seguirá esse caminho…
A Mãe d’Água e a princesa encantada
de Jeri eram parentes?
Eu imaginava a Mãe d’Água como uma velha senhora, de longos cabelos grisalhos, vestida de azul e flutuando na parte funda da lagoa. Ela estaria sentadinha, como se estivesse em uma pedra, sem ter a pedra. Às vezes, imaginava ela sentada na forquilha, de onde muita gente pulava e dava uns mergulhos. Eu não, os meus primos. Nunca fiz isso, com medo de me machucar.
Outras vezes, imaginei ela como uma imensa moreia, mas com a cabeça da velha senhora. Conhecia as moreias das enciclopédias da minha mãe. Tinha um capítulo da enciclopédia dos livros Novo Conhecer com várias espécies de peixes. A moréia estava lá. Mas essa colagem era meio tosca na minha cabeça. Não combinava muito.
Vó Maria, para a gente ficar em casa na hora do almoço, dizia que se fôssemos na lagoa entre meio-dia e duas da tarde, iríamos nos encontrar com ela e a morte era certa. Eu só aprendi a nadar com 12 anos e mesmo assim, nunca fui muito boa nisso, então, obedecia minha avó, apesar da tentação que era tomar aquele banho morno relaxante, logo depois do almoço.
Já adolescente, a gente fica mais maluvido. Lembro de um churrasco quase perfeito que a gente fez na beira da água, justo na hora do almoço. As companhias eram ótimas e as conversas também, só os primos mesmo. No entanto, as carnes eram poucas e ficou muito ruim. Era asa e coxinha da asa de frango na brasa. Fizemos o fogo debaixo dos cajueiros. Queimou tudo e a gente acabou almoçando manga. Ainda veio uma chuva para apagar as brasas. Acho que foi nesse dia que eu tomei a catuaba pela primeira vez. Depois desse dia, a catuaba ficou sendo a bebida oficial dos encontros. Era ruim, mas ao menos era doce. Tomando só um copo, não dava vontade de vomitar, pelo menos.
A Mãe d’Água, segundo o folclore brasileiro, é muito diferente dessa da minha imaginação. É uma sereia linda, de olhos verdes, toda sedutora, que atrai os homens para a água e depois, os mata. Se não morrerem, precisam passar pelas mãos de uma benzedeira ou um pajé, porque ficam abestados. Um homem ficar doido de amor, encantado… Queria ter esse poder. Então, nem precisava me preocupar, porque ela gostava era dos caras, não de crianças.
Sobre a história da Princesa Encantada da Jeri, só soube muito mais tarde. E, mesmo assim, era tudo muito desconexo. O tio João contou que existia uma furna perto da Pedra Furada, no Serrote, e que ela se escondia lá. Era muito bonita, mas quem quisesse ver precisava pagar uma prenda. Quando eu tinha dez anos, ele não me disse qual era.
A Princesa Encantada, a da lenda coletada pelo Câmara Cascudo, conta que ela foi transformada numa serpente de escamas de ouro, com cabeça e pés de mulher, que só pode ser desencantada com sangue humano. No dia em que alguém for sacrificado junto do portão, será aberta a entrada para um reino maravilhoso. Com o sangue será feita uma cruz no dorso da serpente, e então surgirá a princesa com toda sua beleza, cercada de tesouros inimagináveis, e a cidade com suas torres douradas, finalmente poderá ser vista. Então, o felizardo responsável pelo desencantamento poderá casar com a princesa. As princesas tornadas serpentes são vestígios do ciclo dos Mouros na península Ibérica. Em Portugal, quase todas as Mouras Encantadas vivem sob a forma de serpentes.
Antes de saber dessa lenda pelo registro oficial, eu inventei de conhecer a Pedra Furada com essa mesma turma de primos. Sem conhecer direito o caminho, fomos pela beira da praia e ficamos ilhados, sem ter como seguir em frente e nem voltar, porque a maré subiu. Lembro que o sol estava a pino, entre o meio-dia e as duas da tarde, tentamos escalar as pedras para poder prosseguir. Desistimos depois de eu ter cortado o pé, a gente estar quase dando um desespero de sede e a máquina fotográfica do meu primo Josa ter caído na água, para a gente tentar registrar o tal buraco no paredão de pedras que podia ser a furna da princesa. Eu tinha uns 14 anos. Para nossa sorte, a maré baixou e a gente voltou pelo mesmo caminho. No ano seguinte, conseguimos ir para a Pedra Furada por cima do serrote. E quase teve tragédia de novo.
A tragédia é porque, nessa segunda tentativa, nossa prima que tinha epilepsia foi com a gente e ela sofria cerca de 20 ataques por dia, porque nunca encontrou um medicamento que aliviasse as crises. Deu um em cima do serrote e conseguimos segurar pra que ela não morresse no precipício.
Será que a princesa estava com ciúmes da nossa prima? Um irmão dela, alguns anos antes, tinha morrido afogado porque deu ataque na água. A gente tinha ido escondido para esse passeio. Mas sobrevivemos todos e temos fotos desse dia, em 1998.
Como esse percurso durava quase duas horas, nunca mais fiz esse esforço. Que lugar longe! E nem era tão bonito assim. Será se eu volto ainda por lá?
Comprei o livro do Câmara Cascudo que tinha a lenda da princesa para usar na minha monografia sobre os Tapeba. E depois ainda soube que tem livro infantil, filme, romance, de fantasia, fanfic. A Princesa Encantada de Jeri é bem famosa.
Fiquei matutando... Será se a Mãe d’água era a mãe da princesa encantada? Será que tinha um buraco por dentro da lagoa para elas conversarem de vez em quando? Tomarem um café juntas? Ou eram inimigas? Rendia um monte de história legal ainda essas lendas.
Por que eu tenho medo do futuro?
O progresso parece estar chegando à Jijoca de Jeri. De uns anos para cá, especialmente depois da construção do aeroporto, os terrenos supervalorizaram, assim como os aluguéis. Hoje, na sede da cidade, muitas residências têm três ou quatro andares. Os apartamentinhos, como são chamados, são alugados a partir de 800 reais. A cidade está com o comércio aquecido, com muitas lojas de roupa e calçados, móveis, eletrônicos e até um atacarejo.
O setor hoteleiro está cada vez mais luxuoso. Toda a beira da lagoa da Jijoca está ocupada com pousadas e casas de veraneio com vários chalés para alugar. Virou um bom investimento para os forasteiros. Um resort de luxo está sendo construído também na beira do manancial. Vizinho à velha casa dos meus avós, na beira do Córrego do Urubu, estão concluindo a construção de um condomínio de luxo com casas de mais de um milhão, com uma infraestrutura que inclui piscinas, academia e outros luxos.
Eu me pergunto: aonde irá desembocar tanto esgoto? A cidade tem mesmo estrutura para suportar tanta coisa?
Com essa valorização, os mais velhos têm sofrido muito assédio de construtoras e corretores de imóveis. Um parente meu recebeu uma oferta de milhões por seu terreno, no qual mora desde que se casou, há quase 60 anos. Foi ameaçado e quase morreu devido a uma briga por um pedaço de terra.
Conversando com ele, soube que há vinte ou trinta anos, as pessoas trocavam seus terrenos por sacos de feijão ou de castanhas. Porque as terras nada valiam, apenas o que tinha plantado. E nessa época, o que mais se plantava era caju, feijão e mandioca. Até mesmo a minha família preferiu vender o enorme terreno da casa dos meus avós por uma mixaria. Hoje, o mesmo terreno, que, inclusive, estava à venda até um dia desses, vale mais de vinte vezes o valor.
Além dessa questão imobiliária e ambiental, ainda existe o tráfico. Em alguns lugares mais distantes, as facções estão ditando até as regras para relacionamentos extraconjugais. Rasparam o cabelo de uma moça que traiu o marido e um homem que traiu a esposa levou uma surra da facção. Também é proibido o roubo de qualquer coisa, para evitar chamar a atenção da polícia.
Perto da única escola profissionalizante do município, fizeram um loteamento popular que promete ser a primeira favela da cidade.
O pensamento de vira-lata, que é comum entre os brasileiros, por lá também domina. Muita gente continua achando uma bobagem preservar todos aqueles mananciais, rios e lagoas. O dinheiro sempre fala mais alto. Quem é criado em um paraíso, muitas vezes, perde a noção da beleza. E quem é de fora valoriza muito mais.
Será que meus netos, caso eu venha a ter, conseguirão ver ainda algo das belezas que eu conheci? Tenho minhas dúvidas.
A Porteira da Morte
Desde que meu avô Doca Ribeiro faleceu, eu nunca mais pisei em um cemitério para sepultar um parente. Do velho campo santo de areia frouxa em Jijoca, lembro muito pouco. Foi em 2001. Era três da tarde, fomos todos na carroceria de alguma caminhoneta. Longe, empoeirado, o caminho. O sol a pino. Talvez tenha sido o primeiro e único enterro de alguém da família que eu tenha ido.
As porteiras da morte dos Oliveira se abriram no fim dos anos 1990, com a partida do meu tio João. Jovem, se foi aos 39 anos. Uma depressão profunda o levou aos poucos. Ele não se conformava em ser sozinho. Morava com os pais, meus avós paternos, desde que voltou de São Paulo, dez anos antes. Nunca se casou, nem teve filhos. Namoradas, nunca vimos. O alcoolismo também ajudou nesse processo triste de partida. Prometeu que viria buscar a mãe dele. Eles eram muito ligados. Cumpriu. Em dezembro, no último dia desse mesmo ano, minha avó Maria se foi. A mancha na virada de 1998 para 1999 se tornou uma nódoa difícil de tirar. Até hoje, todos da nossa família se lembram desse dia triste.
Quando começou o ano de 1999, nas primeiras horas já estávamos no caminho de Jijoca para o velório. Meu tio Antônio levou a gente no carro dele. Chegando lá, a morte, com seu cheiro de flor, dominava a casa. Minha avó no caixão vestia azul. Seu nariz adunco parecia ainda maior. Foi a primeira vez que eu vi meu pai chorando, assim como vi umas carpideiras desconhecidas. Eu não consegui chorar e fui procurar flor para ofertar pra ela. Achei um caju no caminho e estraguei minha roupa. Dessa vez, eu não quis ir para o enterro. Meu pai chorando era uma cena muito pesada para mim. Preferi ficar em casa. Fiquei exausta com tudo aquilo.
Três anos depois, chegou a vez do meu avô fazer a viagem. Depois que a esposa faleceu, ele fingiu força, chegou até a dizer que poderia se casar novamente, mesmo com quase 80 anos. Mas a verdade é que foi murchando. Também, não era para menos. Os dois ficaram casados por 59 anos. Um AVC fulminante o levou em menos de meio dia. Ele sempre falava que não queria dar trabalho a ninguém quando idoso. E assim foi. No dia anterior, ele fez todas as atividades de sempre. Capinou, tomou seu banho nu no Córrego, mascou fumo, se alimentou. Caiu por causa do tal derrame quando se levantou de manhã cedo. Faleceu perto de meio-dia.
Não lembro se antes ou depois da partida do meu avô, o outro filho solteiro de Fortaleza chegou para morar na velha casa da beira do Córrego. Tio Moisés, assim como o tio João, morou em São Paulo muitos anos. Por lá, teve dois filhos de duas mulheres diferentes e também virou alcoólatra. Pouco depois do tio João, ele também veio embora para o Ceará. Ficou em Fortaleza, pelo Bom Jardim, onde morou um tempo sozinho e depois, com uma mulher. A cachaça o deixava fora de si a maior parte do dia. Ele se tornou aqueles bêbados que passam o dia na rua, vagando. Com essa vida, adquiriu uma pancreatite, uma úlcera e uma tuberculose. Tirou uma parte do estômago, passou um tempo internado em Maracanaú por causa da tuberculose, teve uma diabetes e foi proibido de beber.
Como a mulher com quem ele morava era crente, para continuar com ela, precisaria se casar. Ele preferiu continuar solteiro e decidiu ir embora para o interior, morar na casa dos pais. Longe da bebida, ele engordou, ficou corado. Mas, por algum motivo que até hoje ninguém soube, ele passou três dias em uma longa farra e morreu de tanto beber. Foi o terceiro morto dessa leva.
Alguns anos depois, minha tia mais velha, a Lili, partiu não sei por qual motivo. Junto com ela, se foi boa parte da memória escrita e fotográfica da família, que já era pouca. Soube um dia desses que ela guardava a fotografia pintada do casamento dos meus avós, de 1939 e do meu pai, com 18 anos, que ele enviou de São Paulo. As duas ficavam em cima da porta da sala. Os pregos ainda permanecem. Uns anos depois da morte da minha tia, tudo foi jogado fora. Soube por uma prima. Essa parte da família, eu não tenho tanto contato.
Depois, minha prima Igardene Fonteles foi embora, a mais jovem de todos. Ela era professora e foi uma das primeiras na nossa família a se formar. Morreu por eclâmpsia, assim como o filhinho. Ela estava com sete meses de grávida. Era seu primeiro filho, muito planejado e só concebido depois de ter um bom emprego e ter terminado a faculdade. Foi muito triste. Ela tinha 30 anos e era muito querida. Hoje, nomeia uma escola na cidade.
Desde então, a porteira da morte dos Oliveira permanece fechada. Ainda bem. Entretanto, nessa década, foi aberto um novo portal, tão triste quanto: o do esquecimento, por consequência do Mal de Alzheimer. Dos 14 irmãos, dois estão perdendo a memória. Três estão do outro lado da existência. Restam nove vivos. Quero aproveitar ainda a memória boa destes para saber das histórias do passado. Espero que dê tempo.
Pequena carta para Ednardo
*Com os agradecimentos especiais à querida secretária da Cultura do Ceará, Luísa Cela, que fez essa foto linda e ao Marquinhos Abu, que me ajudou a chegar no cantor Ednardo.
Ednardo, teu canto me salvou, sabia?
Foi escutando tuas canções que eu pude voltar no tempo, para quando eu percorria a Fortaleza que me habita e escrever o livro que mudou minha vida: o Cidades Invisíveis.
Com Flora, a que eu sempre gostei mais, eu sofri, pensando que nunca ia conseguir lembrar sem chorar de certas coisas. Acabei acostumando, meu coração tá mais duro agora.
Nas Longarinas, eu lamentei tantas vezes que o Castelo do Plácido tivesse sido derrubado quase dez anos antes de eu nascer. É verdade. Aqui, em Fortaleza, as coisas vão se desmilinguindo, uma a uma. No fim, talvez, só fiquemos eu e a Ponte Velha.
Será mesmo? Tem uns projetos mirabolantes em construção. Não sei se ela termina resistindo. Já eu, ainda devo ficar por aqui uns 40 anos, mais ou menos. Eu acho, né.
Se ela vai resistir ainda, não faço ideia, mas, pelo menos, eu pisei naquele chão.
Cozinhando e lavando louça, ouvia Enquanto Engomo a Calça. Eu sempre refletia sobre o fato de que escrever, para mim, se parece muito com o não morrer, o não se esquecer. E cantar também. Embora, o ofício do canto eu tenha abandonado há quase uma década.
A escrita sempre me salva das minhas dores. Eu mergulho nelas bem fundo e depois escrevo molhada ainda do que sinto.
Também pensei em ir, não para o Rio de Janeiro, mas para São Paulo, se eu ganhasse na loteria. Mas, nunca joguei no carneiro. Prefiro borboleta.
O Farol Velho ficou cego de vez. Entra ano e sai ano e só promessas. Uma pena, Ednardo. Nunca esqueci aquela vista impregnada de beijos que não dei.
Sobre o Terral, eu gosto das dunas brancas, mas não tenho resistência pra escalar. Sou do luxo da aldeia não, ainda moro no Caucaia.
E eu sei que eles são muitos, aqueles que atravancam os caminhos, mas não podem voar.
Obrigada por receber o livro e o abraço. Guto Benevides, teu amigo, tava articulando nosso encontro desde agosto, sabia?
Esse foi muito melhor. Ainda bebi da fonte do erotismo dos teus poemas proibidos. Coisa mais linda.
Desejo muita saúde e inspiração.
Obrigada por me salvar, Ednardo. Cidades Invisíveis também é seu.
Como era ser televizinho
com 20 anos de atraso
Com a energia elétrica, não foram apenas os eletrodomésticos que começaram a chegar nas cozinhas. Aos poucos, as antenas parabólicas também surgiram nos telhados e, com elas, as televisões nas salas. Na maioria das cidades brasileiras, esse movimento ocorreu no início dos anos 1970. No Córrego do Urubu e nos demais distritos da zona rural de Jijoca de Jeri, isso só ocorreu na segunda metade dos anos 1990. Mais de 20 anos depois.
Por esse tempo, meu avô já contava mais de 70 anos, mas continuava muito convicto das suas decisões. Na casa dele, nunca existiria uma televisão, porque com ela chegaria a preguiça, a perda de tempo com coisas inúteis, assim como a imoralidade. Para todos que chegavam para sentar nos bancos rústicos da sua sala, ele dizia, abertamente: “Só tem três coisas que eu gosto de ver na TV: a Santa Missa, o Nordeste Caboclo e o Nordeste Rural. O resto é tudo besteira e coisa de gente que não tem o que fazer. Enquanto vida eu tiver, não vai ter televisão nessa casa”. Ele falou, tava falado.
Meus primos das redondezas eram todos muito humildes e não tinham televisão em casa. Nesse tempo, por volta de 1995 e 1996, as novelas mexicanas com a Thalia como protagonista eram uma verdadeira febre. Maria Mercedes,
Maria do Bairro e Marimar já faziam as meninas chorarem por seus dramas e suspirarem pelos galãs que faziam o par romântico. Eu, em casa, sempre preferi as novelas da Globo. Mas, de tanto os meus primos falarem, eu acabei indo para a casa de uma pessoa desconhecida ver o que tanto atraía a eles nessas histórias melosas.
Depois de passar o dia todo tomando banho na lagoa, a gente tomava outro banho de cacimba, jantava, se perfumava e esperava dar o horário de ir com uma turma grande, de bem uns dez adolescentes e crianças, encher a sala de algum desconhecido e ver a novela.
Seguíamos no caminho de areia, a lua cheia clareando tudo ou então as estrelas faiscantes naquele céu, geralmente limpo e sem nuvens. Eu gostava de deitar na calçada em frente da casa do meu avô e ficar olhando pro céu, enquanto a turma se reunia. Nesse tempo, já estava aprendendo aonde ficava a constelação de Escorpião. Depois de todos reunidos, a gente ia rindo e se empurrando, em tempo de cair nas veredas e nos pés de cerca. Alguns, mais ousados, tentavam ir abraçados ou de mãos dadas. Adolescência é fogo.
Ao pensar nesse ritual de preparação para ver a novela, eu lembro logo dos perfumes e hidratantes da época. Eu acho que ainda estava na minha fase de perfume da mercearia, com o popular Gellu’s. Meus primos usavam as colônias mais famosas da Avon, que depois viraram aquelas da embalagem de cristal. Era o Charisma, o preferido da minha avó, o Topaze, o Timeless. Graças a Deus, ninguém gostava muito do Toque de Amor, ô perfume enjoento! Também tinha o Musk Fresh e o normal. Hidratante também era importante, até porque eu ficava quase com insolação porque não usava protetor solar. Ou era Monange ou os da marca Paixão. Nesse tempo, só existia o azul e o rosa. Até hoje quando eu sinto o cheiro, lembro desse tempo bom.
Na sala da pessoa desconhecida, a gente sentava no chão e lotava de gente, até ficar perto das paredes. Todo mundo em silêncio, para não atrapalhar os donos da casa. Os menores sempre dormiam no nosso colo. Depois, sempre as perguntas de onde éramos, quem eram os nossos pais. “Ah, vocês são netos do padrinho/tio Doca. Aquele ali, tem nem perigo de comprar uma televisão. Mas podem vir sempre assistir aqui”, falavam. Depois, soube que os donos da casa eram nossos primos distantes. Lá, as famílias se casam entre si. Acaba que todo mundo é meio parente.
Depois da novela, a gente bebia água de pote. Sempre aquele capricho, o paninho de crochê cobrindo a boca do recipiente de barro. O suporte de madeira com as canecas de alumínio muito bem areadas. Em algumas casas, era até pintado à mão. Algumas vezes, davam refrigerante ou suco de alguma coisa.
Terminou a novela, perto de 20h30 da noite, a gente seguia pelo mesmo caminho de areia, já meio bêbado de sono. Mas a algazarra ajudava a dar uma acordada. Se a casa estivesse quase escura, era certeza de um carão no dia seguinte. Pra escapar da bronca, seria melhor sair antes de terminar a novela. Mas, como a gente ia ficar na expectativa pelo dia seguinte? Ninguém nem ia entender o capítulo. E sempre terminava na melhor parte.
Então, era carão quase todo dia mesmo, tudo em nome de acompanhar os dramas das Marias da Thalia.
Quando a energia chegou
Em meados dos anos 1990, começaram a ligar a energia no Córrego do Urubu. Não consigo lembrar se foi em 1993 ou 1994, mas certamente foi em um desses anos.
Assim que a luz foi ligada, nas férias notamos que os lampiões a gás de cozinha foram guardados no quarto. As lamparinas também. Apesar de ter energia, não havia muita estabilidade e, muitas vezes, se ficava no escuro.
Por esse tempo, o meu pai e os seus irmãos se juntaram para comprar uma geladeira e outros eletrodomésticos, como liquidificador, ferro de engomar e outras coisas. Lembro de uma vez que meu pai mostrou como fazer um suco de manga e de maracujá sem liquidificador. Era só machucar as frutas com as mãos e depois coar como se fosse café em um pano limpo. Achei interessante. O fogão a gás já havia algum tempo que dividia seu papel com o fogão a lenha.
Conversando com outras amigas que tinham o hábito de visitar os avós no interior, percebi que na nossa família, as coisas eram um pouco diferentes.
Na casa dos meus avós, nunca houve uma pessoa fixa para ajudar com a casa. Geralmente, alguma neta das redondezas vinha dar uma força com a arrumação e as roupas, mas nunca teve funcionário.
Minha tia Teresinha sempre assumia a cozinha nas nossas temporadas por lá. Eu já amava a comida dela de muito antes, porque era a tia que morava mais perto da minha casa. Era ela na mesa e no fogão aprontando o almoço e a minha avó no tucum rindo e conversando. Sim, tínhamos uma rede de corda na cozinha. Era lá que minha vó Maria gostava de comer em sua bacia, brincando que era pra não ter fastio. E que todas as suas dobras na barriga não eram sinal de que ela era "forte". "É só escuma", ela ria.
Por esse tempo, nós já tínhamos nossos dez, onze anos. E quando escurecia, depois do jantar, como tinha uma lâmpada amarela pendurada para o lado de fora, a gente sentava na calçada e ia brincar de passa anel pra pegar na mão uns dos outros e de cai no poço, pra, quem sabe, beijar pela primeira vez.
Éramos uma turma de mais de dez primos e vizinhos. Os meninos mais velhos talvez tivessem uns 15 anos. E ainda tinha as crianças, que vinham só pra curiar.
À essa época, eu já tinha meus amores bestas e platônicos e ficava esperando que ele dissesse salada mista quando chegasse a minha vez. Ou pelo menos maçã, que era um selinho.
"Cai no poço/ Com água aonde?/ No pescoço/Quem te tira? /meu bem!/ pêra, uva, maçã ou salada mista?"
Olhos fechados, coração quase saindo pela boca, mãos suadas. Mas o menino nem chegava perto. E na única vez que chegou, disse pera, só pra pegar na minha mão. Que ódio!
Nesse tempo, eu entrava de volta na velha casa pisando forte. Bebia um copo de água do pote e me acalmava pra passar a raiva. Nunca gostei de menino tímido. Não gostava de tomar iniciativa.
Nesse tempo, eu já aprendi que nem sempre a gente consegue o que quer.
Depois, eu soube que as crianças, os irmãos menores, com seis, sete anos, iam pra perto da gente só pra vigiar e contar as nossas aventuras para os nossos pais. Na verdade, ainda bem que o menino só pegou na minha mão. Se tivesse dado um beijo, era capaz de eu levar uns carões. Valeu a pena.
A rotina do relógio do sol
Na casa de Doca e Maria, a energia elétrica só chegou em 1994. Dessa forma, eu ainda passei cinco anos experimentando, nos feriados, o que era a rotina de viver sem os luxos da eletricidade. Dos seis aos 11 anos, eu ainda era menina pequena e, pelo menos uma vez no ano, estávamos lá para aproveitar esse tipo diferente de infância.
Digo que era a rotina do relógio do sol não só porque era o astro rei quem governava tudo, mas também porque meu tio Lino nos ensinou como fazer um desses, usando um galho, em uma parte iluminada, no meio das mangueiras. Eu e os primos observamos a engenhoca dele, mas não demos tanta atenção. Nem precisávamos saber as horas para viver sob o domínio do Sol. Os adultos nos avisavam da rotina.
Então, como menina da cidade, nem os galos atrapalhavam a minha vontade de dormir. No entanto, era regra da casa não ficar deitado depois das 6 da manhã. Meu avô, sempre muito trabalhador, considerava uma afronta ter qualquer pessoa que não estivesse doente, ficar deitada depois desse horário. Então, antes das seis, meu pai já vinha bater na minha rede para eu levantar.
Me arrastando, morrendo de preguiça, eu calçava a chinela e seguia para o lado de fora da casa, para o banheiro improvisado. Depois, era hora de escovar os dentes. Muito cuidado para não sujar os pés, a roupa ou o caneco de alumínio com a pasta. E nada de gastar mais do que uma caneca de água para escovar e lavar o rosto. Sentada na cadeira de couro de boi, que meu avô sabia fazer, eu esperava ansiosa a tapioca com margarina primor e o café.
Dali a pouco, por volta das sete da manhã, a casa ficava cheia. Os amigos e parentes da redondeza vinham conversar com a gente. Chegavam meus primos e a bagunça tava feita. Às vezes, a gente ficava pela sala, se balançando nas redes até quase virar. Ou correndo no meio da sala, ou se pendurando nos punhos das redes.
Outras vezes, caminhávamos no enorme terreno que ia até a beira do Córrego em busca de manga e araçá. Ou para caçar os pintos e borboletas. Com o sol mais alto, geralmente às 8h30 ou 9h, a gente vestia a roupa de banho e seguia para a lagoa. Da casa dos meus avós para a Lagoa do Paraíso, era menos de cinco minutos. O caminho era uma vereda estreita, com plantas que arranhavam as pernas da gente.
Quando o sol já estava quase no meio do céu, era hora de ir para casa almoçar. Antes de se sentar à mesa, um banho com água da cacimba, puxada pelos adultos. Depois do almoço, a rede convidava para um cochilo. A casa ficava em silêncio. Com o sol baixando, por volta das 15h30, a gente voltava pra lagoa e esperava chegar o frio que o vento trazia aos nossos corpos molhados e enrugados de tanto tempo na água para voltarmos para casa. Por volta das 17h.
Outro banho, dar de comer às galinhas. E esperar o jantar. O sol se pondo, a gente acendia as lamparinas. Uma para cada cômodo. Geralmente feita de uma lata de óleo ou de veneno pra barata. A longa chama fazia medo e fascínio. Na sala, os dois lampiões, que tinham um botijão de gás como combustível, eram acendidos pelo meu avô e logo juntavam mariposas ao seu redor.
Os adultos chegavam e lotavam os bancos rústicos de madeira. Risadas, conversas de adulto, as novidades nas conquistas financeiras de cada um. Os idosos que morriam. Na cozinha, as mulheres se ajudavam na limpeza. Os restos de comida seriam para os gatos e porcos. Não havia geladeira.
Nós, crianças, ficávamos do lado de fora aproveitando a luz das estrelas. Passa anel, cantigas de roda. Mais velhos, o cai no poço. O frio na barriga para saber quem ia beijar quem. As conversas altas rareavam, a casa se esvaziava um pouco. Sabíamos que estava perto da hora de se despedir. Mas aproveitávamos até que alguém viesse fechar as portas.
Lavar os pés. Deitar na rede, para dormir embalado pelo som dos grilos ou dos gatos que se amavam nos telhados. Um breu, aquela escuridão profunda. Até que o sol, os galos e a batida do meu pai viessem me acordar de novo.
A memória que se esvai no leite
Boa memória recente nunca foi algo que eu pudesse me gabar de ter. Desde bem jovem, eu tinha uma certa dificuldade de lembrar o que almocei no dia anterior, por exemplo. As fórmulas de matemática, física e química só eram memorizadas após muitos exercícios e, às vezes, eu precisava gravar e ouvir no walkman.
Então, não sei se pela privação de sono ou mesmo por alguma mudança química no cérebro, essa perda de memória recente deu uma piorada absurda enquanto eu amamentava meus filhos.
Da filha maior, hoje com 15 anos, eu não me recordo de muitos episódios assim. No entanto, do caçula, de oito anos, tive duas situações marcantes.
Nas casas que morei, não tínhamos o hábito de fazer cópias das chaves. Geralmente, era eu quem fazia as compras do dia a dia. Nesse dia, em específico, eu tranquei as crianças e fui no supermercado, na papelaria e na padaria. Ao voltar com as compras, uns 40 minutos depois, notei que a chave que eu tinha levado na mão não estava mais comigo. Só as sacolas. Senti um frio na barriga e fiquei tentando lembrar onde eu poderia ter deixado. Primeiro, esvaziei as sacolas para ver se estavam lá. Não achei. Então, deixei as compras com a vizinha de baixo e voltei nos três lugares. Não encontrei as chaves em nenhum deles.
Voltei pra casa desolada, pensando se daria tempo ligar para um chaveiro. Ao chegar no portão, senti um incômodo gelado no sutiã. Nem era o leite descendo. Sim, a chave estava dentro do meu sutiã. E eu rodei o bairro inteiro procurando.
Outra noite, quase dez horas, eu juntei os lixos do dia e fui deixar na esquina, para a coleta de sempre. Abri o portão e segui com as duas sacolas de lixo na mão. Ao voltar pra casa, onde estavam as chaves que eu abri o portão? Não sei.
Fiz o caminho de volta bem atenta, com a lanterna do telefone, olhando cada cantinho de terra, as calçadas. E nada! Eu tinha ficado na rua de novo. E dessa vez nem podia chamar o chaveiro, porque era tarde.
Depois de refazer esse percurso três vezes, eu peguei o lixo de volta e, chorando de cansada, joguei tudo no chão, em busca da chave perdida. Estava dentro do lixo. Eu talvez tivesse deixado cair dentro do saco enquanto recolhia tudo. Ou no caminho pra esquina.
Eu recolhi o lixo de novo, chorando muito, tremendo e me dando conta que eu não lembrava da última vez que tinha dormido uma noite completa e que minhas roupas tinham um cheiro estranho de leite. E que eu estava à beira de um surto. Pedi desculpas as vizinhas que ficaram assustadas com o meu descontrole e aquela cena de eu procurar a chave no lixo.
Não sei se foi nessa noite que eu percebi que precisava inventar um jeito de aliviar minha rotina de mãe e dona de casa de algum jeito, procurar um café com amigas ou ir no psicólogo do posto. Eu não lembro. Mas passou.
Não amamento mais tem seis anos. A memória que eu tenho hoje ainda não é totalmente boa. Mas, pelo menos, ficaram essas lembranças meio hilárias, meio desesperadoras, na mente. Que sirvam para que alguém que estiver passando por esse período, não se sinta tão sozinha. E passa, viu!
Amamentar é dor e alegria
Amamentar é aprender a conviver com a dor. Nem todas tem o alívio disso com o tempo. Outras, não produzem leite nenhum por inúmeros motivos. Nesses casos, é mais indicado partir para a fórmula. Amamentar ou dar a fórmula alimentam o bebê. Que nenhuma mãe se sinta menor por não ter conseguido prosseguir nessa peleja.
Na minha vez, não tive preparação prévia nenhuma. Banho de sol no mamilo e outras técnicas passaram batido na primeira gestação. Depois de uma cesárea agendada, eu e minha filha tivemos nosso primeiro contato pele a pele. Ela, com uma fome desesperadora, um choro igualmente agudo, tentava se saciar em mim. Eu, cheia de dor de cabeça porque não fiquei na posição correta depois da cirurgia e na barriga, por não saber calar a boca, não sabia nem sustentar no braço aquele pequeno ser.
A dor da amamentação era mais uma para o meu corpo dar conta. Depois, ainda teve a dor lancinante de ter uma bexiga transbordante e um corpo que não conseguia urinar por causa da anestesia raquidiana. Eu me sentia como se cada uma dessas dores desativasse a outra. Parecia que tinha muitos botões para acionar, com sensações horríveis diferentes.
A pior de todas foi a dor de levantar da maca depois da cesárea. Eu pensava que cairia para a frente. Na minha barriga, o excesso de pele da gestação e os gases da cirurgia pareciam conter várias espadas espessas e afiadas. Hoje ainda, quando fecho os olhos, lembro daquela dor grossa. Se é que podemos descrever uma dor dessa forma.
Em casa, os gritos da minha filha indicavam que a água preciosa, o colostro, cheio de anticorpos, que saía dos meus seios, não era suficiente. Foi necessário me fazer muito de doida e fingir demência para que eu explicasse a cada uma das mulheres mais velhas que não era hora de dar a fórmula, que isso atrapalharia o processo de descida do leite porque ela não me sugaria mais. Fui firme, me fazendo de surda.
Enquanto elas tentavam me convencer a comprar a fórmula, porque minha filha era o primeiro bebê da família e ninguém tinha amamentado os próprios filhos antes, souberam de receitas caseiras que poderiam me transformar na fonte que minha filha precisava.
Na noite do segundo dia em casa, inchada da cirurgia, com um pijama ridículo de botões, elas me trouxeram duas jarras. Uma continha suco de caju forte, daqueles de garrafa. A outra, eu só poderia tomar no dia seguinte e tinha rapadura preta mergulhada em água. Garantiram que meu leite desceria se eu tomasse aquele suco. A água de rapadura era para eu me fortalecer, que eu já andava meio amarelada.
Foi só tomar o primeiro copo de suco de caju e meus seios pingaram leite de verdade. Era branco, o líquido. Aquele formigamento nos mamilos, eu lembro bem. Uma gastura boa, não sabia explicar bem a sensação. Trouxeram minha filha e ela sugou com vontade, a barriguinha se satisfez e foi o primeiro cochilo mais comprido em dois dias insones.
A dor no peito ficou pior. Os seios inchados, cheios de veias azuis, o leite pedrou. Deu febre. Os mamilos racharam, sangraram. Quinze dias depois, encaliçou. Eu segui insistindo até chegar a esse ponto. Valeu a pena, vivemos longos nove meses de puro deleite. Só interrompido quando nasceram os dentes. Ela brincou de me morder, tive de gritar para que parasse. Obedeceu.
Na segunda gestação, sete anos depois, a experiência foi totalmente outra. Meu filho calou o choro ao ouvir minha voz depois de sair da minha barriga em outra cesárea agendada. De novo, não consegui calar a boca. Nosso contato pele a pele foi difícil, dolorido, mas eu estava ainda grogue da anestesia misturada com a pressão meio alterada. Eu pensava que morreria. Passei o oitavo mês todo de repouso, em casa.
Não tive as dores que senti na primeira vez. Já sabia que teria que ficar na horizontal sem apoio para não ter enxaqueca da anestesia. Consegui urinar, levantei sem a dor absurda da primeira vez. Só tive que conviver com a dor do mamilo e a dos gases, porque o silêncio nunca foi o meu forte. Meu filho era silencioso. Dormiu a primeira noite toda no hospital. Aparentemente, o leite já havia surgido. Engano meu.
Cheguei em casa, tive uma crise de hipertensão. Meus pés ficaram absurdamente inchados e meu filho só sossegava grudado no peito. Não havia leite nenhum, só o colostro. Fiquei 24 horas com ele nos braços sentada em uma cadeira. Se ele se afastasse, o choro começava. Muito mais alto do que eu lembrava.
Quatro dias se passaram e nada funcionou. Suco de caju, rapadura, canjica, cuscuz. Nada fazia o leite descer. E o choro dele não parava. Apelei pra uma amiga solidária. Nunca esqueci da carinha dele de sossego depois de mamar por uma hora nela. Fui dormir, me alimentei, tomei um banho e depois de um sono de talvez umas 4 horas dele, finalmente o leite apareceu.
Dessa vez, não teve rachadura e o encaixe foi mais tranquilo. Ficamos nesse chamego por dois anos e meio. Eu tive que dar um basta porque ele só dormia com um dos peitos na boca, nem era mais pelo leite. E tinha que ser sempre o mesmo e na rede. Fiquei com os seios desiguais por um tempo.
Hoje, olhando para os meus filhos, parece que éramos outras pessoas, apesar de lembrar de todas as sensações. Quem puder, prossiga nessa peleja boa da amamentação. Para nós três, fortaleceu os laços e a saúde. Sou feliz por ter insistido.
O fio invisível
Existe uma intrincada rede de linhas invisíveis que nos ligam. Não sei explicar essas conexões, mas tenho aprendido que em alguns momentos elas parecem ficar mais complexas e nos aproximam. Essas ligações, me parece que depois de giros que o tempo rotaciona, nos colocam frente a frente com pessoas chave. E isso é muito interessante.
Essa semana, conheci um cronista pernambucano, o Anthony Almeida. Eu faço parte de alguns coletivos literários, mas só apareço nas reuniões esporadicamente. Na dessa semana, dos Andantes Literários, eu levei um dos primeiros contos que escrevi, com esperança de dar uma lapidada e, quem sabe, concorrer em algum concurso literário.
Na reunião, eu soube que o Anthony criou, em parceria com um amigo, uma revista literária só de crônicas, a Rubem, em 2013, ano do centenário de Rubem Braga. Inclusive, o outro editor da revista, Henrique, chegou a ir na exposição que homenageava o autor, no Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo, nesse mesmo ano.
Eu vi essa mostra, em julho de 2013. Fui com minha mãe e a filha. Estava de férias na cidade, quando conhecemos juntas aquele equipamento cultural. Tirei fotos da minha filha de todo jeito, procurando os passarinhos nas sombras, que era uma intervenção por causa do livro O Conde e o passarinho, no telefone do Rubem, com a edição do Cem Anos de Solidão, que eu comprei aos 17 anos. A minha edição era a mesma capa da editora do Rubem Braga, a Sabiá, que lançou no Brasil o livro do Gabriel, em 1968, ilustrada pelo Carybé. Minha mãe ainda levou todas as crônicas em papel que participaram da mostra.
Nessa época, eu lembrava do Rubem apenas dos livros da escola, quando aqui, acolá, aparecia algum texto dele como exercício de interpretação de texto. (Leiam “Ao respeitável público” - uma das minhas preferidas, acho que estava em algum livro do Ensino Médio, quando li a primeira vez). Fiquei impressionada porque ele era super amigo da minha turma de escritores preferidos, o Vinícius de Moraes, o Paulo Mendes Campos, o Graciliano Ramos, o Fernando Sabino.
Saí da exposição direto pra Livraria Saraiva para comprar o livro mais barato do autor que eu achasse. No caso, peguei uma ediçãozinha bem fuleira, da Best Bolso Vira-Vira, que é do Grupo Editorial Record, que continha “Ai de mim, Copacabana!” e as “200 Crônicas Escolhidas”. Acho que me custou só uns 12 reais.
Esse livro me acompanhou na bolsa por uns seis meses. Eu me sentia amiga do cronista, com tanta leitura seguida. Era só encontrar cadeira no Circular 1, colocar os fones e ler uma ou duas crônicas no longo caminho entre o trabalho e a minha casa. Depois, eu ficava só olhando para o tempo mesmo, degustando o que li. Nesse tempo, eu nem sonhava em escrever algo autoral, mas já gostava muito do gênero crônica, principalmente as jornalísticas.
Agora, dez anos depois, eu conheço alguém que criou uma revista por causa do autor e ainda viu a mesma exposição. Que coincidência bacana! Por isso, sigo aproveitando todas as oportunidades de shows e exposições dos artistas que eu gosto. Nem preciso de companhia pra esse tipo de evento! Isso me alimenta e empolga na escrita. A arte une e transforma. Disso, eu não tenho dúvida.
Mas, voltando ao meu conto, com o Anthony e os demais integrantes do coletivo, peguei algumas dicas muito boas. A história, muito provavelmente, terá que ser ampliada, porque rende uma novela ou mesmo um romance. A minha protagonista real, a Maria, merece mais profundidade e contradições. Era mulher negra, semianalfabeta, costureira, solteira e sem filhos. A minha vizinha mais querida, com quem eu dormia quando minha mãe foi morar em outra cidade, depois da separação dos meus pais e quem me ensinou a cortar um frango e fazer sopa de feijão. Na vida real, morreu sozinha em um asilo, sem saber do próprio nome, que o Alzheimer roubou. Isso vai me dar muito trabalho, será um projeto de fôlego, para depois do outro livro de crônicas. Vou colocar no caderno dos próximos sonhos a realizar.
O último chopp de vinho
Sou uma viajante do tempo. Amo ir a lugares que sugiram esse tipo de “teletransporte”, principalmente, os que já estive em outras épocas. Nos meus tempos de adolescente, um dos meus programas preferidos era flanar pelos poucos centros culturais que Fortaleza dispunha. Fim dos anos 1990, começo dos 2000, que eu me lembre, só tinha o Theatro José de Alencar, o Centro Cultural Banco do Nordeste e o Dragão do Mar.
No Dragão do Mar, lembro bem que eu sonhava em ir para uns saraus que aconteciam aos sábados. No fim do ano 2000, tinha um colega de sala que escrevia poesia e chegou a me convidar. Eu, menina presa que fui até o Ensino Médio, não tinha permissão para sair à noite no fim de semana. Então, fiquei sem saber como era.
No ano seguinte, 2001, a liberação foi geral. Maioridade no fim do ano, universitária e sem mãe na minha cola, eu já era adulta oficialmente. Então, comecei a frequentar o Dragão. Acho que em 2002, bebi meu primeiro chopp de vinho, no chopp do Bixiga. Não lembro muito bem se foi com minha turma de amigos, namorado. Sei que descia suave, do jeito que eu amo bebida alcoólica, até hoje. Tomo uma taça. No máximo, duas.
A primeira vez que provei a bebida, eu, de fato, não lembro. Mas me recordo das vezes seguintes. Em um Dia dos Namorados, eu conheci o estabelecimento vizinho, o Amicis, que tinha uma pizza fantástica, com uma sangria igualmente espetacular. No Bixiga, eu ainda fui pra um show na parte superior. O chopp era forte e doce, facílimo de fazer a pessoa se embriagar, especialmente eu, que não tenho o hábito de beber. Então, em uma vez, eu tomei dois. E fiquei quase sem conseguir ir sozinha até o banheiro, com um formigamento nas extremidades, uma alegria fora do normal, rindo do vento. Precisei de comida, água e algum tempo para voltar a ter um pouco de sanidade. Talvez tenha sido nesse dia que eu tomei um banho de chuva e me abriguei embaixo do planetário ensopada. O Chopp deve ter sido antes do show do Arnaldo Antunes. As lembranças são desencontradas. Faz mais de 20 anos…
No dia dos 24 anos do Dragão, depois do show do Fausto Nilo, eu e as minhas amigas, que não conseguiram assistir esse show, passamos antes de ir embora no Bixiga pra se despedir. O famoso estabelecimento, um ano mais velho do que o Dragão do Mar, ia fechar as portas no fim do mês de maio. Então, era agora ou nunca que eu ia ver se esse chopp ainda era bom.
Como eu tinha que voltar cedo pra casa, porque os meus filhos me aguardavam, comprei um copo descartável mesmo com o chopp de vinho e dividi com a Lyanna. Meio copo apenas. Uns 200 ml ou talvez menos. Não sei se foi a fome ou porque era forte mesmo. Tinha um gosto bom de Fanta Uva ou Grapette. Tomamos rapidamente e entramos no carro. Quando eu saí do carro, já estava levemente alta, o mesmo formigamento nas extremidades. Imaginei a situação que eu estava quando tomei dois, aos 19 anos. Fiquei impressionada. Não era à toa que o pessoal dizia que para vomitar era um pulo. Não duvido mesmo. Então era isso e um pouco mais, a sensação e o sabor… Gostei.
Estamos no meio de junho e indo trabalhar, percebi, estarrecida, que o sobrado histórico, dos anos 1920, que abrigou o Chopp do Bixiga por 25 anos está com portas e janelas fechadas com tijolos. Quando eu falei pra minha colega de trabalho, ela disse que deveria ser impressão minha. Era um prédio histórico. Pode isso? Quando eu vim de ônibus, tive certeza. Era verdade mesmo.
E quem disse que aqui em Fortaleza prédio histórico é preservado? Se derrubaram casarões em processo de tombamento, como a Chácara Flora e até o Casarão das Pianistas Gondim, imagine estabelecimentos comerciais sem proteção, como deve ser o caso desses que ficam embaixo da passarela do Dragão do Mar.
O que será que vai acontecer com o finado Bixiga? Vai ser um puxadinho de uma das boates que estão funcionando ali do lado? Vão derrubar? Vai virar uma farmácia? Um estacionamento?
Vamos aguardar os próximos capítulos. No meu caso, com raiva e tristeza.
Carta para Fausto Nilo
Demorei para processar o que foi aquele nosso primeiro encontro presencial. Meus olhos irritados, depois das lágrimas. Era a primeira vez em toda a minha vida que eu entrava em um camarim depois do show.
Antes, a fila imensa, os ingressos esgotados. E eu me culpando de ter ido tomar um banho antes do show. Isso atrasou nosso encontro. Bastava eu ter ficado na fila assim que acabou o expediente. Trabalho tão pertinho.
As amigas que me acompanharam, ajudaram a ter coragem de buscar uma forma de conseguir ver esse show. Eu precisava te ver de perto. Entregar o livro que foi gestado com a sua trilha sonora, que homenageia em um dos textos uma das suas obras mais icônicas: o Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura. Era a festa dos 24 anos de fundação desse equipamento cultural tão importante na vida de tanta gente. Especialmente na minha geração, que viveu a adolescência no fim dos anos 1990.
Quando o Dragão do Mar foi inaugurado, em 1999, eu tinha 16 anos. Talvez eu tenha ido pela primeira vez no ano seguinte da sua abertura, em 2000. Minha turma de amigos tinha na P.I. o point das festas e encontros. Nossos rolês geralmente incluíam a Ponte dos Ingleses, que a gente chamava de metálica e depois, uma parada no Dragão para descansar embaixo do planetário. Inclusive, era lá que a gente se abrigava para passar a noite e esperar o primeiro ônibus. Quando o dia ia amanhecendo, seguíamos a pé para a Avenida Imperador pegar nosso transporte para o Araturi. Tempos tranquilos.
Costumávamos ver as atrações da programação e no início dos anos 2000, não foram poucas as vezes em que estivemos nos shows gratuitos da Praça Verde e do Anfiteatro. Entre eles, Cordel do Fogo Encantado, Arnaldo Antunes, Renegados, Nana Caymmi.
E você desenhou esse lugar! O palco dos meus amores, dos risos, das lágrimas, da rouquidão pós-show.
Com as suas canções, eu escrevi o Cidades Invisíveis. Em algumas crônicas, o rascunho se molhava com as lágrimas. Juntava a saudade daqueles momentos bons com a sensação de que eu não poderia mais ir. Na primeira onda da pandemia, o medo era da morte impedir o reencontro. Depois, foi o engodo da vida e a violência urbana.
Eu olhava as imagens da internet, colocava Cidade Tatuada nos fones e a inspiração surgia. Quando o amigo que escreveu a orelha do livro, o Bruno Paulino, me disse que você também era de Quixeramobim, eu ampliei meu repertório. Mas foi só no show que eu soube da tua parceria com o Ritchie, de Menina Veneno, na composição.
Tenho Fortaleza tatuada em mim por dentro. É invisível, me eriça os pelos. Está nos meus olhos, na língua e nas mãos que me fazem escrever. Pretendo tatuar de verdade um dia a capa do livro e o Mara Hope, nos traços do Vando Figueiredo. E um verso teu. São tantas poesias, que eu ainda não consegui escolher.
Mesmo com meu atraso, a fila imensa, os nãos da organização, consegui te ver cantando nos 24 anos do Dragão. A Luciana Targino, escritora independente como eu, avisou sua filha que eu tinha um livro para entregar para você. Deu certo. Sentei em uma das cadeiras vermelhas daquele teatro lotado. Ao meu lado, um fã sabia todas as canções de cor. Cantei junto com ele, a maioria, mesmo sem conhecer o rapaz. Em outras, o choro me fez tossir. Engasguei de tanta emoção com Dezembros. As lágrimas caíam e eu sorri, com Chorando e Cantando e o seu jeito de interagir com o público.
Ao fim, segui sua mulher, sua filha e seus netos para o camarim. Você reconheceu o livro quando me viu. Enviei para o seu escritório no meu aniversário. Pensei que tinha extraviado. Estava com você. Ganhou mais um, foi só o que eu consegui dizer antes da foto.
Obrigada pela sua arte em tantas canções, por ter desenhado o meu Dragão do Mar, por sua simpatia, seu jeito único de interagir com o público, por esse show tão emocionante. E pela foto que tiramos juntos. No aguardo do próximo show.
A volta da licença
O Joãozinho ganhou uma competição na escola. Ele teve a pontuação mais alta, de 40, por se esconder embaixo da mesa sem ninguém ver. Quando eu voltei do meu primeiro dia do emprego, após sete anos sem trabalhar fora de casa, ele me contou esse feito, todo animado. Só depois que eu fui entender que essa era uma forma lúdica para que as crianças aprendessem a se esconder dos assassinos, que vitimaram várias nos últimos meses, naquele fatídico massacre em uma creche.
Nesse mesmo dia, a minha filha mais velha faltou aula. Aluna de uma escola militar, o pavor era ainda maior entre os adolescentes. Os pais, em geral, têm porte de arma por serem policiais. Depois da pandemia, são muitos alunos em tratamento psicológico. É comum o boletim cheio de faltas, por medo e ansiedade. Vai que algum desses adolescentes leva a arma do pai pra escola pensando em tragédia ou vingança?
Nesse dia, até a escola do pequeno, que é creche, ficou mais vazia. O grupo das mães, no Whatsapp, exibia vídeos assustadores. E eu me acalmando, tentando lembrar que nada apressa o dia das nossas mortes. Tudo nas mãos do Deus soberano. Nada foge dos seus planos.
Eu me pergunto: quanto tempo vou ficar com frio na barriga? Essa ansiedade é normal?
Das outras vezes, o meu peito tinha leite. Lembro bem da sensação desagradável dele enchendo, aquele formigamento involuntário. Ter que andar com o absorvente no sutiã e trocar várias vezes durante o expediente. As muitas mensagens perguntando se os filhos estavam bem, se tinham comido.
Da primeira filha, a volta depois de seis meses. Logo que voltei, peguei um ritmo tão pesado que o leite secou. Saía às 7h e voltava 22h30. Dois empregos, pra ver se daria para garantir ficar em pelo menos um. Um deles, já era certeza estar perdido. A vereadora não se reelegeu, mas o temporário poderia gerar algo definitivo.
O ano novo entrou comigo desempregada e sem nenhum direito trabalhista. O dinheiro do emprego temporário só daria para janeiro. Ninguém sabia como seria o mês de fevereiro. A menina faria um ano com os pais desempregados. Eu nem lembrava mais disso. Mesmo assim, ainda fiz um bolo de cenoura, o único que eu sabia e comemos juntos para celebrar o aniversário dela. Em abril, eu arranjaria um emprego fixo de novo. Nesse, passaria sete anos da minha vida.
Da segunda licença, o retorno foi antes de completar quatro meses. Depois de um treinamento que não me recordo bem, consegui manter a amamentação. Guardava cinco garrafinhas de café solúvel com o leite. O pai revezava os cuidados com uma babá. O leite enchendo o peito. Minha mente cheia de planos para depois dos dez meses, quando eu sairia do emprego formal para me dedicar ao cuidado com eles dois.
Nunca mais perder o primeiro passo, nem a primeira palavra. Acompanhar cada pequeno avanço das crianças, estudar pra concurso, aprender a cozinhar. Fazer um blog independente, ler mais, ensinar a tarefa da filha, participar das festinhas na escola. Passear com a família, viajar com eles. Era tanta coisa boa prevista.
A realização dos planos ficou viva na mente por um ano. Depois, foi tudo escurecendo, degringolando. Como um castelo de cartas, tudo foi caindo e se despedaçando. Até que virou pó. E cobertos com ele, depois que tudo foi destruído, vamos seguindo.
Quando o João tirou dez em se esconder dos bandidos, eu recordei que quem sabe o subconsciente dele saiba que as regras de segurança a gente já conhece porque tivemos que treinar em casa. Em 2019, por causa de uma briga de facções, deitamos no chão pra nos proteger das balas que mataram uma menina de 14 anos no bloco atrás do nosso. Antes desse incidente, já tínhamos sido lembrados disso muitas vezes. Morando em uma área perigosa e casada com um profissional da segurança, eu sabia que a qualquer momento poderia ter que sair do carro em movimento por uma tentativa de assassinato. Paz era uma palavra que a gente sabia que existia, de nome. Ela não significava muita coisa. As coisas melhoraram um pouco depois da mudança pro condomínio fechado, onde estamos até hoje. Mesmo assim, não acredito que ele lembre dessa noite. Ele só tinha três anos.
Ainda não tem um mês que voltei da minha licença de sete anos. Todo dia tem um desafio novo. Já teve medo de assalto nos coletivos, chocolate derramado na minha bolsa, muitos calos e feridas nos pés pelo desacostume de andar calçada de novo o dia todo. A preocupação com os massacres deu uma trégua. Agora, estou aflita por causa de uma garganta inflamada no menino pequeno.
É verdade que a gente continua aflita o resto da vida e só mudam os motivos?
Feliz Dia das Mães
Fortaleza cíclica e o fim do Bixiga
no Dragão do Mar
Custei a me acostumar com o sabor de bebidas alcoólicas. Parecia podre, amargo. Cerveja, por exemplo, eu nunca fui muito fã. Provei gin e achei horrível. Ali pela adolescência, fui provando a sidra Cereser ou Chuva de Prata nas festas de fim de ano. Uma taça bastava. Achava legal apenas as bolhas. Aquela sensação explosiva na boca. E uma leve tontura, um rubor nas faces.
Depois dos 18, o passe livre pras festas. Os tributos às bandas que eu gostava ali pela praia de Iracema. Hey Ho, Canto das Tribos, o próprio Dragão do Mar e outros locais que eu não lembro agora.
Era o tempo do vinho São Braz gelado e do Run Montilla com Coca e limão. A gente levava de casa nas mochilas. Como sempre fui bem controlada, bastavam dois copos pra alegria estar garantida a noite toda.
Essas mesmas bebidas estavam sempre presentes naquela praça do bairro. Mas eu guardava o momento com as bebidas só para as saídas pra longe. Nos dias de praça era bom conversar e ouvir música nos violões dos amigos.
Repertório incluía Legião, Engenheiros, Ira!, Titãs. Aqui, acolá, alguém arriscava um hit do Led Zeppelin ou do Metálica.
Depois que comecei a estagiar, o dinheiro ficou um pouquinho melhor e resolvi provar os sabores daqueles barzinhos do Dragão. Eram os primeiros anos do novo milênio e três casas estavam bem instaladas naqueles três sobrados históricos.
O primeiro era o Chopp do Bixiga, com festa no andar superior. Fiquei lá fora algumas vezes, cheguei a subir em outras. Provei a bebida, gostei muito. Era doce e eu já gostava de vinho tinto suave. Depois das habituais duas doses, levantei da mesa e percebi que era tão forte quanto as caipirinhas da beira da praia.
O chão mais fundo, a leve tontura, a vontade de rir avisavam que era hora de parar. Mas o sabor era tão bom! Eu queria mais.
Depois de ir ao banheiro, beber um copo de água e provar umas bolinhas de peixe, tomei mais uma caneca.
Uma chuva torrencial veio a seguir, pagamos a conta e corremos para nos abrigar embaixo do planetário do Dragão. Com os três chopps eu não conseguiria subir as escadas. E dentro ficou muito cheio. Não existiam ainda aquelas grades de hoje.
Além do Bixiga, eu também fui no sobrado vizinho, o Amicis pra comer a pizza e provar a sangria. Tinha samba em alguns dias, mas eu era do rock. Gostava mesmo era da gastronomia. Veio a formatura, o emprego fixo, gravidez e eu deixei de ir pra aquele lugar tão querido. Voltei com a filha aos dois anos para um festival de bonecos do Sesc. Em vez do Bixiga, achei que a pizza do Amicis combinaria melhor com a família reunida.
A pizza continuava cara, mas o sabor não era mais o mesmo. A demora no atendimento me envergonhou. Eu fiz tanta propaganda. Nunca mais voltei.
Essa semana, soube que o chopp do Bixiga vai fechar as portas em definitivo. Queria ter ido pra saber se tinha o mesmo gosto. Talvez pra chorar um pouco. Porque o Dragão é uma ferida aberta dentro de mim. Meio dia, tarde ou noite, passar por lá me mareja os olhos. O equipamento cultural tem as marcas do que fui. Minhas lembranças melhores. As ousadias. Momentos em família. As idas sozinha ao cinema, ou acompanhada.
Fortaleza é cíclica mesmo. Tenho esperança que com essa nova gestão possamos estar mais por lá. Quero ver o show do Fausto Nilo nos 25 anos do Dragão. Quero ter outras lembranças que me tirem a vontade de chorar. Quero rir e provar outros sabores. Eu sei que terei tempo. Esperança poderia ser um outro nome para o mês de abril em mim.
Páscoa tem gosto
de melancia
Para muita gente, Semana Santa talvez tenha sabor só de chocolate e de peixe. Se você for cearense, quem sabe acrescente o sabor do pão de côco. Mas na minha, o sabor mais forte não é bem esse.
Na casa do meu avô Doca Ribeiro, no Córrego do Urubu, em Jijoca de Jeri, meu destino nas férias e feriados prolongados, a gente comia umas melancias plantadas no terreiro de casa na Sexta-Feira Santa. Eu, que sempre amei melancia, quando soube que ia comer essa fruta fiquei toda animada. Até porque, nesse tempo, a gente só comia as frutas do quintal.
Quando meu avô abriu e eu vi que ela era branca por dentro e não vermelha, achei esquisito, mas ainda tinha esperança que fosse docinha como as do supermercado. Ele então partiu e deu um pedaço pra todos de casa, como fez Jesus na última ceia e ainda distribuiu as inteiras pra todos os filhos que moravam perto. Ao dar a primeira mordida, percebi que a melancia não era doce, mas aguada e sem sabor. Reclamei e o meu avô disse que era uma espécie de penitência comer aquilo no dia da Paixão. Que aquele era um dia de refletir e não de comer só o que se gosta. Fiquei com aquilo na mente e até hoje quando penso no que tenho de mais forte de sabor dessa data, associo logo a essa melancia.
Nem sempre a vida vai ser doce. Muitas vezes, mesmo com vontade de se presentear com algo de sabor agradável, vamos ter que matar a fome com algo sem graça como essa melancia branca. E isso não vai ser totalmente ruim, vai deixar a gente mais forte pras batalhas porque nem sempre a gente faz o que deseja, mas o que é preciso.
Aquelas melancias eram plantadas para aquele fim. Todos sabiam que elas não eram doces. E mesmo assim eram gratos.
Outra lição que aprendi só agora é que as pessoas só podem dar aquilo que têm. Eu não posso esperar doçura de uma fruta que não tem esse capacidade. Essa espécie de melancia nunca ia ser doce. Era sem gosto mesmo. Era dela isso. Então, sem expectativas a vida fica um pouco melhor. Se eu não gostar, é só não comer de novo. Isso, se for possível. No caso do meu avô, ele se ressentia. Era uma desfeita não comer. Então, eu comia só um pouco e ficava mais longe da mesa.
Essa tradição das melancias, assim como todo o ritual da Semana Santa do meu avô, que incluía outras coisas, me fez sentir parte da minha família. E mesmo não sendo gostosa a fruta, estar junto eternizou esse momento.
Mesmo depois de duas décadas da sua morte, eu ainda lembro bem. Isso me faz grata.
Carta para a Duna
Eu tenho me habituado a escrever cartas diferentes para lugares e pessoas especiais. Isso ocorre desde que eu era criança, mas depois que me tornei escritora, passei a fazer isso com mais frequência. Principalmente para os lugares e pontos turísticos, digamos assim.
Sabendo que está perto de entrar no mar e deixar de existir, querida Duna, pensei que seria legal fazer um apanhado dos nossos melhores momentos juntas.
Eu lembro bem do dia em que nos conhecemos. Era uma Sexta-Feira da Paixão. O tempo estava nublado, era perto das três da tarde, talvez.
Na D-20 do meu tio Zé Doca, que nos levou até Jeri, estavam os meus pais, meu irmão, meus tios Lino e Terezinha e mais uns sete primos, todos crianças e adolescentes.
Estacionamos na vila e seguimos para a praia, para subir nas suas areias fofas, o que sempre foi difícil. Até julho do ano passado, mesmo com você bem menor, ainda era. Imagine em 1995? Talvez ainda medisse umas dezenas de metros naquele tempo. A vila já tinha muitas pousadas, mas era muito diferente de hoje. Como passei pouco tempo, nem pude conhecer muita coisa.
Fechando os olhos agora, sinto a "pisa" da areia solta nas pernas, me machucando. Coloquei uma toalha perto da cabeça pra evitar a areia nos olhos. Meu óculos já estava todo sujo, foi o jeito entregar para o meu pai. E fiquei meio cega segurando nos primos, que não perdiam uma oportunidade de brincar com a cara uns dos outros e comigo também.
Pois apareceu um cachorro e eu com medo, corri na descida no rumo do mar. Perdi o equilíbrio e fui bolando até a beira da água, comi punhados de areia até conseguir parar, lá embaixo, toda suja de areia e lama. Por sorte, o óculos ficou com meu pai. As lentes eram de vidro naquele tempo. Eu teria me cortado. Meus primos ficaram muito preocupados pra saber se eu tinha morrido. Podia ter quebrado o pescoço daquela queda.
Essa história ficou registrada na primeira agenda diário que escrevi, ainda com a letra redonda, guardada no meu cesto de vime das recordações.
Mais tarde, nos reencontramos algumas vezes. Eu sempre com um pouco de preguiça de subir aquilo tudo, não tive mais tanta vontade de te revisitar. Até porque existia uma certa dificuldade de encontrar carros pra voltar pra casa depois do pôr-do-sol e eu nunca tive casa pra dormir na vila.
Já nos anos 2000, comecei a subir tuas areias mais firmes pra receber os novos anos. Foram quatro anos seguidos de muita sidra barata, um espetáculo lindo de fogos, abraços e Réveillons cheios de glamour, embora a turma fosse a mesma de 1995.
Com o poder aquisitivo parecido com o de hoje, ou seja, a mesma liseira de sempre, eu me sentia uma celebridade estando no meio de tantos idiomas. A vila virava uma Babel de tanto turista estrangeiro.
E então, eu constituí família e passei quase uma década sem te ver. Em 2014, te apresentei ao meu novo nucleo familiar. Todos encantados com as tuas cores, teu entardecer perfeito, mesmo que o sol não tenha ido adormecer no mar, aquele espetáculo de cores nunca se repete. Vale cada esforço para vencer o sedentarismo. Só depois de voltar pra casa fui entender o cansaço extremo daquela subida, que já não era tão íngreme. Eu estava grávida novamente.
Com a chegada do filho mais novo, outros longos anos sem ir a Jeri. Contribuiu para isso além de eu acreditar que o pequeno não aguentaria o sacolejo da viagem, a cobrança de dinheiro para entrar na vila. Nunca consegui concordar que para ir em uma praia eu teria que pagar uma quantia. Ainda mais tendo laços familiares com ela.
Porém, em 2022, eu decidi que me daria de presente um pernoite por lá. Passei o ano juntando dinheiro pra poder aproveitar como uma turista simples aquela vila tão cara. E deu tudo certo, eu só não sabia que era a nossa despedida.
Em julho, como já escrevi em outra crônica, eu vi o sol descendo de um lado com um quadro impressionante de cores fantásticas enquanto uma lua surreal e enorme surgia do outro.
Nas suas areias, que eu ainda achei difíceis de subir, eu insisti com os meus filhos para contemplar tudo isso. No dia seguinte, quando amanheceu, ainda deitei sozinha nas tuas areias frias. Eu e os passarinhos. Um silêncio.
E era a última vez. Eu nem sabia. A gente nunca sabe quando será. Ainda bem que a gente se reencontrou.
Eu sei que naquele pedaço, a areia gosta de brincar de enterrar e desenterrar. A praia da Tatajuba, ali vizinho, já foi soterrada e tem uma nova, à disposição dos turistas. Um pouco antes, em Almofala, a areia enterrou e desenterrou uma igreja dos anos 1700.
Então, sigo esperando uma nova duna para contemplar meu entardecer transformador. Logo, ela deve surgir. Até logo, Duna. Te encontro nova da próxima vez.
Entulho e prédios espelhados
Nesse mês de março, entrei no Ideal Clube novamente. Com meus passos curtos, de salto alto, eu fui além do restaurante, do auditório e do Piano Bar, dos aniversários e eventos recentes.
O destino era o Salão Edson Queiroz. O espaço mais pomposo e solene, onde ocorreram tantas edições da Sereia de Ouro, bailes, festas, lançamentos, posses e solenidades. O assoalho, talvez original de 1935, denunciava o tempo passado.
Enquanto homens importantes se revezavam no microfone em uma mesa sisuda, eu olhei para cima e percebi o negro das madeiras antigas que sustentavam o telhado. Eram semelhantes à cabeceira da minha velha cama colonial, onde dormi entre os cinco e os 17 anos.
Nessa hora, divagando entre tantos longos discursos, eu lembrei que um dia tudo isso pode virar pó e entulho. Tudo pode vir abaixo. Aqui em Fortaleza, nem mesmo o tombamento de 2005, a nível municipal, poderia impedir.
Falo isso porque já ocorreu um "destombamento", como foi o caso do Edifício São Pedro e várias edificações que estavam em processo de tombamento foram demolidas na calada da noite. Vide o exemplo da Chácara Flora e do casarão das pianistas Gondim.
A solenidade acabou. Quase dez da noite. Os grupinhos se formam para comer os salgados, beber refrigerante, rir, tirar fotos. Eu percebo que não posso ficar mais tempo porque moro longe. Caminho para a entrada para pedir o Uber que me trará de volta pra casa.
Olhando para a frente, na porta, me espanto com outro arrojado arranha céu em construção. São vários os prédios enormes circundando o clube nonagenário. Alguns perto de receber os novos donos, outros ainda em fase inicial.
O antigo condomínio de dois andares, um dos primeiros desse modelo em Fortaleza, muito simpático, pertinho do Ideal, também agoniza. Pixado e com vários apartamentos à venda e para alugar, talvez seja a próxima demolição.
Antes dele, também nas proximidades, no Meireles, outro condomínio desses já deu lugar a outro prédio enorme.
Ao observar esse entorno, não consigo deixar de pensar, aflita, que talvez eu ainda veja o velho clube transformado em entulho para dar lugar a mais um prédio arrojado com vista para o mar. Espero estar errada.
A felicidade está no caminho
Ouvindo a música - O tempo não espera ninguém, do Michel Teló - comecei esta escrita das recordações das minhas muitas viagens para a terra do meu querer bem - Jijoca de Jeri.
Prometi contar um pouco desses percursos de ônibus. Puxando pela memória, os mais remotos foram todos de carro. Os de ônibus talvez tenham se iniciado aos oito ou nove anos. Meu irmão mais novo sempre enjoava. Alguma vez, vomitava do balanço do transporte e eu também não ficava totalmente bem.
Como sempre moramos em Caucaia, a "rodoviária" era aquela velha rua perigosa do Antônio Bezerra que chamavam Rodoviária dos Pobres. Minha mãe segurando uma bolsa ou talvez com meu irmão no colo, revezando com meu pai. Nós todos dando tchau pra ele da janela. Meu pai nunca gostou muito de férias. Pra ele, o máximo de descanso era passar um sábado e domingo e olhe lá.
Ao entrar no ônibus, a mãe comprava pela janela um pacote de bulim, aqueles biscoitões duros de goma e umas seriguelas. Eu que hoje sei da minha Rosácea, ficava com a boca vermelha por causa do pó branco. Mas era bom! A água, a mãe trazia de casa pedrada, numa garrafa de pet de dois litros.
Esses eram os lanches para os longos 300 km que nos separavam da cidade do meu pai. Mas, caso houvesse fome, era só comprar alguma coisa nas mais de dez paradas pelo caminho. Também parávamos para o almoço em algum restaurante na beira da estrada.
Meu irmão, curioso como meu filho caçula, repetia mais de vinte vezes a mesma pergunta: faltam quantas paradas? Eu tentava descobrir aonde estávamos, perguntava pra minha mãe e ela repassava a pergunta para quem estivesse do lado. Dali, já engatava uma longa conversa.
Eu olhando a janela, amava ler as placas. Eram tantos riachos pelo caminho. Se a viagem fosse em março ou abril, embaixo das pontes, era água muita. Se fosse em dezembro, só mato e carnaubeira e eu lembrava da matéria de Estudos Sociais, dos rios temporários. Era o rio Croatá, o rio Curu com aquela ponte grande. Os outros, não lembro bem.
As serras também eram uma atração à parte. Recordo a decepção de ver de perto as serras da Caucaia. Era só arbustos e rochas. Verde quase não tinha. As de Uruburetama, perto de Itapipoca, pareciam mais verdes.
As igrejas eram outros pontos de referência e a gente sabia até os padroeiros pelas placas. São Bento de Amontada, São Francisco de Cruz. E outros monumentos diferentes, como o arco de Bela Cruz e o buraco do sapo em Itapipoca.
Chegando em Cruz, acabava o asfalto, por volta de três da tarde. Um mundaréu de piçarra. Meu rosto já palido do sacolejo, o mau cheiro do banheiro na viagem longa. Desde 9 da manhã na estrada. Era o pior trecho.
Por volta de 4 e meia, cinco horas, finalmente desembarcávamos. Todo mundo descia. Uns pegavam a jardineira pra Jeri. Nós, não. Guiados pelo meu tio Zé e a tia Carminha que moram até hoje na rua principal, íamos até a casa deles.
Era hora do banho frio de balde, trocar de roupa, comer uma merenda. Dali a pouco, assistir, jantar e seguir para a rede. Córrego do Urubu da casa dos avós só no dia seguinte, quando o tio levaria a gente de carro.
A textura e o cheiro da rede continua o mesmo, seja qual for a casa. Talvez seja a água, o sabão. A penumbra da casa com paredes que não iam até o teto. O quarto ao lado da cozinha. O sabor da água de pote no copo de alumínio. É tanta coisa boa. Preciso continuar em breve.
Um carro, muita poeira
e a ansiedade de chegar
Ir visitar meus avós ganhou outros sons, cores e cheiros quando eu passei a ir no carro do meu pai. Logo no ano seguinte ao que cheguei ao Ceará, meu pai comprou um carro. Era um Corcel II bege. Lembro que teve uma batida logo na primeira viagem. Uma Kombi entrou na porta do meu pai. Pra nossa sorte, nada demais aconteceu, acho que só uns arranhões nele.
Era madrugada, não existia ainda aquela exigência de cinto de segurança. Poderíamos estar todos mortos, até porque muito provavelmente meu irmão, que tinha dois anos naquele tempo, devia estar no colo da minha mãe no banco da frente. Será que eu dormia deitada no banco de trás? Não lembro.
A lembrança mais forte desse tempo era a gente sozinho na estrada escura e minha mãe procurando um brinco de ouro, presente do pai dela. Foi perdido para sempre. Ainda bem que a perda foi apenas essa. E a porta do motorista também.
Nos anos 1990 e até meados de 2000, o caminho era a BR- 222. A saída era sempre de madrugada, entre 4h e 4h30, em comboio com os carros dos meus tios Antônio e Lino. O dia amanhecia em Itapipoca. Por volta das 7h, estávamos em Cruz e vinha a parte mais difícil da viagem. Com a estrada de piçarra, era um sacolejo medonho que às vezes durava umas duas horas. Um mundo de cajueiros e povoados. Entre eles, Cajueirinho, Paraguai dos Crentes, Riacho da Prata. A ansiedade era muita pra chegar. E o calor também. Não tinha ar condicionado e precisávamos fechar as janelas um pouco por causa da poeira vermelha, senão era arriscado adoecer.
Eu sempre confundia as águas da Lagoa da Jijoca com os riachos e açudes nesse pedaço. Na Prata, tinha uma passagem molhada do riacho, que no inverno ficava bem perigosa, eu imaginava que já era a Lagoa. Assim como o açude do Cajueirinho. Uma vez, até descemos para tomar um banho porque o calor tava muito forte. Mas era muito diferente da Lagoa. O açude tinha pedras vermelhas no fundo. Doía nos pés. A Lagoa era areia de praia.
Ao chegar em Jijoca, a Lagoa vinha receber a gente, a estrada passava ao lado dela. Se fosse bom inverno as águas iam até a estrada, se não, a gente via o fundo coberto de pastagens, com as cercas atravessando e ela azul lá mais para longe, com muitas carnaubeiras nas suas margens.
Até chegar na casa dos meus avós, ainda eram uns quinze minutos, o boqueirão entre a Lagoa e o Córrego do Urubu avisando que tava bem pertinho. Os nossos cajueiros e pronto, era só abrir a porta de duas partes e pedir a benção.
Enfim, tínhamos chegado. Agora era só tomar aquele café com tapioca, vestir a roupa de banho e correr pra Lagoa.
Preciso de mais crônicas para falar das outras viagens. Foram muitas, de ônibus, carro e até de moto. Na próxima, falo como era ir de ônibus.
Na estrada, rumo às raízes
Quantas vezes na minha vida eu refiz o caminho para a Jijoca? Desde 1989, quando vim de vez para o Ceará, esse trajeto era revisitado uma ou duas vezes no ano. Antes, estive lá apenas uma vez, para conhecer meus avós. Nesses anos todos, certamente, foram mais de 50 viagens. Só agora eu me dei conta disso. É tempo demais, muita estrada e muitas modificações no percurso e no transporte nos últimos 34 anos.
A primeira viagem não me recordo, porque eu só tinha três anos. Meu pai, saído de lá em 1979, retornou de São Paulo para rever a família comigo e a minha mãe, em 1986. De avião, o primeiro percurso. Acredito que tenhamos pego depois o ônibus na "rodoviária dos pobres", porque meu tio Lino já morava no Araturi, em Caucaia e temos fotos na casa dele.
Dessa viagem primeira, só sei das fotos e do que me contaram. Fui no Araturi, no Bom Jardim e de lá nos levaram na Praia do Futuro. Era outra paisagem, nada de prédios ou essas barracas super equipadas. Será que já tinha o mar traiçoeiro, o mais perigoso da orla, que descobri depois de ser repórter? Sei não.
De Fortaleza, seguimos para a Jijoca. Lá, ganhei um vestido rosa, lindo, minhas primas pintaram minhas unhas, fomos na Lagoa. Era tempo de bom inverno, parece. Em julho, a lagoa cheia. A cidade não tinha energia.
Seguimos para a casa dos avós no Córrego do Urubu. Tempo antigo, do lampião, lamparina, fogão à lenha, água de pote, banheiro fora da casa. Minha mãe, paulista, nunca tinha dormido de rede, ganhou até uma cama de casal especialmente para esse tempo de estadia.
Ainda fomos em Jeri. O caminho com muita lama só podia ser feito de carro grande. Longe, difícil, sempre atolando. As fotos não mostravam muita beleza. Não me dei com o clima, adoeci da garganta. Diz o meu pai que teve que antecipar a passagem pra casa por causa da minha situação.
Depois da vinda definitiva para o Ceará, a primeira viagem foi para as Bodas de Ouro dos meus avós, em 1989. Também não lembro. Diz minha mãe que fiquei dormindo na hora da missa. O terreiro das mangueiras na beira do Córrego do Urubu ficou lotado. 14 filhos, dezenas de netos, alguns bisnetos e os amigos, uma multidão.
Meu avô era o celebrante da comunidade, chamado com muito respeito de padrinho ou tio Doca. Era Ribeiro por morar na beira do rio. Pelo nome mesmo, Raimundo Nonato, ninguém conhecia.
Essas duas viagens primeiras foram bem diferentes das que se seguiram, todo ano, especialmente no período da Semana Santa.
Meu pai, nessa época, ainda não tinha carro. As viagens a partir de 1990 sempre nos veículos do meu pai e merecem uma crônica só delas. O caminho era a BR-222. Não existia a Estruturante, a CE-085. Juro que conto a vocês semana que vem. Até lá!
Carta para Antônio Carlos
Grande Antônio Carlos,
Pelas redes sociais, soube que Deus te levou no Natal. Antes da sua partida, eu ouvi que estavas doente, não sabia o problema, mas te incluí e a sua família nas orações da minha casa.
De você, trago comigo tantas boas memórias. A mais forte, de quando eu inventei de fazer uma matéria de comportamento sobre o trem. Matéria que muito fotógrafo ia fazer cara feia, porque incluía a gente fazer o percurso todo dos trens, da Caucaia até a Vila das Flores. Mais de 30 km. Só pra sentir o clima, observar as situações. Com sorte, entrevistar os dois deficientes visuais que ganhavam seus trocados com apresentações para os passageiros, assim como os pedintes, ambulantes, pregadores do Evangelho. Corria risco até de levarmos pedradas, porque nesse tempo, faltavam portas. Que invenção doida, essa minha!
Em 2005, eu era recém-formada. Terminei a faculdade de jornalismo em 2004 e, como era estagiária no Diário do Nordeste, terminei ficando pra tirar as férias dos repórteres. Nessa época, depois de passar pela coluna social, eu estava substituindo o premiado Antônio Simões na editoria de Cidades. E era o meu sonho ser repórter dessa editoria que cobre tudo, do buraco da Cagece até os pronunciamentos do governador.
Pois bem. Em pleno sábado, o Carlos Célio, que era o chefe de reportagem da manhã, me liberou do plantão pra fazer essa matéria, sugerida por mim. E você, com sorrisão no rosto, numa boa, foi comigo. Seguimos do Centro até a Caucaia, meu percurso costumeiro. Nesse tempo, eu ainda morava no Araturi, lugar da penúltima estação. No caminho, consegui entrevistar os meninos que vendiam doces, a vendedora dos bulins, alguns vigilantes que voltavam do serviço. O trem estava bem vazio por conta do horário e do dia. Não rendeu muitas fotos boas na ida, só na volta.
Você, gente boa que sempre foi, ainda topou pegarmos o trem para a Vila das Flores. Já eram mais de dez da manhã. Pra minha sorte e a sua, o trem não seguia até o final da linha, em Maracanaú, porque o Metrofor tinha iniciado as obras. Chegamos até certo ponto, não lembro qual estação e voltamos para o Centro quase uma da tarde, morrendo de fome.
Dia de sábado, a edição era finalizada ao meio-dia, mas essa era uma matéria "fria", podia ser publicada durante a semana. E você, nenhuma reclamação. Só rindo, conversando sobre a vida, as filhas, a esposa Misa. Que energia boa, que leveza.
Com os detalhes dessa matéria antiga, da qual guardo o jornal até hoje e das muitas viagens que ainda fiz de trem pra casa, alguns anos depois, fiz uma crônica que está no livro Cidades Invisíveis, "Minha estação João Felipe", ilustrada pelo Vando Figueiredo e citei você comigo, contando um pouco desse sábado de reportagem.
É muito triste saber que você partiu. Era cedo, 69 anos apenas. Tinha muita alegria ainda pra distribuir pelos caminhos. Uma pena.
Foi emocionante rever o seu álbum Repórteres em Ação, no Facebook. Tanto registro dos nossos bastidores de repórter, colegas grávidas, visitas de bebês na redação, outras em topo de prédios. A verdadeira carreira de fotógrafo, com um monte deles correndo pelo melhor registro. E eu estava lá em alguns. Sempre fugi das câmeras, mas fui registrada também. Como tinha fotos suas e também dos outros fotógrafos, revi as do Rodrigo Carvalho, em que estou entrevistando as mulheres muçulmanas, minha primeira capa, na finada revista Siará. Ali, surgiu o embrião do desejo de escrever o livro Cidades Invisíveis, na última página da revista, na crônica Um Olhar sobre a Cidade, sempre com um autor diferente a cada domingo.
Minha gratidão pelos sorrisos. Pela gargalhada. Pelo cuidado com os estagiários e repórteres inexperientes, pela leveza. Você deixou um legado pela sua ética, seu bom humor e generosidade com todos, do foca ao chefe.
Fica com Deus!
Abaixo, registros dos meus tempos de repórter que achei nos álbuns "Repórteres em Ação", no perfil do Facebook do Tuno Vieira.
O dia em que fui mais feliz
Sou daquelas que fica buscando alegria e contentamento nas bobagens do dia. Aqui e ali, eu colho um sorriso pelo canto dos pássaros, um carinho em algum gato de rua, os jasmins amarelos que Deus planta nos meus caminhos.
Mas, inspirada pelo exercício de escrita criativa do último capítulo da série original da Netflix, Maid, vou tentar descrever o meu dia mais feliz da vida.
Eu precisaria fazer uma longa reflexão para pensar no dia mais feliz de toda a minha vida. Meus anos mais recentes foram cheios de um esforço grande para ser feliz, apesar de. Por isso, vou me apegar com o que me lembro de mais recente.
Em julho, viajei para Jeri com meus filhos e minha mãe. Foi apenas uma pernoite. Chegamos de manhã e fomos embora na tarde seguinte. O lugar era bem simples, um quarto com uma cama de casal, uma de solteiro, um banheiro, ar condicionado e uma tv. Era nos fundos de um pequeno restaurante. Uma ousadia para quem nunca se aventurou em nenhum tipo de turismo em lugar algum. Sempre viajei para visitar parentes.
Fomos para a praia. Nesse dia, a maré tava seca e com muitas algas. O banho de mar me deixou coberta com elas e tive que andar um bom pedaço para me molhar. Mas a paisagem parecia uma pintura. Que lugar lindo!
Voltamos para o quarto, almoçamos e esperamos o horário de subir a duna para o por do sol. Fui apenas com as crianças porque minha mãe não aguentou a subida. Eles não gostaram de nada lá, passaram o tempo todo reclamando. Eu tentei apreciar a vista. Na descida, enquanto o sol se punha, uma lua imensa nascia. E as cores eram muito diferentes de tudo o que eu já tinha visto. Não tinha como não se deslumbrar. Confusão com eles até a hora de dormir. Minha mãe dormiu na alta madrugada já. Meus filhos não se deram com o ar condicionado. Uma noite agitada e cansativa. Mas eu tinha meu trunfo planejado para o dia seguinte.
Coloquei o celular para despertar 5h15. Vesti minha roupa de caminhada e segui para a rua. O restaurante aonde eu fiquei hospedada era na rua principal. Empurrei a porta, segui caminhando no rumo da praia. Encontrei cachorros, alguns poucos festeiros indo para casa e o pessoal da limpeza. Me sentia um pouco insegura porque também era a primeira vez que eu caminhava sozinha em um lugar desconhecido. Mas fui seguindo.
Na praia, o mar estava mais limpo. A lua enorme se preparava para sumir e o sol ainda não tinha saído de trás da cidade. Além dos funcionários da limpeza, um grupo de canoagem se preparava para entrar no mar. Mais adiante, duas mulheres subiam a duna. Eu acompanhei.
Quando cheguei no alto da duna, sentei na areia e fiquei aguardando o sol sair. Ele veio e esquentou meu corpo. Fechei os olhos, ouvi o mar, o canto dos pássaros e senti uma paz profunda. Era assim que eu queria viver. Em paz, avistando esse tipo de coisa. Sem reclamações.
Não sei quanto tempo fiquei nessa contemplação, mas quando me dei conta estava sozinha na duna. Senti medo. Tratei de descer e a praia já mudava de paisagem. Os barraqueiros montando as cadeiras. Adentrei a rua principal novamente.
A padaria estava cheia. Aproveitei pra tomar um café com leite, com um croissant e terminar o livro de contos Quando a Maré Encher. Que delícia e que luxo poder fazer isso sozinha. No quarto, com certeza todos deveriam estar dormindo e nem perceberam que eu não estava. Segui para lá. Estava certa mesmo.
Vesti minha roupa de banho e segui pra praia. Tomei meu banho de mar, uma água de coco e fiquei tranquila observando. Acho que passei uma hora mais ou menos. Voltei para o quarto e ainda dormiam. Tomei um banho e fui me aprontar para o almoço, sairíamos às 14 horas.
A paz que eu sentia era um prenúncio de vida nova. Era a minha manhã mais feliz em muitos anos.
Respirei fundo e acordei todos para almoçar e seguir com a vida.
Crônica - Os braços e pernas de Deus
Esse domingo, o pastor da minha congregação escolheu o Salmo 77 para fazer a sua pregação. Nesse salmo, o escritor questiona se Deus o ouve, com tantas desgraças acontecendo. Porém, do meio para o fim, ele percebe que Deus não o abandonou, nem a sua criação.
Há três semanas, eu não ia à igreja e sentia falta desse momento próximo às pessoas da comunidade, assim como das palavras do pastor, que sempre tem algo a ver com algum acontecimento recente do meu cotidiano, embora ele não tenha acesso ao que tenho feito. Mas Deus acompanha todos os detalhes dos meus passos e, de forma misteriosa, usa esses momentos para confortar meu coração e lembrar verdades preciosas.
É verdade que já levei vários puxões de orelha, rasteiras e "cajadadas" de Deus nesses momentos de pregação. Porque meu Pai é justo e não quer que andemos vacilando por caminhos tortos. Mas domingo foi dia de lembrar da gratidão.
Recentemente, participei da Bienal. Para estar lá, tive que ter persistência e vencer vários obstáculos. Tinha a reimpressão, que era o mais difícil de transpor e foi o primeiro a dar certo. Depois, uma série de acontecimentos bagunçaram a minha vida e teve momentos em que eu imaginei que não daria certo estar lá no Centro de Eventos. Mas, uma a uma, as pedras foram "saindo do meio".
O transporte público me levou normalmente da Caucaia para o bairro Salinas. Fui e voltei em três momentos e nada me aconteceu. Minha mãe ficou com as crianças para que eu estivesse lançando os livros e minha chefe compreendeu o momento e deixou os horários mais flexíveis.
Dos três lançamentos, em dois fui sozinha. Entretanto, Deus providenciou pessoas para me ajudar. Uma delas foi a fotógrafa e internacionalista Karine Garcez, que fez fotos lindíssimas e foi minha companhia em dois dias nos transportes. Ela nem tem a mesma fé que eu, mas esteve me ajudando e sei que foi Deus quem a enviou. A outra pessoa foi minha contemporânea de faculdade, Karoline Teixeira, que fez fotos, vídeos, comprou o livro e ainda me ouviu. Como foi bom encontrá-la depois de tantos anos. Não a via há mais de oito anos, talvez.
Além delas, outras muitas pessoas tiveram o seu papel especial nesses dois meses decisivos. Os primeiros dessa jornada de escritora iniciante. Todos os dias têm sido desafiadores e eu pretendo enviar esse texto para cada um dos que me ajudou nos últimos tempos.
Porém, em épocas de desafios, quando não conseguimos ver Deus com sua mão operando milagres grandiosos, aprendi com o pastor Rômulo Monteiro que devemos ampliar nosso olhar para perceber a atuação do Nosso Pai no mundo, nessa época e em outras, como fez o salmista. E que Deus age sim nas coisas pequenas, como as flores, os pequenos girassóis, que brotaram na minha janela ontem. E nas mãos de todos os que cruzaram meu caminho.
A gratidão me transborda e precisei escrever essas linhas. Obrigada a cada um pela ajuda. Deus agiu através de você e me fez sorrir em tempos sombrios. Deus é bom. "O Deus grandioso usa pessoas" - Rômulo Monteiro
"A tua vereda passou pelo mar, o teu caminho pelas águas poderosas, e ninguém viu as tuas pegadas.
Guiaste o teu povo como a um rebanho pela mão de Moisés e de Arão". Salmo 77, 19-20.
Solitude
Estava procurando no dicionário o significado de "solitude". Diz o Aurélio que é o mesmo que solidão. Entretanto, o Google me explicou que a solitude é um estado de isolamento voluntário e positivo, já a solidão é uma condição associada à dor e à tristeza. A solidão é um sentimento de vazio, é o desejo de ter a companhia das pessoas, mas não ter.
Ando experimentando essa agradável solitude, quando posso. Estou pertinho dos 40, mas nos meus bons tempos de 20 e poucos anos, eu sempre apreciei minha própria companhia. Gostava de almoçar, conhecer cafés, viajar, ir ao cinema. Tudo sozinha, observando ao redor, respirando fundo, na tranquilidade de apreciar e anotar algo, sem precisar falar nada com ninguém ou dar satisfação. Eram os meus pequenos momentos de liberdade. Eu não me sentia sozinha, me sentia livre e isso me deixava feliz.
Para comemorar o dia do meu aniversário, esse ano rememorei essa boa experiência. Fui almoçar sozinha no restaurante O Garfo, no Centro de Fortaleza. Gostava de ir lá nas sextas-feiras, quando tinha algum dinheiro extra, no meu primeiro trabalho como jornalista, na antiga Delegacia Regional do Trabalho. Eu era estagiária de Comunicação e ganhava um salário mínimo. Era o luxo que eu me dava, quando podia.
Nesse restaurante, em 2002, quando eu o conheci, era normal encontrar a elite da repartição, os Fiscais do Trabalho, com um salário maravilhoso e também outras pessoas mais abastadas, como os bancários. Eu me sentia rica, podendo conhecer sabores de coisas inéditas para mim, como bacalhau, lagosta, peixe à delícia, alcaparras, risotos. E no fim ainda escolhia um Charlotte e tomava o capuccino de cortesia.
Me dei esse presente, 20 anos depois. Para minha surpresa, o restaurante continua lá. Os pratos continuam uma delícia e escolhi várias saladas com um risoto de camarão divino. A Charlotte não mudou o sabor. Nem o capuccino artesanal, que parece um caramelo na boca. Que maravilha!
Depois de comer, ainda encontrei meu ex-professor e colega de jornal, Dalwton Moura por lá. Deixei o Cidades Invisíveis com ele, assim como com o dono do restaurante. E segui para as Livrarias Paulinas, na mesma rua, que está no livro.
Eu costumava ir lá adolescente, pra comprar cartões e livros. Fiquei amiga de uma irmã na época, que me sugeriu que eu virasse religiosa aos 14 anos. Acabou não dando certo essa ideia. Mas nessa tarde tinha uma irmã igualzinha a ela. Por ela, soube que a freira que falava comigo, nessa época, faleceu. Normal. Comprei três cartões de presente para mim e peguei o Uber.
Pretendo me dar mais vezes essa experiência deliciosa da solitude. Pra mim, é um presente essa autonomia. Não há dinheiro que pague isso.
Um pequeno mapa do tempo do Belchior
gravado em mim
Eu era só mais uma adolescente que queria aprender a tocar violão. Aos 12, o Legião Urbana era minha banda preferida e eu fazia um curso para aprender o básico. O instrumento, ganhei ao completar 13 anos, um Di Giorgio 16.
O meu avanço como violonista foi pequeno. Não saí das notas naturais. Treinar a voz era mais a minha cara. Os dedos ficavam machucados e eu gostava das unhas longas. Minha mão pequena e os dedos curtos também não facilitavam em nada as pestanas no Si e no Fá. Desisti de tocar e passei apenas a ouvir e tentar cantar afinado. Secretamente, eu sonhava com a fama, entretanto nunca tive coragem para tanto.
O tempo passou um pouco e conheci outras pessoas que gostavam de tocar. Um dos meus amigos mais velhos que andava sempre com violão tinha uns 25 anos e gostava de Roberto Carlos. Foi ele quem me mostrou a primeira música do Belchior, Divina Comédia Humana. Achei selvagem, forte, parecida com as poesias do José Telles que eu gostava de copiar na agenda. Fiquei com ela na mente e gostava de ouvir e cantar na velha praça do meu bairro, embaixo de um cajueiro grande que ainda está lá. Eu que fui embora.
Eu não gostava da voz do Bel. A imitação do Dinho do Mamonas Assassinas ficou forte na minha mente. Achava anasalada, chata, sem graça. A forma dele cantar quase falando também me incomodava.
O tempo passou mais um pouco e eu fui aprovada no vestibular da comunicação da Federal. Por lá, o Belchior e os outros intérpretes do Pessoal do Ceará eram cult. Fazia parte do repertório das calouradas e festas nas casas dos amigos. Eu comecei a gostar nesse tempo. É impossível hoje ouvir e não lembrar desse tempo bom e doce. Como uma trilha sonora dos meus tempos de universitária, ao lado do Oasis e Los Hermanos.
Quando CD começou a ficar barato demais comprei algumas coletâneas nas Americanas. Acho que foi lá também que comprei a biografia. Ainda não li.
Hoje, o cara faria 76 anos e integra a trilha sonora da minha vida, do meu primeiro livro, o Cidades Invisíveis. Teve muita crônica escrita ao som de suas canções, como essa agora, digitada no WhatsApp mesmo, porque o tempo é curto.
Belchior, como intérprete, é muito original e por isso, nem todo mundo gosta. Eu mesma demorei a curtir. Como letrista, não tem como negar que foi um gênio.
Além de ouvir em casa, o Bel foi trilha sonora de muita pauta. Gostava de refletir, calada, nas letras, voltando pra redação. Era inspirador rodar a cidade ouvindo. Quando a viagem era longa, geralmente o seu Tomaz ou o seu Menescal colocavam na volta. E eu regressava com vontade de crônica e não de notícia de buraco feito pela Cagece.
Um dia desses, soube até que ele foi cliente do meu tio taxista. E o Belchior gostava de falar muito nas corridas. Meu tio ouvia tudo. Devia ter muita história mesmo, tanto o meu tio Lino, como o Belchior.
Como a vida é surpreendente, o senhor que cozinhava panelada no Nova Metrópole perto da minha Lan House, em 2007, foi a pessoa mais próxima do Belchior que eu conheci. Ele fazia parte da turma de Fortaleza, mas a vida o afastou da música e ele ficou só com as lembranças do Ednardo, Teti, Belchior e Fagner. Hoje, nem sei se ele ainda é vivo. Minha lan house durou só um ano.
Vou ficar aqui ouvindo as canções do Belchior até terminar o dia, em um pequeno mapa do tempo que ele gravou em mim. * texto publicado originalmente em 25/10/2021
Sobre educação, recordações
e novos caminhos
Acho que todas as pessoas têm uma bela história com algum professor pra contar. Eu sou como a maioria e tenho as minhas. Aprendi a ler em casa, com minha mãe, mas estudei em escola de bairro até o penúltimo ano do Fundamental. Era o Instituto Educacional São Raimundo, o nome grande e imponente era de uma escola simples, que iniciou em um apartamento no último bloco do Araturi Velho, conjunto habitacional construído em Caucaia em 1985. Morei nesse bairro por 30 anos. Eu saí de lá porque só tinha aula até a antiga sétima série e não quis ir estudar na sede do Conjunto Nova Metrópole. Naquela escola, passei algumas vergonhas dignas do seriado Todo mundo odeia o Chris, mas essa é uma outra história.
Das professoras, a maior parte lembro com muito carinho. Tive o privilégio de ter duas delas ensinando minha filha, 25 anos depois. Mas, a que me traz mais recordações valiosas é essa da foto, a tia Olga, que nunca mais vi depois de 1990, ano desse registro. Ela era daquelas que se integrava com a família. Lembro de ela ter emprestado até seu caderno de receitas pra minha mãe e ter tomado vários cafés na casa dela, como nesse dia. Era do tipo carinhoso da professora Helena, do Carrossel, que eu assistia todo dia nesse tempo. Seu exemplo eu peguei pra vida e passei a procurar amizade com as professoras da minha filha também.
Foi assim que se iniciou o meu Clube de Leitura As Meninas, comigo, minha amiga de blog, Rosi Melo, Jamilly Teixeira e mais Rosana, Adriane e Janaína, as três professoras da minha filha, que nesse tempo cursava o quarto ano do Ensino Fundamental. Era bom se reunir depois da aula pra tomar um café. Ficamos amigas.
Mas, voltando à minha história com os professores, no último ano do Fundamental fui pra escola grande, o Colégio 7 de Setembro. Lá os professores eram muitos, os alunos e turmas também. Raros conheciam os alunos pelo nome. Normal. O clima nas salas era de muita competição, por causa do vestibular. Entretanto, do professor Lucas eu nunca esqueci. Era de matemática. Tinha um jeito empolgado de dar a matéria. Subia na mesa. Amava o Chiclete com Banana. Tinha tido uma vida difícil. Sua paixão por ensinar era tão grande que ele, no terceiro ano do Ensino Médio, se disponibilizava a dar aula em pleno domingo de manhã de Geometria Analítica pra quem não tivesse entendido. De graça. E olhe que ele dava aulas em todas as séries do Ensino Médio, cada uma com 10 ou 12 turmas. Era em uma escola estadual do lado do cemitério do Mucuripe, que era perto da casa dele. Eu fui em todas elas. E nunca esqueci da sua dedicação. Infelizmente, um câncer o levou já faz alguns anos.
Na Faculdade de Comunicação, os professores tinham outro ritmo, era tudo muito diferente. Por lá, tive amizade e contato próximo com poucos. Um dos que me recordo agora era o professor da disciplina de Radiojornalismo, Luís Paulo Machado. Gaúcho, morava em Fortaleza há vários anos e trabalhou em algumas emissoras, como a Am do Povo. Muito animado, sempre incentivava a criatividade dos alunos e com ele fizemos um programa chamado Cabaça, sobre Cultura Popular. Um tempo muito bacana. Outro professor que deixou muitas marcas em mim foi Gilmar de Carvalho. Para ele, dediquei uma carta escrita entre lágrimas, que já publiquei e republiquei nesse site, mas merecia mesmo era integrar um livro. Gilmar de Carvalho é inesquecível para além da faculdade.
Apesar de trabalhar com jornalismo desde 2002, meu primeiro trabalho foi como professora de reforço. Aos 12, ganhei um dinheirinho ajudando um colega que tinha 10 anos. Por essa época, eu também iniciei como professora de catecismo, o que fiz por dez anos.
Mesmo sabendo ensinar, minha filha mais velha, por eu ter um ritmo de trabalho muito intenso no jornalismo até ela completar sete anos, pouco experimentou minhas lições como professora. Só assumi esse posto depois de dar um tempo na carreira, a partir de 2016. Juntas, estudamos para o concurso do Colégio da Polícia Militar e ela foi aprovada de primeira. Irá concluir o Ensino Fundamental por lá neste ano de 2022.
Já o caçula João Nuno foi meu aluno de homeschool aos três e quatro anos. Como preferi esperar mais um pouco para matricular ele na escola formal, fizemos essa experiência e foi muito rica. Comprei jogos pedagógicos, revistas, usei os livros infantis do meu acervo e algumas apostilas de letramento de outras mães, observamos a natureza. Tudo de forma bem tranqüila, como uma brincadeira.
No tempo da pandemia, tinha apenas um mês que ele havia sido matriculado na escola e fomos obrigados a ficar em casa, como todo mundo. As aulas online do infantil eram muito tediosas, pareciam aqueles vídeos do youtube, muito coloridos e com voz esganiçada. E voltamos ao nosso aprendizado caseiro mesmo, apesar de continuar matriculado. Dessa forma, em julho de 2021, pouco antes de ele completar seis anos, já estava alfabetizado, também antes de voltar às aulas presenciais. Assim como a irmã, leu algo relacionado com o supermercado. Doce de Leite foi a primeira palavra. A Luiza leu Sorriso, a marca de creme dental.
As coisas foram voltando ao normal e consegui um aluno de reforço, a fama se espalhou no condomínio e hoje, já estou com três alunos, além dos meus filhos, a quem eu sempre faço questão de ensinar as tarefas também. Pensando que devo ter jeito pra professora, me matriculei no curso de Pedagogia e sigo devagarinho migrando para essa área, bem rica de oportunidades tanto com empregos formais como nos concursos públicos.
Enquanto estou nesses primeiros passos, continuo no Jornalismo e sigo escrevendo, que desse ofício eu nunca vou abrir mão. Quem sabe eu alie as duas coisas? Livro infantil sempre foi minha paixão e fui resenhista por oito anos, no blog Diarinho. Aguardem os próximos capítulos.
Sobre sonhos, ipês e as boas novas
de outubro
No último dia de setembro fez um ano que recebi os 300 exemplares do meu primeiro livro, o Cidades Invisíveis. Lembro bem que a Angélica Sampaio, da editora Sol Literário, me ligou, tentando marcar um encontro presencial para fazer a entrega e celebrar esse grande momento. Eu, que estava esperando o livro apenas para a semana seguinte, me surpreendi positivamente com a antecipação.
Entretanto, ter que ir me encontrar com ela me deixou incomodada. Não saía de casa para celebrar fazia muito tempo. Eu nem lembrava quando tinha sido a última vez. E, apesar de publicar um livro ser uma grande conquista, eu nunca tive o hábito de comemorar. Foi assim com cada emprego em que cheguei, com cada aniversário, a formatura na Universidade Pública, o nascer dos filhos. Tudo era normal. Comemorar era bobagem.
E nos últimos anos, eu tinha desaprendido a me alegrar com a maioria das coisas. Andava cinzenta, cabisbaixa, tensa, talvez iniciando uma depressão. Por isso, fui a contragosto e morrendo de medo que percebessem a minha tristeza. Eu me envergonhava disso. Deveria estar alegre. Consegui 80% do dinheiro que precisava para publicar e enviar. Tinha encomendas para o Brasil inteiro.
Todos saudáveis na minha casa. As contas pagas. Por que estar triste?
Eu não tinha explicação e fui. Talvez a editora tenha notado. Eu não queria explicar. Até hoje, não sei explicar essas coisas direito.
Nesse dia, apesar do peso nas costas por conta da tristeza e do medo de não vender os livros restantes, saí leve. Bebi uma caiproska de morango. Eu, que não tomava álcool talvez há sete anos. Era uma coisa que eu também não lembrava. E foi bom.
O ano passou, centenas de envelopes foram enviados pelos Correios, outras dezenas entregues nas portarias de tantos prédios e casas. O livro chegou até a outros países, como o levado pela colunista do site em que eu trabalho, o Salete em Sociedade, Naura Cox, que mora na Inglaterra e o comprado pela minha prima, Goreth Kling David, residindo em Salamanca, na Espanha. As três caixas foram se esvaziando, até que sobraram apenas os últimos 20. Ali pelo mês de abril de 2022.
Vendi alguns na pré bienal, entreguei outros tentando parcerias e patrocínios para uma nova tiragem, o que não deu certo inicialmente. E restaram finalmente os últimos dois que estão na minha estante.
Depois de bater em várias portas de entidades classistas, secretarias de Estado e Município e algumas empresas e sempre ter o não, eu quase desisti de uma segunda tiragem.
Em tempos de crise e incerteza, quem em sã consciência investiria milhares de reais em literatura? Talvez fosse melhor desistir. Deixa mais pra frente. Isso é vaidade mesmo, que grande bobagem lançar um livro na Bienal. Eu pensei assim e fiquei cinza de novo. Melhor me preocupar com o alimento e as contas do mês. "Você sonha muito, seu livro nem é essas coisas", eu disse para mim.
Mas então chegou o primeiro pix. Nas semanas anteriores, eu tinha enviado uma proposta de patrocínio para alguns empresários que conhecia apenas pelo telefone. Ninguém tinha respondido. Chegou a primeira resposta e a esperança se acendeu. Logo, avisei a editora e iniciamos o projeto da segunda reimpressão.
Nas duas semanas seguintes, chegaram outras ajudas e consegui pagar quase metade do investimento. O papel encareceu bastante com a crise o valor aumentou, comparado com o do tempo do financiamento. Várias editoras pequenas e clubes de assinatura de livros fecharam as portas por causa disso, inclusive.
Assinamos os papéis sexta, dia 23 de setembro e o livro foi pra gráfica. Deve estar comigo talvez até o dia 15 de outubro.
Teremos uma pré-venda com livros e brindes novamente até o dia da Bienal, confirmada para novembro, no Centro de Eventos. Entregarei os livros comprados pelo pessoal de Fortaleza por lá, no dia do meu lançamento. Irei avisar em novembro, a data e o horário. Será a última reimpressão e estarei vendendo por telefone e Instagram até esse dia. E depois também, se sobrar. Esse é um feito, sim, que merece ser comemorado. Meu aniversário de 39 anos é em outubro. Sou escritora, estou viva.
Teremos um lançamento na Bienal do livro Cidades Invisíveis. Que outubro venha e nos encante com suas ventanias e flores amarelas dos ipês das avenidas. Deus continua no seu lugar de soberania e cuida de tudo que acontece. Posso confiar e descansar. Amém.
Carta para Gilmar de Carvalho
*Crônica escrita quando da morte do grande pesquisador e professor da UFC, Gilmar de Carvalho, em abril de 2021. Hoje, dia 30 de agosto, ele completaria 73 anos e está recebendo várias homenagens.
Querido professor
Faz tantos anos que a gente não se fala. A vida seguiu seu curso e eu quase desisti de tudo. Das minhas pesquisas, do jornalismo, da escrita. Fiquei sem rumo, “bestando” um bom tempo. Nesse meu tempo andando em círculos, te encontrei quando eu estava indo comprar um sapato no Centro. Eu, dentro da loja que fica vizinho a onde era antes o Cine Majestic, perto da Praça do Ferreira e você caminhando pela rua. De dentro da loja, te avistei tão rápido. Não deu tempo parar tudo para correr para o reencontro. E você passou.
No mesmo ano, 2019, fui na Bienal com meu menino pequeno, minha mãe, o sobrinho e a vó dele. Naquele furdunço de gente, rodei, vi umas homenagens, consegui fugir um pouco daquela rotina exaustiva de mãe. Senti um respiro, um novo ar, em meio a aquelas programações todas. Ali, era o meu ambiente e eu andava tão longe de tudo. Parecia um reencontro comigo. A de antes.
Tirei fotos, peguei marcadores e fiquei olhando tudo muito atentamente. Muita gente que eu conhecia de vista. Uns livros lindos que eu namorava faz tempo. Acabei não levando nada, só trocando alguns. Na saída, já dentro do Uber para voltar pra casa, eu te avistei de novo, de longe. Dessa vez, eu acenei, acho que você me viu. Ficou olhando, assim como eu. E eu fui embora. Jurava que poderia te ver de novo. Me enganei.
Agora, você foi embora de vez. E eu passei essa semana toda falando com Deus, pedindo que você pudesse se recuperar pra que esse encontro acontecesse. Pra que eu pudesse te contar que estava pra lançar um livro. Te agradecer de alguma forma por ter me colocado nesse caminho. Sim, porque foi você quem me apresentou todo esse universo das memórias, dos saberes da cultura popular.
Quando eu entrei na faculdade, nunca na vida tinha entrado num museu, nem nessas coisas mais culturais, era uma matuta, uma índia de Caucaia, como vc costumava brincar.
Na primeira cadeira contigo, aquela do segundo semestre, me apaixonei pelos cordéis. Você me apresentou a eles e me deu logo uma coleção organizada por ti, que guardo com carinho até hoje. Aquela mini monografia sobre os cordéis que falavam do ataque contra as Torres Gêmeas foi o início de tudo. Acho que naquele mesmo ano, comecei a participar do seu Grupo de Estudos de Cultura Popular, e viajamos eu e um monte de gente da Comunicação para o Cariri.
Lembro de tantos detalhes, das praças, da comida, da casa do Patativa, em Assaré, do Crato, Juazeiro, de tanta coisa linda, em Nova Olinda. E da passada em Várzea Alegre, na casa da mãe do Magela. Minha primeira viagem de adulta estudante.
Na monografia, você me orientou a pesquisar os Tapeba, um dos povos indígenas da minha Caucaia, onde moro até hoje, sobre a oralidade no repasse das lendas. Eu, sem noção que era, ia sozinha desbravar os trilhos desertos, confiando em desconhecidos. Uma vez, você e o Francisco foram comigo e me alertaram desses riscos. Pra minha sorte, nunca aconteceu nada.
Ainda hoje, quando eu passo em frente a aquele restaurante no caminho de Aquiraz, eu lembro daquela galinha caipira que a gente comeu. E depois, vocês me deixaram em casa, no Araturi. Tão longe. Quanta gentileza.
Lamento tanto não ter nenhuma foto desse tempo, daquela viagem. Nem da minha defesa atrapalhada que só durou cinco minutos. Eu, sempre muito tímida, travei e não consegui falar mais nada. Mesmo assim, tirei 10 e deu tudo certo.
E a expressão tão cearense "bonito pra chover", que eu só entendi direito contigo? Lá em São Paulo, onde eu nasci, tempo chuvoso é feio. Eu não entendia a beleza de um céu carregado. Hoje, já aprendi.
Naquele livro de ensaios, o Bonito pra Chover, tenho a tua letra, lembrança mais forte tua e que tenho revisto nos últimos dias.
Depois da sexta tentativa de engatar uma leitura, peguei o livro da Lygia Fagundes Telles, aquele de crônicas sobre a escrita. Logo a primeira falava da despedida de Clarice Lispector, sua amiga, no texto "Onde estivestes de noite". O sol indo embora me deu o estalo pra essa carta, escrita aos garranchos, chorando.
Te agradeço, Gilmar, por tudo que você me ensinou. Nos livros e fora deles. Sem você, não tinha jornalista Kelly Garcia. Muito menos o livro Cidades Invisíveis. Gratidão demais.
“Pra semana, eu procuro você...”
Essa semana, mais uma personalidade que mostrei nas crônicas do meu livro Cidades Invisíveis partiu para a Eternidade. Dessa vez, foi um dos fundadores do bairro Montese, o escritor, jornalista e dentista Raimundo Nonato Ximenes, mais conhecido como R. Ximenes, que tinha 99 anos de muita saúde e lucidez.
Conheci esse senhor ao acaso. No tempo que eu era repórter, sugeri à chefia fazer matérias sobre a história de ruas importantes de Fortaleza nas sextas-feiras, dia do meu plantão na Editoria de Cidades. Como a ideia era minha, era eu quem deveria buscar personagens e me organizar para pesquisar. A rotina da redação é muito ágil e, geralmente, eu pesquisava previamente para escolher aonde iria e só buscava os personagens no próprio local, batendo aleatoriamente na porta das casas aparentemente mais antigas, sem pensar muito e imaginando que fossem a morada de alguém que estivesse no bairro há muito tempo.
Num golpe de sorte, o fotógrafo que me acompanhava notou duas castanholeiras de troncos grossos, em meio a dezenas de lojas de peças para veículos na Avenida Gomes de Matos, a mais movimentada do Montese. Batemos no portão de alumínio para ver quem morava lá. O dono da casa era o senhor R. Ximenes.
Em 2014, ele tinha 92 anos e uma história de vida impressionante. Ao revisitar seu livro lançado em 2004, "De Pirocaia a Montese - Fragmentos Históricos", presenteado por ele nesse dia, soube alguns detalhes de sua trajetória. Após o término da guerra, ele tinha planos de se casar. Contudo, em vez de voltar para sua terra natal, Groaíras, preferiu ficar em Fortaleza. O Montese de meados dos anos 1940 era outro. "Aqui, era um matagal e por trás corria um riacho, que deixava tudo alagado. Além disso, os ônibus só chegaram em 1954. Eu mesmo cansei de ir a pé daqui para o Centro, porque não tinha transporte. Quando a minha mulher foi ter o primeiro filho, peguei uma caminhonete na João Pessoa e um jipe, na Praça do Coração de Jesus, para ela ir até a Casa de Saúde São Raimundo, dar a luz", relata.
Analfabeto quando foi convocado para a guerra, R. Ximenes só começou a estudar aos 26 anos. Mais tarde, não poupou esforços, inclusive físicos, para continuar com os estudos. "Como o Liceu ficava muito longe, eu comprei uma bicicleta, para ir do Montese até lá". Obstinado, aos 40 anos, concluiu, na Universidade Federal do Ceará (UFC), o curso de Odontologia e Farmácia e exerceu a profissão em sua residência e no Hospital Psiquiátrico São Vicente de Paulo.
A sua casa, mesmo estando em uma avenida bastante movimentada e cercada de lojas por todos os lados, tinha ares de sítio. As tais castanholeiras que chamaram a nossa atenção haviam sido plantadas há mais de 60 anos. "As minhas fruteiras, eu plantei quando cheguei aqui, em 1946", ele nos disse.
Apesar de ter sido convocado para a guerra em 1944, ele escapou de ir para a Itália por alguns dias. "Eu estava aprovado para partir para a guerra, mas servindo na Lagoa Seca, hoje Pirambu, com outros três guardas, guardando a munição, quando soubemos que a guerra tinha sido ganha, através dos fogos e buzinas dos moradores. Tive muita sorte".
No seu consultório, a cadeira antiga de dentista servia de apoio para os muitos livros e na mesa em que, em outros tempos, conversava com os pacientes, escrevia os artigos para os jornais. "Sempre quis ser jornalista e o Dedé de Castro foi o meu guru. Fui correspondente da minha cidade, Groaíras, durante muitos anos", lembra.
Quando escrevi a crônica do livro, em 2020, fiquei me perguntando se ele e a outra personagem do Montese, minha catequista, dona Maria Silva, se conheciam. Ao conversar com a família dela, após a sua morte, no início desse ano, soube que não.
Infelizmente, não revi R. Ximenes depois desse único encontro em 2014, apesar de seu exemplo de vida ter ficado muito forte na minha memória e eu viver repassando para todos os jovens que conheço. Ele também nunca soube que o citei em meu livro. Perdi a oportunidade, porque assim como a maioria das pessoas desse mundo pós-moderno caótico, eu tenho o péssimo hábito de adiar os encontros. A vida corrida, às vezes, me faz esquecer o óbvio, como no caso do senhor Raimundo Ximenes que, chegando perto dos 100 anos, estava na etapa final de seus dias nesta Terra.
Depois do livro Cidades Invisíveis impresso, eu encontrei nas redes sociais um escritor que era seu sobrinho, o contista e cronista Felipe Feijão. Ele me deu a boa notícia de que seu R. Ximenes permanecia lúcido e morando no mesmo lugar, no Montese. Pensei em ir deixar um exemplar do meu livro pra ele, apresentar sua história pessoalmente para o marido e os meus filhos, para quem eu já tinha contado antes. Mas, com a correria, esqueci.
Mais adiante, a minha entrevista agendada no programa Cabeceira, apresentado pela Rosanni Guerra, na TV Assembleia, foi adiada por uma homenagem a ele, R. Ximenes. Mais um lembrete do destino. Peguei o contato telefônico da família e não liguei. “Depois, eu falo com ele”, disse comigo e continuei na espiral da rotina de sempre.
Passados alguns meses, mais uma vez, tive a prova de que a vida não espera. Acho que eu aprendi a lição e não quero continuar repetindo na vida real aquele diálogo da canção Sinal Fechado, de Chico Buarque. “Pra semana, eu procuro você...”. Se der, façam isso também. Marquem aquele encontro com os seus amigos queridos, e compareçam! Não adiem rever aqueles parentes que vocês amam. Temos apenas hoje. Amanhã é quimera.
Sobre doces e sabores que não
conseguimos esquecer
Por esses dias, zapeando pelo Instagram, revi um dos doces mais gostosos que já comi: o de banana de rodela. Só de olhar, o perfume me veio à mente. Comi esse doce pela primeira vez já adulta, no tempo em que trabalhei na campanha política da vereadora Fátima Leite, em 2008.
Nessa época, eu e mais uns dez assessores ficávamos no comitê fazendo telemarketing. Em vez de fornecer vale refeição, uma pessoa preparava o almoço de todos os funcionários, pra lá de 30 pessoas, incluindo os assessores, pintores, motoristas de carros de som, entregadores de panfletos e a própria vereadora.
Umas nove horas da manhã, o perfume delicioso já dominava a velha casa da rua Sabino Monte, ali pertinho do Serpro, na Avenida Pontes Vieira. Era o doce de banana da sobremesa, ótimo para aproveitar aquelas bananas maduras demais, já com a casca preta.
Doces rústicos, esses que as mães ensinavam às filhas, eu não sabia fazer até um dia desses. Na verdade, só fiz questão de aprender esse de rodelas. E mesmo assim, dificilmente faço porque apenas eu e o marido gostamos. E rende muito.
Minha mãe, dona de casa, cozinhava todos os dias pra família, mas não tínhamos o hábito do doce depois do almoço. Até nos dias de festa, a sobremesa nunca era muito elaborada. Geralmente, era arroz doce ou gelatina com creme de leite.
No interior, a gente se esbaldava com os doces de mamão com coco, de caju ou mesmo os normais de goiaba e banana, que tem em toda bodega.
Mas, pensando nas festas que minha mãe fazia, percebi que essa tradição de comer doce nos dias especiais é muito minha. Eu que comecei com isso, com meus musses ou mesmo os pudins, dindins ou bolos de pote que as pessoas entregam na hora do almoço por onde eu morei.
Almoçar fora, nos tempos que trabalhei fora, também ajudou bastante a conhecer outros sabores. Um dos melhores foi o Charlotte do restaurante O Garfo, da Rua Senador Alencar, bem próximo da agência central dos Correios.
Toda sexta-feira, com meu magro salário de estagiária, eu me presenteava com um almoço nesse restaurante, que era o costumeiro para os funcionários mais importantes da repartição, os Fiscais do Trabalho. Além do Charlotte, foi lá que comi camarão, lagosta e bacalhau. O self service de lá não era tão caro assim, bastava eu colocar pouco e não fazia tanta diferença, porque nesse tempo o salário só era pra os meus luxos. Morar com os pais tinha essas vantagens.
Diferente da minha mãe, que colecionava receitas lindas e sofisticadas de revistas e catálogos e pouco experimentava fazer, eu de vez em quando arrisco novidades na cozinha. E o Google e algumas amigas me ajudam nessa curadoria.
A delícia de abacaxi que eu aprendi a fazer no primeiro ano de casamento e abandonei por dar trabalho demais, foi retomada esse ano. O mungunzá branco doce, não só deu certo com a receita da internet, como me rendeu um dinheirinho.
E vocês, leitores? Que doces tem sabor de infância e quais arriscam fazer de vez em quando?
Do Japão para o Ceará - a saga de Jusaku Fujita
Em junho, foi comemorado o aniversário da chegada dos imigrantes japoneses ao Brasil e aproveitei a data para falar um pouco sobre os primeiros integrantes da comunidade nipônica a chegar em Fortaleza. Agora, mais uma efeméride me fez continuar: os 70 anos do quebra-quebra de 1942, em que centenas de pessoas depredaram estabelecimentos e residências em Fortaleza de imigrantes com origem nos países do eixo - Itália, Alemanha e Japão.
Nos meus tempos de repórter, iniciei uma pesquisa para fazer uma série de reportagens sobre as comunidades de imigrantes de Fortaleza, assunto que sempre gostei bastante por conta da minha família materna, composta por espanhóis e italianos.
Ouvindo e estudando um pouco da história da cidade, percebi que a maior parte dos imigrantes era português. A maioria se tornou empresário do ramo da panificação e muitos vieram ainda nos tempos do senador Alencar, pai do escritor José de Alencar, que trouxe uma caravana em 1845 dos Açores. Ainda havia alguns poucos espanhóis e italianos, das famílias Capelo e Laprovitera, por exemplo; os judeus vindos da França, na região da Alsácia - Lorena, como os Meyer, os Boris e os Gradvohl e os japoneses, que falei na crônica passada. Além deles, a pequena família húngara do Emílio Hinko.
Quando mostrei minha crônica nas redes sociais, um dos grandes pesquisadores e memorialistas de uma geração mais recente, Lucas Junior me enviou um link do seu blog pessoal falando mais sobre como o senhor Jusaku Fujita chegou ao Brasil. Lucas, professor e bancário, mantém sozinho o Acervo Lucas, com fotos e notícias exclusivas, com as quais alimenta um perfil no Facebook e Instagram. Ajuda muito a quem ama a história do Ceará e adora descobrir novidades, como eu.
Como o texto dele está impecável e nos faz viajar no tempo, vou transcrevê-lo abaixo, na íntegra. Para ver mais sobre eles e as imagens dos jornais da época, acesse o link: http://fatoshistoricosmundoemdebate.blogspot.com/2022/05/jardim-japones-saga-do-fujita.html?m=1.
Boa Leitura!
Na próxima, conto mais bastidores de como foi esse evento triste, em que os imigrantes levaram a pior em Fortaleza, com prejuízos financeiros e familiares, apenas por suas origens.
Kinchio, estado de Kumomoto, Japão. Ali, vivia a família Fujita. Problemas financeiros, com sua terra hipotecada e a perda do gestor em 1908, levaram a família a um dilema: continuar ou deixar o país. O fato é que os filhos decidiram não se casar até que o penhor do terreno fosse pago. Só então, em 1912, Jusaku, o mais velho dos quatro irmãos, nascido em 30 de agosto de 1890, partiu para o Peru, fixando-se em Tinta Alta, onde trabalhou em vários setores até montar um restaurante com o pouco de dinheiro que guardara, no que pese as dificuldades com o idioma e com o clima andino, que prejudicava a sua saúde.
Rompeu a Primeira Guerra Mundial (1914), repercutindo negativamente na economia. Seu estabelecimento já não dava lucro, de modo que resolveu se aventurar pela Bolívia. Com a minguada poupança, e com os dilemas da época, abriu um hotel com três sócios no país vizinho. Mesmo assim, enviava dinheiro para a mãe e os irmãos a fim de amortizar a penhora. Mas a Bolívia também enfrentou grave crise em todos os setores. O país se empobrecia, com o mercado de trabalho em declínio. Jusaku não teve outra escolha. Partiu para o Brasil, aclamado como o “País do Futuro”.
Vivenciou o apogeu da borracha, ganhou dinheiro às custas de muito trabalho na Amazônia, morando em Manaus por quatro anos, quitando a penhora no Japão. Mais estabilizado financeiramente, partiu para Fortaleza em 1922, com o nome nacionalizado, Francisco Guilherme.
Ao desembarcar na Praia de Iracema, pensou: “Viverei nesta terra e desta terra”. Empregou-se no sítio do Sr. Otávio Frota, na Maraponga, dedicando-se às hortaliças. Adaptado à cultura cearense, fez boas amizades e até namorou. Assim, na residência do Sr. Firmino Mourão, tio da noiva, casou-se, em 16 de fevereiro de 1926, com Cosma Moreira (D. Neném). O casal morou no sítio citado, onde nasceram os filhos Edmar e Luzimar. Porem, Fujita já trabalhava particularmente, num terreno arrendado na Rua Sena Madureira, onde foi morar com dona Neném num sobrado. Começara ali seus rendimentos com a floricultura.
Depois de nove anos, adquiriu a sua sorte no Otávio Bonfim. Terras nas quais montou o Jardim Japonês, passando a residir do outro lado da futura Av. Bezerra de Menezes, na Rua Cariré. O negócio prosperou, a freguesia e as amizades aumentavam, até que chegou a Segunda Guerra Mundial. O Japão tomou partido pelo fascismo italiano e pelo nazismo alemão. No que pese a neutralidade dos Fujita, Fortaleza experimentou um momento de vandalismo, com o “quebra-quebra” de 1942.
O dia 22 de agosto daquele ano foi o pior da família. O Jardim foi saqueado, assim como incendiados comércios cujos proprietários tinham origem alemã ou italiana. Com sete filhos e Dona Neném grávida, levaram não apenas os pertences da família como o enxoval do bebê. Apesar da repulsa da época, Jusaku, ou Francisco Guilherme Fujita, superou o trauma e retornou para casa após doze dias, refazendo as tarefas, de modo que o Jardim Japonês renasceu.
Dos catorze filhos, oito faleceram. Educou os mesmos pensando no futuro: Edmar (médico, casado com a Dra. Marfisa Neves, médica); Francisco (dentista); Lucimar (dentista, casada com o Sr. Dalton Gomes, administrador de empresas); João Batista (engenheiro, empresário, casado com a Sra. Rejane Carvalho); Maria José (professora, casada com o Sr. João Albuquerque, servidor da Reitoria da Universidade do Ceará), além de Nisabro Fujita (engenheiro e empresário).
Jardim Japonês ficava na antiga Rua Juvenal Galeno, atual Av. Bezerra de Menezes. O terreno foi vendido para o Grupo Supermercados Sino S.A., logo revendido. Atualmente, no local, uma loja de atacarejo".
Fica a minha homenagem a todos os integrantes dessa família guerreira, os Fujita, na pessoa do senhor Lisandro, que forneceu as fotos exclusivas da família e o agradecimento ao Lucas Junior por esse texto tão rico de informações e bastidores.
Fortaleza e seus imigrantes japoneses
Na época em que o Jardim Japonês foi inaugurado, ainda no governo da prefeita Luizianne Lins, em 2011, foi criada uma grande polêmica em torno da obra pública. E tem japonês no Ceará? Muita gente perguntava. Qual a necessidade de um equipamento público que homenageia uma comunidade de imigrantes tão pequena? Outros questionavam.
Infelizmente, em todas as vezes que estive por lá não dei sorte de encontrá-lo limpo. A última vez foi em dezembro. Era mais de oito da noite e minhas crianças, que amam mangás, animes e muitas outras coisas da cultura japonesa ficaram meio decepcionadas. No laguinho, em vez de carpas ou outros peixes, tinha embalagem de achocolatado. Em outras áreas, o cheiro de urina era forte. Não dava pra aproveitar plenamente o lugar, que certamente deveria ter uma vista linda durante o dia. Uma pena.
Sobre o mais antigo imigrante nipônico a aportar nessas terras, Jusaku Fujita, que dá nome ao Jardim, eu sei pouco. Tudo o que aprendi foi com o que vi em dois livros e um pouco de pesquisa pela internet. Um dos livros é o das fotos do Quebra-Quebra de 1942, que destruiu seu jardim no início da Avenida Bezerra de Menezes, de Thomaz outro, era um dos textos de uma coletânea de crônicas de Zenilo Almada, que o citava exatamente por conta desse famoso jardim.
Em 1942, todos os estabelecimentos comerciais de imigrantes do chamado Eixo, no caso, italianos, japoneses e alemães, foram alvo de vândalos. Nesse ano, invadiram a casa de Jusaku e quebraram tudo, destruindo seu jardim, que fornecia plantas ornamentais e era sua principal fonte de sustento.
Jusaku mudou o nome para Francisco Guilherme, se casou com Cosma Moreira e teve quatorze filhos. Um deles, João Batista Fujita, mais conhecido como Capitão Fujita, foi o grande incentivador da obra desse novo Jardim Japonês que está na Avenida Beira-Mar.
Nascido em Fortaleza, Fujita ingressou na Escola Preparatória de Fortaleza aos 17 anos e seguiu carreira na Academia Militar das Agulhas Negras (Aman). Chegou à patente de Capitão, nominação que continou a usar após sair da vida militar, em 1968, passando a ser conhecido como Capitão Fujita.
Após sair do Exército, conseguiu emprego como comprador em uma empresa de construção. Quatro meses depois, já era superintendente. Assumido o posto, viu que a empresa não ia bem. Sugeriu ao dono que fizesse um financiamento para abrir uma nova empresa. Em parceria, fundaram a Construtora Estrela, em 1969. Esteve à frente de obras em 15 estados brasileiros, com destaque para o segmento habitacional, tendo construído 50 mil unidades. Ao todo, 65 mil pessoas passaram pelas obras da empresa.
O empresário cearense João Batista Fujita deixou um legado de referência e inovação para a Construção Civil no Ceará e foi um dos milhões de vitimas da Covid-19.
Outras famílias japonesas bastante antigas pelas terras cearenses são os Fujiwara, os Okura e os Tsuchiwa, que aportaram por aqui em 1960 e se estabeleceram na Região Metropolitana, na cidade de Guaiúba. Soube por uma entrevista que vi no Diário do Nordeste de 2008. Moravam na Fazenda São Jerônimo, que depois ficou conhecida como Núcleo Colônia Pio XII e por lá, alguns deram início ao plantio de legumes, verduras e o comércio de ovos. Ao todo, o núcleo inicial era formado por nove famílias, segundo diz a reportagem.
Shinzo Ohama também veio em 1957 de Nagazaki, no Japão, para divulgar sua igreja, Tenri-kyo e coordenou a chegada do grupo ao Ceará. Na época da reportagem, morava sozinho na Maraponga. Toda essa contextualização eu fiz por conta da efeméride da chegada dos japoneses ao Brasil, comemorada no último sábado, 18 de junho.
Hoje, Fortaleza tem inúmeros restaurantes que servem sushi, sashimi e outras iguarias japonesas para todos os bolsos. Eu, que amava sushi, nunca mais me acostumei com o sabor. Meu obstetra proibiu a ingestão durante a gravidez e amamentação da minha filha mais velha, hoje com 14 anos. Entretanto, estou sonhando com os bolinhos de salmão, a comida deliciosa e as frutas perfeitas do Mercadinho Japonês. Trabalhei sete anos em frente e sempre tentava almoçar lá uma vez no mês como uma espécie de prêmio para compensar o estresse.
A capital cearense pode até ter uma comunidade japonesa discreta, mas tem sabores que a gente não consegue esquecer. Que bom.
Desnudando as vergonhas
Quatro horas no trânsito. Não, não era voltando para casa. Pés inchados, desconforto. Uma causa justa. Entregar os livros vendidos nos últimos quinze dias. As vendas se intensificaram com a chegada do fim do ano. Ainda bem.
Morando na Região Metropolitana de Fortaleza, sempre que faço as entregas, é uma longa viagem. A maioria dos meus leitores mora na região dita “nobre” da cidade. Para chegar nestes destinos, preciso cortar a cidade e desnudo partes que talvez envergonhem. Fortaleza é bela, porém contraditória e desigual.
Do lado de edifícios ultramodernos, com arquitetura arrojada, jardins projetados, se espremem casebres de porta e janela, puxadinhos mal ajambrados e estreitos, becos, vielas. É assim no Cocó, na Aldeota, Meireles, Mucuripe... O pobre e o rico convivem lado a lado, mas jamais se misturam.
Nas dezenas de portarias que visitei nos últimos meses entregando meus livros, é tendência desagradável a tecnologia remota. Ter que esperar o morador aflige, especialmente de noite e quando ele demora a chegar. Mas o pior mesmo é aguentar o olhar enviesado da vigilância armada para o nosso gol preto com fumê 100%. A gente finge não perceber e segue para o próximo destino.
Antes de findar a longa rota, um achado precioso: um posto de gasolina com combustível 30 centavos mais barato que o normal. Completamos o tanque quase vazio. E ainda é dia 16.
Quase oito da noite, a compensação por tantas horas no trânsito: a caminhada no calçadão da Beira Mar. Estacionamos em um novo local, perto ainda do Edifício São Pedro. Saindo de lá, um carrinho vende dindin com uma paródia infame de ilariê. Parece fazer sucesso. Seguimos para a areia, meu marido quer correr.
Marido volta e combinamos de nos encontrar no Náutico. Eu vou caminhando e ele segue na corrida. Procuro onde é o hotel que será demolido em 2022 para dar lugar na Beira Mar para mais um arranha-céu. Disseram que o prédio em formato de caixa era ultrapassado. Aqui, não basta derrubar bangalô e casa antiga. Começaram a demolir edifícios também. Vai ficar só a Ponte Velha, como profetizou Ednardo.
Voltamos caminhando para o carro. Uma das bicicletas que passa na calçada me chama a atenção. Duas moças e um meninote, no banco de trás. As duas rindo e brincando, ele sério, olhando para o nada.
Saindo do estacionamento, o velho caminho de volta. Edifício São Pedro em ruínas, Catedral, Passeio Público. É quase dez da noite. No breu das portas da antiga Cadeia Pública, luzes fracas acendem. São os cachimbos de crack. Mais adiante, na Praça da Estação, outro grupo acende o cachimbo. Parece normal para o horário. Os mototaxistas, mais adiante, nem se importam.
Dentro do carro, lembro do menino que passou por mim naquelas bicicletas de três lugares ainda no calçadão. O cabelo queimado de sol, o blusão manchado e puído, o olhar vago. Talvez tenha a idade da minha filha mais velha. Terá ele algum parente naquela situação? Ele mesmo já teria provado da droga?
Chego em casa com lanches para os meus filhos. Pareço a mesma por fora, mas nunca volto igual dessas entregas. * texto escrito em dezembro/2021 para um concurso literário.
Máquina do tempo
Embora ainda não tenha completado a quarta década de vida, os meus amigos sempre apontam da minha afinidade maior com quem tem o dobro da minha idade. E isso não vem de hoje. Eu simplesmente não consigo evitar. Os livros, os escritores, os filmes, tudo aponta para muito tempo antes do meu nascimento.
Na adolescência, alguns dos meus confidentes já estavam casados e com filhos. Era a mãe do colega de escola, a minha professora, a tia do catecismo com mais de 60 anos.
No interior, eu sempre estava acompanhada das senhorinhas e do meu avô, chegando nos 70 anos. Com eles, eu bebia das bibliotecas pessoais, das décadas de experiência. Eles eram a minha máquina do tempo. Apenas ouvindo, eu podia ir para os 1940 e 1950, com seus vibratos no samba canção, para os anos 1960 dos Beatles, a psicodelia do rock setentista, ou mesmo as discotecas do Santa Esmeralda e Donna Summer.
Na faculdade, fiz amizade com a turma dos bancários que ganharam uma liminar para sair mais cedo do trabalho e concluir o curso universitário. Uma galera com mais de 40 anos. Eu ainda chegando nos 20, porque entrei na Universidade aos 17. Nessa época, eu conversava muito com uma amiga da idade do meu pai. Fizemos vários trabalhos juntas e é de quem ouço as melhores histórias até hoje, passados 20 anos. Ao lado dela, dou as
melhores risadas.
Adulta, descobri os livros de memórias. Os famosos e outros, de autores desconhecidos. Era uma forma de conhecer outras máquinas do tempo. Uma diversão e tanto saber como era a cidade e o Brasil há 90, 100 anos. Uma engenhoca ainda mais potente para quem gosta de viajar pelas lembranças dos outros.
Como jornalista, meu primeiro trabalho foi na coluna social, onde estou até hoje. Dessas fontes, a média de idade era sempre uns 30 anos a mais que a minha e eu segui mergulhando nesse universo. Nos dias tranquilos, as conversas eram mais longas.
Assim, conheci os bastidores da era de ouro do rádio cearense e os primórdios da Televisão com uma senhora de mais de 80 anos, que vivia muito sozinha e gostava de contar histórias. A saudosa dona Mazé Braz.
Nesse período da vida, os problemas de saúde são mais comuns, assim como a insatisfação com o próprio corpo. A gravidade é implacável e mesmo com a ajuda dos procedimentos estéticos de hoje, as feições nunca ficam como antes. É fácil notar quem exagera nos retoques, assim como perceber em si mesma os estragos que o tempo e o
descuido fazem.
São linhas finas na testa e nos olhos, que surgem sem avisar. A pele que afrouxa e perde a elasticidade onde não deveria. Os cabelos brancos que teimam em não se camuflar entre os loiros que descolorimos em mechas.
Há épocas em que não me importo com tudo isso e em outras, me espanto. Irei conseguir chegar à idade dos meus amigos octagenarios? Em quais condições?
O Alzheimer então é um mal que nos ronda. Minha amiga atriz da TV Ceará e tantos outros que me davam notícias se calaram para sempre. Seguem em seu próprio mundo, não sabem mais quem são. Minha vizinha que me ensinou a cozinhar, não apenas se calou como seguiu para o outro mundo, onde já dormem vários dos que me contavam as histórias da adolescência.
Para preservar a memória deles e a minha, quero escrever. Por isso, prefiro a crônica e os livros com as lembranças. Os neurônios, a doença pode destruir, mas o papel demora um pouco mais. Vou continuar consultando as máquinas do tempo dos amigos mais velhos, de onde bebo tantas boas histórias.
A playlist da minha mãe
As Cidades Invisíveis, quando se tratam da minha mãe, precisam de som. Sua presença forte contém trilhas sonoras inesquecíveis. Se for pra lembrar da casa antiga da Rua Pero Neto, em São Paulo, a trilha se alterna entre o disco completo das Frenéticas, o I'm sailing, de Rod Stewart e o Do you wanna dance, do Johnny Rivers. Ou o tilintar das moedas em Money, do Dark side of the Moon, do Pink Floyd, que tocava no meu tio, que morava vizinho a nós, em alguns domingos.
Depois, com a mudança para Caucaia, os discos vieram conosco. Por aqui, Roberto Carlos, com sua vasta cabeleira e fundo verde do disco de 1973, cantava El dia que me quieras e ela lembrava do gosto musical do pai dela, meu avô espanhol. Os Bee Gees e sua discoteca Night Fever nos colocavam para dançar e balançar na rede até quase virar.
Mais tarde, na minha adolescência, o tipo de mídia se modernizou e eram as fitas cassetes, em vez dos discos de vinil. Então, Leandro e Leonardo, Raça Negra, Clara Nunes e John Lennon passaram a se alternar todos os dias, às 7h30 da manhã, para animar a limpeza da casa e me acordar, assim como toda a vizinhança. Quantas vezes o Luiz Carlos, cantor do grupo Raça Negra, entrou no meu sonho fazendo um show só pra mim e depois acordei e percebi que na verdade era minha mãe que já estava trabalhando em casa?
Com a separação de todos, o silêncio se tornou tão pesado que eu quase conseguia tocar. Pra evitar isso, ligava logo a TV assim que chegava em casa. Nesse período separadas por quase três mil quilômetros, por sete anos, as ligações eram poucas. Uma ou duas por ano. Nos Natais, aniversário e Dia das Mães, o correio entregava nossos mimos. Santos, perfumes, maquiagens, esmaltes, cds.
Passado esse período longe, vi que ela guardava tudo quase como relíquia, sem uso. Nem os cds tinham sido abertos. Mas, como tudo passa, esse tempo longe também passou.
Hoje, sua jovialidade acompanha as paradas do sucesso. Se eu for na sua casa sem avisar, lá da esquina vou ouvir sua animação com palmas e danças ouvindo o cabaré do Eduardo Costa ou algum hit do Luan Santana. Ainda bem que é assim. Ela continua bem e a música continua impulsionando a vida dela. Domingo, inclusive, é dia de lasanha e almoço especial. Coisa boa é ter mãe.
As meninas do meu clube do livro
No tempo em que eu vivi um isolamento social que me preparou para o da pandemia, inventei um clube de leitura. Recém saída do jornal, procurava o encontro com quem gostasse de ler e uma casa mais alegre, com algumas amigas que pudessem conversar.
Nessa época, eu mal falava com adultos. Minha linguagem se resumia a cantar músicas do Bob Zoom, Palavra Cantada, dormir sempre fora de hora e amamentar. Era um zumbi diferente do que sou hoje.
Depois de ver uma resenha da Tati Feltrin, escolhi que o livro lido por nós seria As Meninas, da Lygia Fagundes Telles. Esse seria o meu primeiro contato com a autora. Quem leria comigo?
Saí em busca das amigas que liam no Facebook, convidei as professoras da minha filha, minha parceira no blog também estava junto. Depois de uma semana procurando gente, vieram cinco pessoas: a Rosi, jornalista e minha parceira no Duas Estantes, Jamilly, que eu conhecia há uns quinze anos e não via há uns 11, Adriane Estácio, minha amiga de muito tempo que agora era professora da minha filha, Janaína e Rosana, que também ensinavam na escola e compartilhavam os alunos do Ensino Fundamental 1.
Como não tinha o livro, tratei de comprar no sebo. A edição que achei tinha capa dura e era do Círculo do Livro. Reconheci porque minha mãe fazia parte desse clube nos anos 1970. O livro usado tinha pertencido ao Milton Dias. Eu pensei que fosse o cronista de quem eu gostava, mas depois vi que era só um homônimo.
Em um mês de leitura, minha mente ficou tentando desvendar tudo aquilo. Era profundo, confuso. Parecia linguagem cifrada, principalmente quando a fala era da Ana Clara, a moça que usava drogas. O livro trata da história de três amigas nos tempos da ditadura militar. Uma é virgem e meio ingênua, e rica. Uma usa drogas, é confusa e a outra é militante contra o regime.
Ninguém gostou do livro e nem conseguiu apreender a profundidade da obra. Nos decepcionamos. Talvez não fosse a hora certa de ler, quem sabe?
Daquele grupo, As Meninas, que teve várias versões e deve ter agregado umas 12 pessoas desde 2017, as integrantes tiveram destinos surpreendentes. Muito mais que as meninas do livro de Lygia.
Uma das nossas meninas depois de ter se casado duas vezes e ter tido dois filhos em cada um dos relacionamentos, voltou com o namorado da adolescência e se casou com ele. Está vivendo dias lindos, depois de muitos percalços. A outra das meninas está morando no hospital desde que seu filho nasceu porque ele tem uma síndrome genética. Outra menina já viajou para a Europa cinco vezes e parece ter encontrado o grande amor da sua vida, com quem divide tudo em três cidades diferentes, Caucaia, Paracuru e outra que não lembro, na Noruega. Acho que nenhuma delas em 2017 imaginava as voltas que o mundo daria.
Eu sigo quase a mesma. Voltei a trabalhar fora, embora em homeoffice, escrevi um livro. A vida é só me dando rasteira, mas eu me levanto de teimosa.
Depois desse livro da Lygia, ainda li outros três, muito melhores. As crônicas que estão em Durante Aquele Estranho Chá me fizeram chorar em uma tarde de sábado, quando soube que Gilmar de Carvalho tinha partido. Antes do Baile Verde, com os primeiros contos publicados, me deixaram muito admirada com a capacidade da autora. Que genialidade! E o Venha ver o por-do-sol, que é livro miúdo e paradidático, é outra grande referência. Oito contos de amor, que comprei no sebo do Geraldo, passei para frente porque me dei de presente o livro verde com todos os contos.
A Lygia partiu neste primeiro domingo de abril, deixando um grande legado na nossa literatura. Eu continuo preferindo seus contos e crônicas, assim como tenho essa preferência com a Clarice. E as meninas do meu grupo sei que devem ter lembrado daquele encontro desengonçado com bolo de cenoura lá no meu antigo apartamento sem sofá. Um beijo em todas.
Sobre o mês mais longo do ano
Março é um mês sem fim. Entre o dia primeiro e o dia 31, cabem separações e recomeços, revelações bombásticas, empregos que surgem e se despedem, boletos que brotam do chão, doenças vindas da chuva ou das aflições e lembranças que aquecem o coração.
Em março, recebi minha primeira carta de amor, copiada de um livro, cheia de desenhos dos Cavaleiros do Zodíaco e figurinhas de Icekiss.
Já bem depois, foi em março também que atravessei a Avenida da Universidade para conhecer meus colegas de jornalismo. A maior parte segue espalhada pelo Brasil e pelo mundo todo. Todo ano, eu quero desistir desse caminho que me dói. Sempre digo o mesmo, mas não me refaço em outra estrada.
Em março, dali a outro bom espaço de tempo, fui mãe de menina recém-nascida. Luiza é de fevereiro e em março eu andava tentando me acostumar a banhar, amamentar, dormir e sossegar. Isso nunca é fácil, muito menos indolor, mas passou.
Em março, comecei na maioria dos meus empregos. Como assessora de vereadora, fui aprovada em uma entrevista após uma prece. Depois, fui aceita para um emprego no jornal. Outra prece atendida, desta vez em um dos meus momentos mais sombrios. Quando já tinha tentado de tudo e todas as portas permaneciam fechadas.
Sete anos depois, em outro março sem fim, eu aguardava a minha demissão desse mesmo emprego. Já fazendo outras matérias, porque o jornal já era bem diferente do que me acolheu. Eu era mãe de novo e tentava fazer de outra forma o que fiz da primeira vez. Ia criar eu mesma meu filho de oito meses. Mal sabia tudo que teria que aprender nesses seis anos duros e pesados. Saí outra de tudo isso. Não sei se mais amarga, mais dura ou mole, ou mais triste. Outra, certamente.
Nesses seis anos, morri tantas vezes. Tanto coisa apodreceu de quem eu era. A vida me empurra pra frente todo dia. Me coloca de pé. Mas eu sigo como zumbi, mais morta que viva. Será a tireóide cheia de cistos a culpada? Ou a vida mesmo? Pode bem ser as duas coisas.
Março parece continuar eterno. Escrevi essa crônica no dia 29, ao ver meu filho João Nuno, hoje com seis anos, aos oito meses em uma lembrança do Facebook. No dia 29 de março, eu esperava ansiosamente que chegasse abril, como há sete anos e, com ele, alguma esperança. A chuva continua. Dentro e fora de mim.
Abril começou. Já posso fazer planos de novo?
Tudo passa mesmo?
Por Kelly Garcia em 19.03.22
Minha filha completou 14 anos e decidimos comprar um presente pelo qual ela já vinha babando há um tempo: uma camiseta oficial de banda.
Acostumada a ouvir rock de todo jeito desde bebê, era natural que ela viesse a gostar do estilo musical, embora se agrade de muitas outras coisas. Ela talvez tenha herdado meu ecletismo, porque gosto muito de bater cabeça com o Metálica e o Nirvana, mas também gosto de ouvir Odair José, Mastruz com Leite e Caetano Veloso, a depender da minha vibe do dia.
Depois de procurar em todas as lojas de departamentos e quiosques dos shoppings, vimos que a variedade era pouca. Então, aproveitamos uma ida à Aldeota para passar pelo Centro na volta e revisitar a Galeria Pedro Jorge, reduto underground de outros tempos, onde nós mesmos procurávamos nossas camisetas, cds e adereços para os shows da época de adolescentes.
No fim dos anos 1990 e início dos 2000, bati muita perna por lá, sonhando com uns cds caros para quem nem ganhava mesada e umas baby looks das bandas que eu curtia. Meu gosto continua parecido. Se eu fosse comprar, escolheria alguma do Legião Urbana, do Led Zeppelin, do Nirvana ou uma nova da Janis Joplin.
Ao subir a velha escada em espiral, erramos o andar e ficamos um tempo procurando o rock entre protéticos, óticas e avaliadores de jóias. Mesmo assim, tudo muito deserto. Subimos mais um pouco e o cenário era desolador. Quase todas as lojas não existiam mais. A pandemia varreu tudo.
Encontramos apenas duas funcionando ainda. Na primeira, só com blusas, não conseguimos encontrar o que procurávamos. Eu sabia que se fossem os Stones, o Queen ou Ramones ela gostaria. Não tinha.
Seguimos para a próxima e última. Ao passar da porta, um portal me levou de volta aos 18 anos. Tocava Nirvana, as prateleiras abarrotadas de cds, dvds, canecas, acessórios pra metaleiros e muitas, muitas opções de blusas.
Aquele estabelecimento parecia ter parado no tempo. Estava tal e qual quando eu comprei minha blusa da Janis. Logo lembrei dos acompanhamentos daquele tempo. Um incenso de erva doce e um colar de cristal. Eu tinha um estilo alternativo hippie. Hoje, nem sei mais.
Achamos as blusas procuradas. Acabamos comprando Ramones e Beatles. Pra nós, nada foi comprado. Ficou pra próxima. A estampa do Quatro Estações do Legião Urbana foi a que mais gostei.
Ao sair de lá, encontrei uma banquinha vendendo pó de guaraná. Claro que eu tomei. Aquele foi meu café da manhã por um ano inteiro. Em 2000, quando prestei vestibular. Meu pai fazia pra me manter acordada, porque eu estudava de manhã. Continuava com o sono de sempre e ganhei cinco quilos nessa época. Mas embora menos doce que o que preparávamos em casa, gostei muito do sabor.
Aos 38, concluo que nem tudo na vida passa. As lojas fecharam, mas ainda restou o sabor do pó de guaraná. E as memórias boas. Bem antes da minha blusa da Janis virar pano de chão.
Ainda posso colocar Smell Like Teen Spirit do Nirvana no máximo nos meus fones e lavar a louça. A vida continua.
Constelação de pirulito
Por Kelly Garcia em 05.03.22
Desde os meus doze anos, tento entender o desenho que as estrelas formam no céu. No meu antigo bairro da Cohab, bastava passar na praça de noite para ver um céu muito estrelado, possível tanto de identificar as constelações ou imaginar, como se fosse um jogo de ligar os pontos. Nessa praça, antes de urbanizarem, ainda havia muita areia, o que com um pouco de imaginação, nas noites de lua cheia, fazia parecer uma praia.
Naquele tempo, eu ainda não conhecia como era o mar de noite. Quando eu ia com meus pais para a praia, geralmente a do Icaraí, em Caucaia, a gente voltava cedo. No mais tardar, umas 14h. Almoçava no Assis, o Rei da Paçoca e voltava, bêbada de mar, para dormir o resto do dia e acordar de noite com as costas ardidas.
Casa de praia eu só fui com uma turma de amigos depois da maioridade e, mesmo assim, não era tão perto da praia. O Icaraí não tinha mais areia. A praia tinha sido degradada, como hoje permanece.
A primeira constelação que aprendi a achar foi a do Cruzeiro do Sul. Talvez com meu pai ou com os livros de ciências. Depois, soube que era perto dela que dava pra ver a maior de todas que conheço até hoje: a de Escorpião. No centro, uma estrela vermelha é o seu coração. Nunca mais lembrei de procurá-la no céu. Tenho saído pouco de noite. E na cidade, com tanta luz, não é mais tão fácil de achá-la. Entretanto, toda vida que tenho oportunidade de estar sob um céu escuro, é ela que tento localizar.
Aprendi que no mês de abril ela parece estar mais vibrante, nunca entendi o porquê. Isso vem de observar. Especialmente, próximo ao 22 de abril, o Descobrimento do Brasil. Por que será? Não tem nada a ver com o zodíaco, porque se assim fosse, ela deveria ficar mais visível era no fim de outubro e no mês de novembro.
Uma vez, em um julho, quando viajei para a casa do meu pai pela primeira vez de carro, ficamos tão impressionados com a imensidão de um céu no breu da estrada sem nenhum poste, que paramos o carro ao lado dos cataventos de energia eólica, próximo a Itarema, em plena CE-085. Era mais de meia noite, abrimos o carro e saímos os quatro, eu, marido e crianças para olhar o céu. Consegui achar o escorpião com o coração em chamas. Sempre lembrando a constelação preferida.
Essa mesma beleza, eu já conhecia das noites na velha casa de meu avô, quando a primarada se reunia de frente e ficava sentada na calçada, embaixo de um grande coqueiro que ainda está lá. Já adulta, pude ver a constelação em algumas viradas de ano, em Jeri, quando a turma grande subia a duna do Por do Sol para receber o ano novo e depois andar na beira da praia, observar o vai e vem do mar ou tentar achar alguma festa animada, até dar o horário de os carros voltarem pra cidade.
Muitos anos depois da última vez que estive em Jeri de noite, falei pra minha filha mais velha e tentei apontar onde ficava a minha constelação preferida. Ela, aos oito anos, não conseguiu pegar as referências e desenhou um pirulito com a multidão das estrelas da noite. Talvez fosse o excesso de doces durante o dia porque meu pai tem uma mercearia e ela vivia com um olhar pidão entre as prateleiras de pirulito e Nucita. Cada qual com suas constelações.
Para mudar a cor do dia
Por Kelly Garcia em 19.02.22
As crônicas nascem nos detalhes. A vida segue, sempre apressada. Nos momentos em que a queremos devagar, ela anda mais ligeira. Nossos filhos mal nascem, já sabem sorrir. Piscamos e já correm. Quando percebemos, já são mais altos que nós. A cada amanhecer, a velocidade parece ser maior.
Os empregos pedem mais atenção. A meta não foi alcançada, o artigo precisa de mais uma revisão. O sofá parece menos macio e mais fundo de tanto tempo que permaneço sentada nele, tentando resolver tudo no celular porque o notebook anda lento. Tudo envelhece. Eu, os móveis, o computador.
Nesses dias rápidos, o céu parece mais cinza, o perfume das flores... Não há esse perfume há muito tempo. Não tenho mais flores na janela há três anos, desde que me mudei. O único cheiro forte é do café cedo da manhã que estou tentando preparar de outra forma. O pó e o açúcar se misturando com a água e esquentando até subir. Para ser coado no filtro de papel porque o coador de pano eu nunca aprendi a manusear sem acidentes.
O cheiro bom de bolo no forno deu um tempo desde que o último de laranja que eu tentei fazer explodiu. O cozido de ossobuco, sempre tão aromático, também anda fora do cardápio, esperando o Assaí abrir o açougue para retomar. O cheiro de peixe frito, por mais que eu não o queira e ligue o depurador para eliminar, teima em ficar por dias, assim como essa sensação ruim de incompetência por não conseguir criar nada em semanas. Sempre digo que não vou mais comprar filé de tilápia, mas eu gosto do sabor. O problema é esse cheiro persistente.
Entretanto, basta descer os quatro andares que me separam do jardim do condomínio para observar um mundo com outro ritmo.
Se eu desço às 7 horas, o sol alto já queima a minha pele. Ponto ideal para ficar com o rosto rosado, e eu gosto dessa sensação. Até as oito, quem domina os jardins são as rolinhas, que costumam passar com desenvoltura e elegância entre os bancos. Os beija-flores dão seus vôos rasantes e procuram os bebedouros das janelas e as varandas com flores. Disputam com os barulhentos sibites. E caminhando, eu lembro que eles já passaram na minha janela, meio que para lembrar que eu poderia comprar um bebedouro e assim assegurar a sua presença toda manhã. Os pardais do meu antigo apartamento nem se importavam com nada. Invadiam a janela da cozinha e surrupiavam o que estivesse na pia.
Caso eu desça um pouco mais tarde, por volta das 9h, percebo que começou o horário das borboletas. Amarelas, brancas, laranja, elas voam apressadas para escapar dos ágeis calangos que mergulham entre os canteiros. Para disfarçar, eles parecem estar paralisados, apenas sentindo o sol esquentar as peles frias. Mais tarde ainda, entre as 12h e as 15h, eles fazem fila para aproveitar o sol forte. Uma vez, quando fui pegar o almoço, contei oito juntos perto de um ar condicionado. Eles é que estão certos.
Mas nessas caminhadas matinais que ainda não consegui manter a regularidade, o ponto alto sempre é encontrar, ao fim do trajeto circular de rodear os dois blocos do condomínio, a simpática gatinha tricolor Farofa ou o seu filho adolescente, rajado de cinza com branco. Alisar os dois compensa o cansaço e a monotonia da caminhada. Assim como compensa o delicioso choque térmico de tomar um banho frio depois de ter o rosto pegando fogo por causa do exercício.
Basta pouco para a cor do dia mudar. Eu preciso lembrar disso mais vezes.
Mais uma crônica para São Paulo
Por Kelly Garcia em 29.01.21
468 anos é uma data muito quebrada para merecer uma crônica especial. Entretanto, a saudade que sinto da terra que me trouxe ao mundo justifica esse texto.
Morei pouco tempo efetivamente na Paulicéia Desvairada cantada pelos poetas. Nasci em 1983 e lá fiquei até junho de 1989, um pouco antes de completar seis anos. Entretanto, dizem os psicólogos que boa parte da nossa personalidade é formada até os cinco anos. Talvez isso justifique essa minha eterna vontade de voltar à essa cidade.
Das lembranças dessa infância mais remota, guardo comigo o sonho, os pães fresquinhos e os croissants de uma padaria que ficava pertinho da Estação de Metrô Praça da Árvore, bem próximo da casa em que eu morava na Rua Pero Neto.
Outro detalhe que não posso esquecer são as idas constantes à uma banca de revistas, na Avenida Jabaquara, também próximas da estação. Meu tio Edison sempre foi um consumidor ávido de gibis e revistas. Passava por lá toda semana e ainda tinha assinaturas de algumas, além de sempre adquirir aquelas que traziam brindes de coleções, como miniaturas de carros, aviões, entre outras coisas. A que eu mais gostava era a Revista Superinteressante. Ele começou a colecionar desde que começou a ser editada. Outra maravilha das bancas era uma série de publicações sobre animais, separadas por grupos, como mamíferos, aves, répteis. As gravuras eram lindas e nesse tempo ainda não tínhamos acesso à internet. Como eu gostava de ver, pra conhecer os animais de todos os lugares do mundo sem sair de casa!
Nessa banca, eu ganhei meu primeiro gibi, acho que da Xuxa, o número um. Valeria uma fortuna se eu tivesse guardado.
Nesse meu tempo de criança pequena, meu pai trabalhava muito e eu ficava sozinha em casa com a minha mãe. Mesmo assim, foi ele quem me ensinou a andar de bicicleta com rodinhas descendo essa ruazinha estreita, a Pero Neto, nos domingos sem movimento de carros.
Meu irmão mais novo nasceu um ano antes de irmos embora para o Ceará. Nascido no inverno, ele não se deu com o clima frio e adquiriu um eczema que o deixava cheio de bolhas e muito vermelho, só curado com a nossa vinda definitiva para cá. Ainda hoje ele é extremamente alérgico ao frio e à umidade. Nunca se acostumou.
Em São Paulo, eu não estudava na escola. Minha mãe falava que era muito difícil conseguir vaga no pré-escolar e preferia me ensinar ela mesma a escrever e ler nos caderninhos. Dessa maneira, mesmo sem ter formação de professora, minha mãe me alfabetizou em casa. Aos 5 anos, eu já lia e escrevia. Mas olhava com um olhar bem pidão quando via as meninas com suas fardas azuis e mochilas indo para a escola. Era uma jardineira linda. Como eu queria ir também.
Outra lembrança forte é do pinicado da lã nos agasalhos. Eram duas blusas, duas calças, cachecol, gorro e luvas pra encarar a rua. Saíamos muito pouco no inverno e eu esperava o sol voltar bem ansiosa. Os dias bonitos eram os de sol. Tão diferente do bonito pra chover daqui do Ceará. Eu chegava a teimar com minha avó cearense que os dias bonitos eram os de sol forte. Também, em São Paulo, às vezes passam mais de 15 dias sem sol. O céu cinza de dia e rosa de noite. As roupas não secavam.
As roseiras da vizinhança tinham muitas cores. Eram amarelas, vermelho sangue, brancas, rosa claro. Meu sonho era ter um jardim com uma variedade delas. Até consegui realizar com as rosas miúdas por pouco tempo. Nunca aprendi a podar. Hoje, até os cactos morrem nesse apartamento.
Éramos privilegiados também pelas duas feiras nas proximidades. Por isso, nunca faltava fruta, legume, verdura e... Pastel. Minha mãe enchia o carrinho com todo tipo de verdura e legume, não tinha esse negócio de dizer que não gosta. Recheado e iogurte eram raríssimos porque ela não queria comprar. Desse jeito, aprendi a gostar de couve flor e brócolis ainda nessa época. Beterraba então era quase um doce natural. E os morangos imensos e doces, que eu desejava por dois anos até voltar lá de novo, pra rever os parentes, depois da mudança pra cá. Mesmo com esse jeito saudável, sempre levávamos um pastel pra cada um. Os meus preferidos eram os de pizza e de frango com catupiry.
Minha memória boa lembra de todas essas coisas legais, assim como meu tio me passar pelo muro na hora do almoço para comer as batatinhas fritas da minha vó. Por isso, fiquei tão sentida quando vi a casa derrubada, só com a parede do número 209 de pé pelo Google.
Para poder voltar sempre para São Paulo, eu escolho nunca visitar todos os lugares que sonho conhecer. Sempre fica algo para uma próxima vez. Talvez, eu passe a minha vida toda voltando como visita, apesar desse desejo secreto de habitá-la de forma plena. Bem difícil de acontecer.
Carta para Maria Silva
Por Kelly Garcia em 16.01.21
Você partiu no domingo para o mundo dos mortos. Soube que antes de ir, a sua memória já tinha viajado antes. Depois de dois AVCs, você estar viva já era milagre dos grandes. Ainda mais por ter passado ilesa à essa grande pandemia. É quase inexplicável você não ter sido infectada, mesmo convivendo com o seu genro, que passou quase um mês internado com a doença.
Em mim, a má notícia gerou, claro, muita tristeza. Seu exemplo de vida, muitas vezes sem palavras, me ensinou muita coisa.
Sua elegância e carinho ao servir os netos e filhos, sua perseverança ao superar, pelo menos financeiramente, a perda precoce do marido, com cinco filhos pequenos para criar. Sua fé inabalável, mesmo nos piores momentos, como as dores físicas, decepções. Sua organização com as finanças, a letra bonita e a compaixão com os mais pobres.
Conheci a senhora naquele fevereiro de 1993. Minha mãe foi comigo procurar a Maria Silva, a catequista grisalha do cabelo chanel. No sábado, levei meu caderninho com os lápis de cor e lápis para aprender as primeiras lições do catecismo. Naquele ano, eu faria dez anos, era o tempo da primeira comunhão. Me ensinou a fazer o céu de forma correta. Eu sempre pintava as nuvens de azul, passei a pintar só o céu e deixar as nuvens brancas. Depois, ensinou a cantar, a procurar os livros da Bíblia, o significado dos sacramentos.
Minha mãe não era muito de ir à igreja, mas você fazia questão de me buscar e deixar em casa. A idade, a lama e a distância não eram obstáculo. Eu morava na parte mais baixa do bairro, que alagava nas chuvas. Mesmo assim, você arregaçava a calça comprida e vinha de chinelo deixar e buscar todas nós. Tinha coragem sobrando pra tanta coisa. Até um tanque cheio de roupa você enfrentava, mesmo depois dos 60 anos.
Depois, me treinou para seguir seus passos e ensinar os pequenos. Ensinou a estrutura das aulas, como se portar, as músicas. Lições que até hoje me servem na hora de passar algo para os meus filhos.
A primeira fala em público em um microfone foi você quem motivou, assim como todas as vezes que eu representei papéis nas peças bíblicas que organizava. Fui Maria e o anjo Gabriel, li poesia pra minha mãe, fiz leitura no dia da Primeira Comunhão e até mesmo fui secretária de um grupo que a maioria era idosa, o apostolado da Oração. Hoje, pensando nisso, devia ser bem estranho ver uma criança sendo a secretária e anotando as reuniões desse grupo. Como aceitaram tão fácil? Que coisa esquisita.
Seu incentivo me colocou em lugares que jamais imaginei e hoje, tento recordar suas lições quando tento transpor meus medos. Não foi a toa eu dedicar um dos textos do meu primeiro livro à senhora, o Montese dos seus tempos de casada. Que tentei lembrar só do que ouvi, passados mais de 20 anos.
O que tenho a dizer é que sou grata. Dos sabores e cheiros, aprendi a comer mortadela frita com macarrão refogado com a senhora. Minha mãe nunca tinha servido uma coisa dessas. Adaptação simples de um dia sem mistura especial na sua casa. Fiquei com o prato na lembrança. Assim como a sua predileção pelo Charisma, da Avon, mesmo perfume que minha avó paterna usava. E sua mania de pagar tudo adiantado, quando tentei vender meus cosméticos da Natura e da Avon, meu primeiro emprego. Fiel a poucos produtos, gostava do sabonete de Manteiga de Karité, de Alecrim e Sálvia e do batom Encore da embalagem verde. Não lembro bem se era o Marajoara, o Vermelho Café ou o Grape. Era minha única cliente desse jeito. Corretíssima em todos os pagamentos e foi tesoureira do apostolado da Oração, eu lembro bem dos cadernos em letra bonita e organizados.
Neste domingo, faz uma semana da sua partida e deixo aqui minha homenagem. Foi um privilégio conviver com a senhora e com certeza também os seus familiares, que foram presenteados com sua longa vida de 89 anos, distribuindo lições e doçura.
Vá em Paz e que Deus nos dê consolo.
Natalice e os meus 34 natais
Por Kelly Garcia em 26.12.21
Tenho 38 anos. Acho que consigo lembrar de 34 natais. Em uns, a memória vem mais viva, em outros se desvanece. Dos dois Natais que me recordo de que passei ainda como moradora da minha cidade natal, São Paulo, a lembrança mais marcante é da lasanha, dos presentes e do panetone. As fotos registraram e talvez fossem apenas almoços. Eu era muito pequena, assim como nossa família. Meu pai, minha mãe, eu, minha avó e meu tio. No ano seguinte, meu irmão foi acrescentado. E em junho, nos mudamos para o Ceará.
Aqui, tudo era diferente. O clima, a liberdade e ir e vir. Em vez do almoço com uma mesa pequena, em casa, foram acrescentadas as casas e visitas aos muitos tios. Meu pai, nessa época, tinha 13 irmãos. O Natal não possuía toda aquela formalidade de São Paulo. Talvez aquele primeiro Natal cearense tenha sido celebrado no Corrego do Urubu, nas Bodas de Ouro dos meus avós. Em dezembro, ainda teve minha formatura do ABC, com valsa e eu falando no microfone como oradora da turma.
Dos natais dos anos 1990, era uma alternância de locais. De dois em dois anos, passávamos em São Paulo, com minha avó, meu tio e um primo, que tinha muitos amigos. Ele era cearense e administrava as casas da minha mãe. Foram natais com muita festa, casa lotada, presentes, com alguns primos extras. Nossa família tem umas trezentas pessoas. Trilha sonora era sempre forró e tudo lembrava o Ceará e o Nordeste. Nas primeiras festas, as lambadas do Beto Barbosa, de quem meu primo era fã. Depois, Mastruz com Leite, Zezé di Camargo, Leandro e Leonardo. Na virada do milênio, já era o Morango do Nordeste, Lagosta Bronzeada, Magnificus. Muito churrasco, bebida a vontade. Acabava de manhã.
Essas viagens duravam dois meses. Pra driblar o tédio, meu primo trazia palavras cruzadas e caça palavras. Meu tio comprava gibis. Os passeios eram poucos, só ir ao Ibirapuera e o Zoológico. E visitar algumas tias em Santos, São Vicente e Mongaguá. Lá, a gente não ia na praia, porque era poluída. O melhor programa era conversar com as tias e ir nas feirinhas de artesanato. Minha mãe sempre escolhia algo pra trazer. Eram potes de temperos pintados a mão, garrafas de licor. Eu me encantava com os porta-joias encrustados de pedrinhas, espelhos e com tampa de borboleta empalhada, assim como as bonecas de pano e as roupinhas para as Barbies.
Na casa da tia Suzi, a ceia parecia de novela. Um peru com farofa, frutas secas, amêndoas de todos os tipos, uma torta de nozes. Brinquedos para todas as crianças, árvore de Natal enorme e enfeitada. Só faltava a neve. E tudo era feito sem gritos, com muita educação e carinho, porque ela amava receber.
Nas festas cearenses, a gente só saia para a casa da tia que morava no Bom Jardim. Lá, era sidra Cereser, missa, televisão, orações e tudo feito com carinho também. A casa cheia porque meus tios tinham cinco filhas e a casa sempre tinha algum primo vindo do interior pra ir atrás de emprego na cidade.
Quando minha mãe resolvia fazer a ceia, também caprichava. Geralmente, eram almoços de Natal. Ela gostava da casa cheia, mesmo pequena. Reclamava do cansaço, mas gostava dos convidados ao redor da mesa. Sempre inventava alguma receita nova.
Os anos 2000 chegaram, meus pais se separaram e os natais passaram a ser com os amigos. Sempre víamos o dia amanhecer. Nirvana, Iron Maiden, Guns'n Roses. Muito vinho barato, run com coca. Diversão, alegria. Antes, a missa com um bebê recém nascido passando de mão em mão na igreja toda, simbolizando o Menino Jesus. E eu sonhando que talvez um dia, fosse o meu bebê a passear entre todos.
Chegou minha vez de celebrar com minha própria família. Casei em dezembro e, aos poucos, fui aprendendo a cozinhar minha própria ceia. Meus parentes sofrendo enquanto eu aprendia o ponto certo do Chester, da lasanha. Em algumas vezes, deu certo. Em outras, comeram assim mesmo, só pra me agradar. Criamos nossa própria tradição de celebrar com suco de uva cada dia feliz. Mas ainda falta uma árvore de Natal e tantos outros pequenos detalhes que eu sempre deixo pra última hora e me escapam.
A primeira metade dos meus natais em família de casa se dividiram entre os plantões do jornal e a igreja, porque eu cantava. Já a segunda, foi inventando calendários de advento que nem sempre consigo concluir.
Esse último natal, percebemos a maravilha de estarmos juntos, sem ninguém ter sido levado pelo COVID ou outra doença. Mesmo que o calendário do advento não tenha sido terminado, ou a árvore tenha sido montada, nem a toalha especial na mesa, ainda temos uma família. E isso vale muito.
Além dessa descoberta, mais uma borboleta se transformou na nossa casa. Uma monarca fêmea, que batizei de Natalice, por ter nascido dia 24. Ela veio apressada e logo voou pela janela. Que a gente tenha essa mesma fome de ir para o mundo e viver em 2022. Feliz Natal!
Outras cidades que me habitam - uma nova fase
Por Kelly Garcia em 13.12.21
O livro Cidades Invisíveis, com as crônicas de Fortaleza, já está no mundo. Apesar de ter muito ainda o que contar sobre a cidade que me acolheu tão bem, estou pensando em ampliar meus cenários e horizontes, por isso, me despeço do nome e sigo com apenas o meu de nascimento - Kelly Garcia.
Agradeço a cada um que leu meus textos nesses quase dois anos e conto com a leitura das crônicas daqui por diante, também falando de cidades, paisagens e leituras, mas sem o nome que dei ao meu livro de estreia.
Aproveito a deixa e digo a vocês que, além de Fortaleza, talvez a segunda cidade que mais me traga recordações seja a badalada Jijoca de Jericoacoara. Muito embora, as minhas lembranças nada tenham de glamourosas, pelo contrário.
De lá, eu conheço o avesso a isso. Beber água de pote, puxar água na cacimba pro banho, as farinhadas, as celebrações que meu avô pregador muito católico fazia no prédio pertinho da sua casa, jantar assim que anoitece, dormir de rede, assistir televisão na casa dos desconhecidos... Ir pra lá era o mesmo que viajar no tempo.
Há algum tempo, penso em escrever as crônicas do que vi por lá nesses tempos. Eram os anos 1990, mas a energia elétrica acabava de chegar.
A Jeri já era o destino de muitos turistas, mas minha família simples estava nas cozinhas das pousadas, na entrega do pão nas padarias ou das compras nos mercadinhos. Era das mãos ágeis das minhas primas que saíam muitas das colchas e varandas das redes vendidas nas calçadas e na beira da praia.
Pra vencer, era preciso sair de lá. Emprego, só tinha agricultura ou ir pra Jeri. Alguns, se deram bem como comerciantes por lá mesmo, outras se tornaram professoras. Mas isso é mais recente. Da geração do meu pai e dos meus primos, uns foram pra Fortaleza, outros pra São Paulo e outras grandes cidades. Esses bastidores da migração, eu conheço muito bem. Foram os caminhos do meu pai, vários tios e do meu avô materno. Esse assunto me fascina.
Os 14 filhos do seu Doca Ribeiro se multiplicaram em mais de 300 descendentes, certamente. Sempre que eu público algo, aparece coisa que eu não sabia. Igual quando falei da Pierina, do Plácido e do Hinko. Só que essa é parte da minha história e não temos castelo derrubado ou nada de patrimônio pra contar. Apenas a casinha do meu avô, que o comprador resolveu preservar e persiste na esquina de uma encruzilhada, perto do Boqueirão do Córrego do Urubu.
Uma das paisagens mais fortes pra mim é a da Lagoa do Paraíso. Meu pai pintou uma aquarela com essa imagem, inclusive. A Lagoa dita do Paraíso, na verdade, era só minha e dos primos. Antes, era do meu pai e dos seus irmãos.
Me apoiam pra contar essas histórias? Conhecem o lugar?
Na Praia da Lagoinha
Por Kelly Garcia em 16.11.21
Feriado. Acordei 5h da manhã para ir num passeio. Destino era a praia da Lagoinha, em Paraipaba. Desde os tempos do isolamento social, eu me perguntava se ir de ônibus fretado com um grupo pra alguma praia longe ainda seria possível e relembrava com saudade cada um dos destinos que já conheci assim.
Quando era adolescente, era raro ir com meus pais à praia. E de ônibus normal, meu pai achava perigoso. Nunca entendi bem o porquê. Nessa época, minhas primas do Bom Jardim começaram a me convidar para os piqueniques com os jovens da igreja. Se era com minha tia e as primas, meu pai autorizava e aí começaram as aventuras. Batoque, Barro Preto e Prainha foram algumas das praias que a gente conheceu juntas, com direito a fotos analógicas de biquíni, muita farofa misturada com areia e musicas dentro dos ônibus.
Voltando um pouco mais no tempo, lembrei de outro ônibus fretado, mas com estudantes, para o Teatro São José. Em 1995, ainda não existia o Dragão do Mar e o Poupa Ganha era o maior sucesso nos títulos de capitalização. Outro passeio com direito à muita zoada e algazarra de estudantes, com aquelas coisas vintage de Passa ou Repassa e caravana de escola. A minha, era o Colégio São Raimundo, escola muito pequena de bairro. O cara que levou a gente era o animador da quadrilha de São João. Nem lembro se a gente ganhou ou perdeu alguma coisa na competição, eu fazia a sexta série do Fundamental. Só não esqueci das cadeiras e do ar antigo do Teatro, onde nunca mais entrei. Uma pena eu não lembrar também do que tinha ao redor. Talvez o casarão onde morou o elegante Mister Hull ainda estivesse de pé. Só lembro mesmo da Biblioteca Pública, onde planejei ir depois, embora nunca tenha feito ficha.
Voltando aos chamados passeios "farofeiros", chegou o tempo de ir nos da minha própria igreja. Dessa vez, eu já era adulta e casada, mas continuava animada com essas coisas. Era uma ótima oportunidade de conhecer novos lugares de forma barata, rir muito e ficar na companhia dos irmãos da igreja. Como era de lei, cada qual levava seu almoço e a merenda. Eu, que nesse tempo não era muito experiente em cozinhar, aproveitava pra provar um pouquinho de cada prato dos outros. Era aquela festa. Tinha o bolo da irmã Evanira, que era muito bom, porque ela já era acostumada a fazer pra vender na Guararapes, onde trabalhava há mais de dez anos como costureira. O Mungunzá doce da irmã Maria, que eu já conhecia das cantinas da igreja. O risoto de frango desfiado e o cuscuz com leite e coco da irmã Graça também faziam muito sucesso, assim como a torta de frango das irmãs Rose e de Jesus. Sei que quem não levasse comida não passava fome de jeito nenhum. Além desses quitutes, ainda tinha o famoso suco de carambola do irmão João, com as frutas colhidas no quintal da casa dele.
Participei talvez de uns cinco passeios desses. No segundo, era a praia da Lagoinha e eu nunca esqueci das paisagens e das belas escadarias. Eu estava grávida da minha Luiza e tirei algumas fotos grávida. Com quatro meses de gestação, ainda não tinha nenhuma estria. Dia seguinte, apareceram as primeiras. Eu não sei onde coloquei essas fotos e quase não tenho registros das minhas gestações, apenas na porta da maternidade. Achava estranho meu corpo assim, com os pés inchados e a barriga imensa. No terceiro ou quarto passeio, minha filha já com uns quatro anos quase morreu afogada porque tropeçou nas muitas pedras da praia de Águas Belas. Estava bem pertinho de mim e com água nos joelhos. Nunca mais fomos.
Pois bem. Surgiu a oportunidade de ir de novo e não pensei duas vezes. Preparei um bolo de milho, comprei biscoito recheado, salgadinhos e minha sogra fez baião com farofa de lingüiça, brownie, duas qualidades de suco e fomos de novo.
Diferente dos passeios anteriores, o silencio dominou o ônibus. Poucos jovens à bordo, a maior parte eram avós com netos crianças e os poucos adolescentes, passavam o tempo com suas próprias músicas nos fones do celular ou jogando. Eu, imaginando que a viagem iria demorar, levei O Mundo de Flora, da Angela Gutierrez, para tentar ler no caminho ou quem sabe tirar uma foto instagramável. Não consegui ler porque preferi olhar a paisagem. Carnaubeiras a perder de vista nos alagados me lembraram as que morreram na Beira-Mar.
Chegando na praia, o alvoroço de sempre pra trocar de roupa, passar o protetor solar e correr pra água com as crianças. Eu levei meus dois filhos e a minha cunhada também, ou seja, só sobre os nossos cuidados, tínhamos uma adolescente e três crianças. Enquanto eles tomavam banho na beira, eu tentava, sem sucesso, fazer um castelo na areia. Nunca fui muito boa nisso, era só pra passar o tempo e entreter. Meu filho mais novo, afoito, quase me arrastou e derrubou várias vezes. Desacostumado com o mar, ele se empolga demais, o que rendeu uns bons goles de água salgada. Ninguém toma banho de mar deitado, eu avisei. Mas ele não quis ouvir, levou caldo e voltou pra areia. A foto instagramável com o livro não deu certo, era arriscado o livro cair no mar e o celular também. Três crianças afoitas não dá pra piscar. Perigoso demais.
Fomos pro mar várias vezes, alternando com os banhos de bica perto da escadaria enorme. Eu esqueci de reforçar o protetor. Fiquei com o bronze da adolescência, com umas partes vermelho sangue perto do maiô e nos pés porque não devo ter espalhado direito. Fiquei a noite ardida e, passado o dia e a noite, ainda me sinto quente, com dor de cabeça e náuseas. Talvez tenha ficado com insolação. Ainda bem que os meninos tem mais melanina e só ficaram com um leve ardor.
Na partilha da comida, ainda provei o bolo de milho da irmã Denilde. Minha sogra levou o suco de carambola do irmão João, que agora é pastor e organizou o passeio, como sempre. Mas, infelizmente, as irmãs Evanira e Maria não podem mais partilhar o bolo e o mungunzá porque já se foram. Como almocei com a minha sogra, nem reparei se a irmã Graça trouxe o risoto ou o cuscuz, mas subimos juntas as escadarias para umas fotos. A irmã de Jesus deve estar trabalhando e a irmã Rose, agora faz parte de outra igreja.
Voltamos exaustos, com a vasilha do que sobrou do almoço pra janta e felizes. Basta pouco pra alegria acontecer. Abençoado passeio farofeiro.
Um adeus inesperado
Por Kelly Garcia em 6.11.21
Assim como a maioria das pessoas, eu também fiquei triste e sem acreditar na morte repentina da cantora Marília Mendonça. 26 anos apenas. Mãe de um filho pequeno e que retomava a rotina de shows depois de tanto tempo parada por conta da pandemia. Uma surpresa ruim, sem dúvida, ter que dar uma notícia dessas.
Puxando nas minhas memórias recentes, lembrei que ouvi sua voz grave a primeira vez no carro do meu pai. Acho que no ano passado. Eu, alienada das rádios desde que deixei de trabalhar fora de casa, jurava que fosse uma voz masculina. Ela cantava as desilusões, dava força pras mulheres saírem de relacionamentos ruins. A rainha da sofrência.
Quando vou pra casa do meu pai, gosto de refletir nas letras do que não ouço normalmente. Entre uma ida e outra na casa de algum parente, na praia ou indo pegar o ônibus de volta pra casa, sempre tem essas trilhas sonoras bem diferentes do meu gosto pessoal. Em dias normais, escuto o pessoal do Ceará, rock psicodélico dos anos 1970 e aqui, acolá, o forró Mastruz com Leite. Sou eclética.
Já a Marília Mendonça era parte dessa trilha sonora do som do carro do meu pai. Nessa ida mais recente, nas férias de julho, teve também o Wesley Safadão, o Xandy Aviões e, o João Gomes e, claro, o Zé Vaqueiro. Me surpreendi ao saber que o mote das músicas sempre são os relacionamentos desfeitos. É sempre o cara ou a moça reclamando que vai ser difícil de esquecer. Confesso que gostava mais dos bregas originais.
Mesmo sem ser fã, continuo sem acreditar que a Marília Mendonça foi embora. O ensinamento que fica é que a vida é um sopro. Nunca sabemos qual será o último abraço. Se iremos voltar pra casa. Pra ela, não deu. Uma pena.
Mais um lembrete de que só temos o hoje. E que somos peregrinos, pra quem, como eu, acredita que a vida não acaba aqui.
Eu desisti de ir em enterros e detesto foto de gente morta. Prefiro ver as pessoas vivas, e pensar que elas só fizeram uma viagem pra longe.
Vai ser assim com a Marília Mendonça. Me recuso a ver imagens do acidente. Na minha mente ela vai permanecer viva, assim como a miríade de parentes e amigos que já viraram estrelas.
Um pequeno mapa do tempo do Belchior gravado em mim
Por Kelly Garcia em 25.9.21
Eu era só mais uma adolescente que queria aprender a tocar violão. Aos 12, o Legião Urbana era minha banda preferida e eu fazia um curso para aprender o básico. O instrumento, ganhei ao completar 13 anos, um Di Giorgio 16.
O meu avanço como violonista foi pequeno. Não saí das notas naturais. Treinar a voz era mais a minha cara. Os dedos ficavam machucados e eu gostava das unhas longas. Minha mão pequena e os dedos curtos também não facilitavam em nada as pestanas no Si e no Fá. Desisti de tocar e passei apenas a ouvir e tentar cantar afinado. Secretamente, eu sonhava com a fama, entretanto nunca tive coragem para tanto.
O tempo passou um pouco e conheci outras pessoas que gostavam de tocar. Um dos meus amigos mais velhos que andava sempre com violão tinha uns 25 anos e gostava de Roberto Carlos. Foi ele quem me mostrou a primeira música do Belchior, Divina Comédia Humana. Achei selvagem, forte, parecida com as poesias do José Telles que eu gostava de copiar na agenda. Fiquei com ela na mente e gostava de ouvir e cantar na velha praça do meu bairro, embaixo de um cajueiro grande que ainda está lá. Eu que fui embora.
Eu não gostava da voz do Bel. A imitação do Dinho do Mamonas Assassinas ficou forte na minha mente. Achava anasalada, chata, sem graça. A forma dele cantar quase falando também me incomodava.
O tempo passou mais um pouco e eu fui aprovada no vestibular da comunicação da Federal. Por lá, o Belchior e os outros intérpretes do Pessoal do Ceará eram cult. Fazia parte do repertório das calouradas e festas nas casas dos amigos. Eu comecei a gostar nesse tempo. É impossível hoje ouvir e não lembrar desse tempo bom e doce. Como uma trilha sonora dos meus tempos de universitária, ao lado do Oasis e Los Hermanos.
Quando CD começou a ficar barato demais comprei algumas coletâneas com meu marido nas Americanas. Acho que foi lá também que comprei a biografia. Meu marido músico leu primeiro. Eu ainda não.
Hoje, o cara faria 75 anos e faz parte da trilha sonora da minha vida, do meu primeiro livro, o Cidades Invisíveis. Teve muita crônica escrita ao som de suas canções, como essa agora, digitada no WhatsApp mesmo, porque o tempo é curto.
Belchior, como intérprete, é muito original e por isso, nem todo mundo gosta. Eu mesma demorei a curtir. Como letrista, não tem como negar que foi um gênio.
Além de ouvir em casa, o Bel foi trilha sonora de muita pauta. Gostava de refletir calada nas letras voltando pra redação. Era inspirador rodar a cidade ouvindo. Quando a viagem era longa, geralmente o seu Tomaz ou o seu Menescal colocavam na volta. E eu regressava com vontade de crônica e não de notícia de buraco feito pela Cagece.
Um dia desses, soube até que ele foi cliente do meu tio taxista. E o Belchior gostava de falar muito nas corridas. Meu tio ouvia tudo. Devia ter muita história mesmo, tanto o meu tio Lino, como o Belchior.
Como a vida é surpreendente, o senhor que cozinhava panelada no Nova Metrópole perto da minha Lan House, em 2007, foi a pessoa mais próxima do Belchior que eu conheci. Ele fazia parte da turma de Fortaleza, mas a vida o afastou da música e ele ficou só com as lembranças do Ednardo, Teti, Belchior e Fagner. Hoje, nem sei se ele ainda é vivo. Minha lan house durou só um ano.
Vou ficar aqui ouvindo as canções do Belchior até terminar o dia, em um pequeno mapa do tempo que ele gravou em mim.
Chocolate fervendo na serra
Por Kelly Garcia em 25.9.21
Meus cadernos estão dentro do guarda-roupa que não abre. O menino mais novo tirou a porta de correr dos trilhos. Não sei abrir. Quem sabe, mais tarde. Pensei em escrever a crônica no notebook, mas estou com preguiça. É uma eternidade até que ele inicie. Velho e lento, não alcança a velocidade do meu pensamento. E a inspiração para o texto foge como a acetona que eu vou já usar para tirar o esmalte das unhas.
As Cidades Invisíveis me tomaram o sossego. Imagino as caixas chegando, sábado que vem. E eu cansando as mãos de tanto escrever carta pra quem comprou no primeiro dia. Vivo adiando as palavras. Penso nas idas aos correios e me canso antes do tempo. Mas não somos gente sem palavra, que volta atrás e se perde. Não. Tenho que ir até o fim.
Essas angústias tiraram um pouco do brilho do meu passeio recente. Passei oito anos esperando para conhecer uma fazenda de café de verdade no Ceará. Como tudo que acontece comigo, também se deu de forma repentina, despretensiosamente, quando eu não estava mais desejando com tanta força assim.
Depois de tomar banho em uma cachoeira desconhecida, debaixo de um sol tão forte que causou incêndio ali pertinho, colocamos o Sítio São Luís no aplicativo Waze. Era só dali a 40 minutos. Estranhei a proximidade. Eu conheço pouco o maciço de Baturité, mas nas minhas lembranças, entre Redenção e Pacoti existiam umas quatro cidades. Como poderia estar tão perto desse jeito?
Fomos seguindo nas indicações do satélite. Curvas fechadas, subidas íngremes, descidas em que não dava pra ver a pista embaixo. Tontura, enjoos, abismos.
"Vai chegar no céu? Nós perguntamos os dois sozinhos nessa aventura de domingo. Talvez, se a tontura dominasse meu marido, o motorista da viagem de carro, hoje, estivéssemos no céu mesmo. Não foi dessa vez.
A placa sinalizou o sítio. Uma árvore colorida encobria a fazenda centenária. Olhando bem, era ela mesma.
Depois de tanta subida e curvas, sentamos nas espreguiçadeiras de frente para um pequeno lago. Patos, marrecos, gansos e até galos de campina andavam tranquilos, entre um banho e outro. Era quase quatro da tarde.
Entramos, fotografamos na escadaria, como todo mundo. As bandeiras nas portas denunciavam a velhice da casa. O chão de tijolos lembrava a velha casa dos meus avós.
Um chocolate com chantilly e o bolo de café adoçaram a viagem. Afoita, queimei a garganta com o chocolate quase fervendo. Sempre me engano com a temperatura das bebidas.
Pensei em falar com a dona da fazenda, mas ela estava cercada de amigos. Fiquei encabulada. Fui na biblioteca para mais fotos. Reconheci nas prateleiras os livros vermelhos da coleção do Dostoiévski e Tolstoi, que comprei no sebo, ano passado. Imaginei meu livro ali no meio daqueles irmãos antigos de papel.
Posei para mais fotos na mesinha de telefone. Lembrei do meu telefone com chave da adolescência. As contas caras da Telemar.
"Tá ficando de noite", meu marido disse. E o medo de encarar aquela estrada sinuosa no escuro? Hora de pegar o caminho de volta. De souvenir, um pacote de café orgânico.
Lembrei que esse percurso todo que fizemos bem que rendia uma boa história de época. Quem sabe? Preciso voltar lá com os meus filhos para pegar mais detalhes. Quando será?
Entre escadarias, janelões e poesia
Por Kelly Garcia em 18.9.21
Passei em frente das suas portas imponentes não sei quantas vezes. Recusei muitos convites de conhecer seus salões. Olhei pra você do Aterro da Praia outras tantas. E a atenção contigo, no Circular 1, eu dividi com o verde mar da Praia de Iracema. Duas vezes por dia, a saudação. Na ida e na volta. Da janela.
Um dos convites mais insistentes para conhecer seus encantos veio do poeta José Telles. Toda semana, geralmente às quartas, eu ligava para ele. A intenção era saber da programação do clube, os lançamentos de livros, os shows, o próprio Prêmio Ideal, os seus livros a lançar. Divulgava na coluna social. Naquele tempo, eu era jornalista da coluna da Leda Maria.
Médico anestesista, Telles era um poeta conhecido, inclusive imortal da Academia Cearense de Letras. Eu já o conhecia de um livrinho azul, publicado pela editora do seu Assis, a ABC, que publicou ele e um monte de outros autores cearenses, além de republicar alguns clássicos de outros tempos nos anos 1990. Por essa década, alguns livros paradidáticos saiam encartados no jornal. As edições, muito simples, caiam logo a capa. Minha Luzia Homem não resistiu sequer à primeira leitura.
O livro azul era o Poemas Estivais. Seu primeiro. Chegou às minhas mãos como um presente e serviu para enriquecer meu pobre vocabulário de estudante do Ensino Médio. Plenilúnio e Solilóquio aprendi nessa edição, assim como a Exegese, que eu só viria a entender muitos anos depois o que era de verdade.
Como no meu bairro eu não tinha acesso a jornal impresso, porque não tinha banca, só lia jornal na escola ou na casa de alguém que assinasse. Quando vi um caderno inteiro do periódico com seus poemas, pedi pra guardar. Era o caderno Cultura, assinado pelo seu grande amigo Carlos Augusto Viana, meu professor de literatura da escola.
Muitos anos depois, eu, jornalista da coluna social, soube que ele viria à redação divulgar seu livro novo. Aproveitei pra pedir tudo autografado e ele trouxe. Nesse tempo, eu já tinha perdido meu Poemas Estivais pela minha velha mania de emprestar os livros. Um dos muitos que nunca voltaram e eu não tenho ideia de pra quem eu emprestei.
Telles trouxe todos, menos esse. Parecia ter um certo constrangimento de entregar seu primeiro livro. Ele, que tinha muitos outros mais belos. Depois, mandou entregar na portaria esse também, pela minha insistência. Completei minha coleção.
Depois de milhares de minutos falando sobre as poesias, a vida corrida, a inspiração dos poemas, a praia de Bitupitá, seu torrão natal, os seus gêmeos da idade da minha filha, eu saí da coluna social. Me voltei a outros assuntos, meus e domésticos.
Só soube da morte dele já passados meses da sua partida, quando decidi me inscrever pro Prêmio Ideal, que agora tinha o seu nome. E me entristeci.
Não ganhei o prêmio, nem tive coragem de ir pra entrega, nos salões do Ideal Clube. Criei um pseudônimo e pedi pra uma amiga ir no meu lugar. A vergonha era maior que a curiosidade.
Na quinta, 9 de setembro, pude conhecer o chão que o Telles pisou e tanto inventou projetos. As escadarias de madeira, as luminárias com décadas de uso, os espelhos meio manchados pelo tempo, o piano de cauda do restaurante. Por lá, vi a contracapa do meu livro Poemas Estivais, uma pintura com o rosto do poeta. Telles vive naquele clube que comemora seus 90 anos em 2021. Um clube social tão importante, com livro do Marciano Lopes homenageando, entre outras obras exaltando esse espaço, palco para muitos dos personagens que cito nas crônicas do meu livro Cidades Invisíveis. Emílio Hinko, Pierina, dona Beatriz Philomeno Gomes e tantos outros viveram momentos inesquecíveis naquele clube. Agora, eu também tinha pisado aquele chão.
As cidades do fim do mundo
Por Kelly Garcia em 11.9.21
Esse texto foi publicado originalmente em 13/09/20 e estará no livro Cidades Invisíveis, a ser publicado em outubro.
No dia 11 de setembro, como todo mundo que tem mais de 25 anos deve lembrar, as Torres Gêmeas - o World Trade Center, ruíram depois de um ataque terrorista. Eu não sei o que vocês estavam fazendo nesse dia, mas, mais uma vez, pensei que fosse o começo do fim. Em toda a minha vida, nunca tinha visto uma prova real de que tudo fosse se acabar. Aquela foi a primeira vez, além da Guerra do Golfo, que também me impressionou.
Nesse dia, se eu bem me lembro, era por volta de meio dia, quando vi a imagem aterradora na televisão do Dudda’s Burguer, em frente à antiga sede do Centro Cultural Banco do Nordeste. Minha faculdade estava de greve e eu cursava o segundo semestre. Com a folga no tempo, estava fazendo um curso de informática nas proximidades da Praça do Coração de Jesus, aí comia meus dois pães de queijo recheados com capuccino e aproveitava o que tivesse passando no CCBNB. Essa notícia perturbou tanto meu dia que eu fui logo pra casa, atarantada, cantando na minha mente aquele hit do Paulinho Moska que foi tema da série O Fim do Mundo, na Globo. “Meu amor, o que você faria se só te restasse esse dia?” Achava muito injusto ter que morrer logo um mês antes de completar meus 18 anos. Como pode? Mas eu já imaginava que só viveria até os 17 porque tinha acreditado piamente nas profecias de Nostradamus. Então essa não foi a primeira vez que eu pensei que o mundo acabaria.
Aos nove, dez anos, gostava de revirar a minha biblioteca exótica, que era sediada no guarda roupa embutido do quarto dos meus pais. Lá, rodeado das enciclopédias e das muitas edições dos livros do Instituto Universal Brasileiro, que meu pai sempre fazia os cursos, tinha um exemplar surrado e sem capa das profecias de Nostradamus. Eu não só li, como comparei com o Apocalipse e ainda passei pro meu primo, que era o meu melhor amigo nessa época, ler também e ficamos os dois assustados, esperando viver até apenas os 17, porque o falso profeta previu que o mundo acabaria em 2000, fazendo referências com a Bíblia, os manuscritos do Mar Morto, astrologia, um monte de coisas. Foram muitas as noites insones preocupada com isso, era o meu filme de terror.
Depois, aos 13, recebi uma carta com a revelação do Terceiro Segredo de Fátima. Fiquei mais aterrorizada ainda porque lá dizia que seriam muitos dias de escuridão e que a única luz seriam as velas bentas. Até benzi algumas para guardar, porque essa previsão não dava data certa.
Na virada do milênio, eu já andava desacreditada. Isso porque em 98 e 99, Hollywood explorou bem o tema com vários filmes e até a Globo fez uma série sobre isso. Se passa na TV, parece que é mesmo ficção. O Réveillon foi na casa de familiares em São Paulo. Na hora dos fogos, eu ainda pensei um pouco se o asteróide não estaria ofuscado pelo brilho e os estouros. Mas, aqui estamos e mundo continua. Em 2012, o calendário maia previu outro apocalipse e eu fiquei meio impressionada com as ondas gigantes porque cheguei a ter pesadelos com aquiloi várias vezes. Até hoje, não fico muito confortável com a vista de prédios para o mar. As poucas vezes que subi para fazer matérias, em alguns apartamentos na orla, fiquei me sentindo meio esquisita, como se o mar fosse invadir tudo a qualquer momento.
Apesar desse desconforto, diferente da virada do milênio e dos meus terrores infantis, hoje estou segura de quem é o Autor da história do mundo. Então, não preciso me desesperar. Esse mundo vai passar mesmo. E você, o que faria se só restasse esse dia? Se o mundo fosse acabar, o que você faria? Fiquei curiosa!
Uma Fortaleza diferente
Por Kelly Garcia em 14.8.21
Era um começo de noite. Pegamos o carro com os dois meninos e decidimos ver algo diferente na orla. Somos acostumados a sempre estacionar ao lado do velho Edifício São Pedro e sentar na calçada daquele casarão antigo que, pelo que vi nas fotos, está lá desde antes do primeiro hotel de frente para o mar em Fortaleza. Patins, bicicleta de quatro lugares, açaí, cachorro quente e pipoca era certeza ter. Nosso passeio repetido mil vezes e mesmo assim, muito bom. Mas, aquela noite, queríamos novidade.
Descemos a Monsenhor Tabosa pra pegar o retorno e descer pela Barão de Studart. Sempre achei massa aquela descida, principalmente de dia. O mar tão verde! Parecia que ia engolir a cidade. Mas era de noite e seguimos pela nova Beira-Mar. Seguimos reto e não achamos onde estacionar. Agora é tudo Zona Azul. Não sabíamos como comprar esse cartão e, de coisa diferente pra criança, não tinha nada demais.
Era um calçadão imenso, uma multidão de gente caminhando, pedalando, andando de patins, correndo, nos skates. Tinham alargado, apareceu um aterro novo. Tanta novidade que eu olhei pro Náutico e achei ele tão velho e sem graça que parecia que iam já dar um jeito de demolir também. Era outra Beira-Mar.
Decidimos estacionar perto da feirinha, porque avistamos um flanelinha. Lá, talvez pudéssemos deixar o carro sem ter o tal do cartão da Zona Azul. Mudaram a feirinha de lugar, inclusive. Não sei se em definitivo. Lendo o Álbum Fortaleza Ilustrada, uma das crônicas dizia que o monumento em forma de V onde ela era antes, ali pertinho do Náutico, chamavam de chifre do governador. Ri sozinha.
Descemos do carro e decidimos andar até perto de onde a gente sempre ficava, lá vizinho do Edifício São Pedro. Ou até onde nossos pés conseguissem. Voltando naquele calçadão tão largo, percebemos cachorros bonitos, o vento forte, o congestionamento de navios chegando no porto do Mucuripe. Até uma lua vermelha surgindo por trás dos moinhos. Luiza quem percebeu.
Nossa família não gosta de tomar banho de mar em Fortaleza, preferimos as de Caucaia mesmo. Praia da cidade, pelo menos pra nós, só serve para molhar os pés e acalmar a mente. E de noite parece ser mais legal. Fomos molhar os pés ali pertinho da Rui Barbosa, onde o bangalô da família Jereissati olhou o mar tantos anos. O espigão da Rui Barbosa está desativado, e nesse entroncamento tudo ficou tão diferente que eu quase não reconheci mais onde ele estava. Depois que percebi o tapume azul indicando um novo edifício. Fiquei pensando: daqui a pouco, talvez seja o São Pedro que tenha o mesmo destino.
Subimos nas pedras vizinhas ao espigão agora desativado. Aquela vista deve ser linda de dia, eu pensei, enquanto criava coragem pra escalar as pedras. Meus meninos são mais destemidos. Já tinham subido. E pensar que há algum tempo o menorzinho quase entrou naquele mar de roupa e tudo, admirado com a imensidão. Tivemos que correr atrás rápido pra evitar o pior. Tinha uns dois anos. Nuno sempre foi afoito.
O mar de Iracema me conhece bem. Mas só de olhar mesmo, porque nunca me banhei nele, diferente do Milton Dias. Nunca achei que fosse limpo. Sou mais o Cumbuco, na minha Caucaia.
Falando no Edifício São Pedro, fui procurar saber de uma amiga querida que morou lá alguns anos, a fotógrafa Viviane Siade, que conheci no jornal e era minha parceira em tantas pautas. Do seu relato, a paixão pelo velho navio ancorado no seco, como o prédio se parece, se deu ainda passando férias em Fortaleza. Quando o avistou, disse logo que queria morar ali para o seu companheiro. E assim foi, quando escolheram a cidade para moradia, algum tempo depois. Do primeiro andar, era possível já sair descalço e pronto para o banho de mar. O vento invadia o amplo apartamento. Foram tempos inesquecíveis, ela me disse, infelizmente interrompidos quando a proprietária pediu o imóvel. Tinham um projeto para o primeiro hotel da orla de Fortaleza. E isso faz mais de uma década.
Ao ir pra casa, depois do passeio com a família, eu peguei o caminho habitual e passamos em frente ao velho Iracema Plaza Hotel, que agoniza em ruínas. Me surpreendi, porque tem mais de um ano que não o via. Acho pouco provável que haja solução pra ele, fora a demolição. De certa forma, eu já esperava por isso e temo por outros prédios que, caso não façam nada, podem ter o mesmo destino. O que farão com o velho Hotel Excelsior? Vi que aqueles ricos portões já nada abrigam. A Associação dos Merceeiros, que era o meu plano de saúde na adolescência, também continua fechada já vai fazer um ano. E a crise no meio do mundo... A gasolina pela hora da morte, assim como a energia e o gás de cozinha. Imóvel fechado só dá prejuízo. Irão resistir, será?
Eu uso óculos
Por Kelly Garcia em 14.8.21
Comecei a perceber que não enxergava bem, cedo. Aos seis anos, eu estava na primeira série e sentia dor de cabeça toda tarde. Meus olhos coçavam e ardiam e por isso, além da minha pequena estatura, sentava nas cadeiras da frente.
Como meus pais e meu tio usavam óculos, parecia natural que eu também usasse. Entretanto, eu não gostei muito da idéia. Já bastava ser a aluna que tirava as melhores notas e ter um sotaque diferente para chamar a atenção. Agora, eu ia ganhar outro apelido além de bolo fofo, porque eu era gordinha. Ia ser quatro olhos também.
A visita ao oculista foi um acontecimento. Aquela foi a primeira vez que fui trabalhar com o meu pai. De carro Corcel II, saímos do nosso Araturi e seguimos para a Solon Pinheiro, 773, no Centro de Fortaleza, quase esquina com a Avenida Domingos Olímpio.
Meu pai trabalhava na autorizada da Panasonic. Era técnico em eletrônica, especialista em vídeo cassete e filmadoras. Fiquei por lá sentindo aquele cheiro de solda que eu conhecia tão bem. Vendo aquela pilha de aparelhos abertos e meu pai com muita luz, umas lupas e seu multiteste tentando desvendar qual o problema do aparelho. A oficina era uma casa enorme e cada tecnico tinha o seu ambiente de trabalho. O dono era o seu Ubirajara Índio do Ceará. De cara achei um nome bem exótico. Que diferente!
Na hora do almoço, comemos por lá mesmo e seguimos em busca do óculos perfeito para uma criança. Depois de experimentar muitos, acabei escolhendo uma armação rosa com dourada e com hastes que enganchavam na orelha, com umas bolinhas na ponta pra evitar quedas e assim que eu quebrasse as lentes de vidro. Era da Margarida, a namorada do Donald Duck.
Hoje, não lembro se comprei nas Óticas Boris, na Itamaraty ou na King Jóia Eletro.
Passados mais de trinta anos, segui de novo para comprar meu óculos novo. Meio temerosa de ter que dilatar as pupilas e ficar ainda mais cega do que o de costume. Afinal, o meu grau cresceu junto comigo e hoje tenho quase 15 graus entre astigmatismo e miopia nos dois olhos.
Continuo usando óculos apesar de ter experimentado lentes de contato por cinco anos. Uma conjuntivite pela falta de cuidado me fez voltar a eles. Poderia ter feito a cirurgia refrativa, mas engravidei já prestes a marcar.
Ter ido àquela loja da Itamaraty no Centro, para escolher os óculos de novo, em plena hora do almoço, me trouxe esses flashbacks. A sensação de o chão estar mais fundo, ao inaugurar os óculos, continua a mesma.
Despedida
Por Kelly Garcia em 23.6.21
Com tantas centenas de milhares de mortes nessa pandemia, tenho certeza que não há família que não tenha sido tocada pela partida de alguém ou pela doença.
Por aqui, tive meu pai e meu cunhado infectados. Meu pai viu a morte de perto, mas conseguiu sobreviver. Preferiu o desespero de sentir o bafejar da única certeza de todo vivente em casa do que ir para o hospital. Superou e segue procurando emoções, pescando em alto mar, andando de quadriciclo. O que sempre fez e admiro, embora eu não tenha herdado essa coragem toda. Já meu cunhado superou de forma tão tranquila, que mais parecia uma crise de garganta.
Apesar de a doença não ter levado ninguém da família, arrastou minha costureira, um amigo do meu marido, uma vizinha querida, meu orientador da faculdade... Tantos amigos perderam os pais. Tanta gente perdeu a tranquilidade. Os antidepressivos nunca foram tão vendidos.
Ainda sinto os passos pesados dessa doença perto de mim. Nem tomei minha primeira dose da vacina. Mas a gente segue se fazendo de doida. Fingindo demência e tomando os cuidados, tudo ao mesmo tempo.
Perdi muita coisa, mas não foi a vida de um ente querido. Senti o luto de saber que o jornal que eu trabalhei encerrou a versão impressa. Depois, o luto de ver um dos mais atuantes editores de lá perder a batalha contra a Covid. Esses dias, um dos fotógrafos que foi meu parceiro em muitas pautas partiu também, mas por causa de um infarto.
Já nesta terça, quem se despediu da vida foi o apresentador e radialista Augusto Borges. Ele tinha 89 anos. Por complicações de um AVC. Mesmo nunca tendo conhecido pessoalmente, pra mim essa partida também é o fim de uma era.
Zapeando os canais da TV Aberta, as opções de programação depois das 9 eram poucas. Na Globo, eu nem lembro mais o que passava depois da novela nas quintas. Acho que era o futebol ou então algum especial no estilo Você Decide. Tinha o Ratinho na Record ou era no SBT? Nem sei.
O tédio me levou a sintonizar na TVC. Nesse horário, meu pai já tava bem deitado na rede, esperando o sono. O leite quente com Nescau na xícara era a nossa companhia. Eu, com menos de 20, me equilibrava entre a faculdade, a casa e o estágio.
No programa Ontem, Hoje e Sempre, a maioria das pessoas tinha mais de 50. Na plateia e se apresentando. E todos com uma voz muito potente, cantando muitas músicas que eu não conhecia, embora também tivessem algumas canções do Nelson Gonçalves. Entre os cantores, uns afinados, outros, nem tanto, porque exageravam nos vibratos.
Na minha tv, meio chiada porque o sinal não era digital, soube que o Tom Barros cantava muito bem. Quando era apresentação dele, era sucesso garantido. Outros senhores também mostravam seus talentos, acho que até o Narcelio Lima Verde apareceu por lá. Acompanhando, o Regional Cordas que Falam, que eu também ouvia no programa Brasileirinho, do Nelson Augusto, nas manhãs de domingo na Rádio Universitária FM. No meu tempo sem máquina de lavar, os chorinhos desse programa me ajudaram a lavar muita roupa no tanque. Já no Ontem, Hoje e Sempre, Augusto Borges, sempre muito educado, me transportava pra outro tempo. E meu pai ali do lado. Era bom demais.
Hoje, ando longe da TV aberta. Desde que me mudei, comprei apenas uma antena portátil. Como ela não prestou, continuo sem saber de nada que passa na programação. Aqui, a TV só tem serventia pra assistir Netflix e YouTube. E agora, ressuscitamos o DVD pra ver os filmes que o streaming deixou de exibir.
Mas do jornal impresso, eu continuo sentindo falta. Um desejo que tenho é viajar pra São Paulo, comprar o Estadão e a Folha, um croissant misto e um capuccino com chantilly e ver sem pressa o caderno de domingo. Por aqui, pra fazer isso, talvez só consiga comprar um jornal na praça do Ferreira, um O Povo. E faz anos que não folheio um. Quem sabe eu faça um passeio assim qualquer dia? Dava até pra ler na Romana, antigo Duddas. Essa opção de cardápio continua lá. Uma delícia.
Visitando as cidades invisíveis dos outros
Por Kelly Garcia em 29.5.21
Por ter sido repórter de coluna social por alguns anos, tive o privilégio de conhecer várias mulheres ditas importantes. Em uma das muitas ligações que fiz atrás de notícias para as colunas, que geralmente são sobre as viagens e aniversários dessas pessoas da sociedade, tive oportunidade de conversar com uma das dez mulheres mais elegantes do Brasil segundo o colunista carioca Ibrahim Sued, a dona Beatriz Philomeno Gomes, hoje, com 96 anos.
Como eu estava com tempo nesse dia, aproveitei para matar minha curiosidade sobre vários aspectos que eu sabia mais ou menos como eram com as minhas avós, mas não com uma pessoa de posses como ela e ainda esposa de alguém tão importante, como o industrial Francisco Philomeno Gomes, que era dono de boa parte da Jacarecanga, um dos bairros ditos elegantes da capital, antes da debandada geral para a Aldeota.
Dona Beatriz, por sua vez, pertencia à elite do outro bairro nobre da Fortaleza de então, o Benfica, com seus muitos bangalôs elegantes. Ela era do clã Gentil, família do dono da hoje reitoria da Universidade Federal do Ceará e um dos primeiros banqueiros da capital cearense.
Em uma época em que as mulheres se dedicavam mais à familia do que às carreiras profissionais, nem sempre o ensino era valorizado. Mas dona Beatriz, por pertencer a uma família tradicional, foi enviada a Petrópolis para o tradicional Collège Notre Dame de Sion, internato católico feminino procurado pela maioria das famílias abastadas desse tempo.
Nesse tempo em que eu a entrevistei, pensei com meus botões para quê uma moça precisaria estudar tanto se o destino era se casar e ter muitos filhos? Pensamento bem medíocre o meu. Mais tarde eu tive a prova de que só é possível motivar de verdade para os estudos se você mesma for um exemplo. E dona Beatriz era. Ela se casou aos 17, mas era fluente em inglês e francês, considerava a música bastante importante e sabe tocar piano, violão e acordeon! Teve oito filhos, Pedro Philomeno Neto, Roberto Frederico, Francisco Philomeno Júnior, João Vicente, Carlos Alexandre, Júlia, Tida e Sarinha. Imagine a trabalheira, mesmo com funcionários para ajudar!
Ao conversar com uma das filhas dela, a Júlia, que também é jornalista, ela me contou que mesmo com todas as atividades sociais, ela era muito presente. "Mamãe sempre foi muito presente, não só na minha vida como na de seus oito filhos. Mesmo quando estive interna por cinco anos no Sacré-Coeur do Rio de Janeiro, ela se fazia presente desde a arrumação do nosso quarto, decorando todo bonitinho às cartas frequentes cheias de aconselhamento. Nas férias, sempre tínhamos tios e primos como hóspedes e a programação era intensa, sempre capitaneada por ela", lembra.
O que eu também me perguntava era como ela tinha conseguido se manter tão elegante dando a luz a tantos filhos. Eu, com apenas dois, ainda não estou na minha melhor forma.
Quando perguntei a ela qual era a sua prioridade no tempo em que os filhos eram jovens, ela me disse que era investir em um ambiente que os deixasse próximo a ela. Na ampla casa da Jacarecanga, eram três pavimentos, além de quadra de esportes, campo de futebol e piscina, tudo para que os filhos trouxessem os amigos e assim ficassem protegidos dos muitos perigos, que naquele tempo já rondavam os adolescentes. Mesma preocupação de todas as mães.
Eu sei que fiquei tentando localizar essa casa na Jacarecanga e não consegui. Claro, ela foi demolida. A fábrica São José, das famosas redes Filomeno, um dos empreendimentos da família, hoje é o Centro Fashion. Já estive por lá pra conferir as promoções, inclusive.
Interessante que esse foi o tema principal da minha última leitura, O Caminho para Casa, de Kristin Hannah. A protagonista também usou todas as formas possíveis para que os filhos adolescentes ficassem sob suas vistas, mas no caso do livro, mesmo todo esse cuidado não foi suficiente. Ainda bem que com dona Beatriz, deu tudo certo. Os oito filhos se formaram e hoje todos são bem sucedidos em seus caminhos. Quase todos são empresários.
Outra dama importante da sociedade fortalezense que entrevistei foi dona Cybele Pontes, mãe de um dos mais bem sucedidos empresários da cidade, o José Carlos Pontes, dono da Marquise, do hotel Gran Marquise e do Shopping Parangaba, entre outros empreendimentos.
Fui conhecê-la pessoalmente ainda muito jovem, no meu primeiro trabalho como repórter, já para coluna social. A lembrança mais forte foi a amplidão da sala daquele apartamento na Beira-Mar, que sozinha era capaz de ser maior que meu apartamento todinho, da Cohab. E aquela vista incrível, em pleno por-do-sol. A minha sorte é que eu só tinha ido mesmo era acompanhar o fotógrafo. Fiquei sem palavras.
Mais tarde, uns bons anos depois, entrevistei-a novamente pelo telefone. Dessa vez, era pra perguntar o que ela estava lendo, porque era presidente de uma das mais tradicionais entidades de fomento à leitura, a Sociedade das Amigas do Livro. Para minha surpresa, ela me disse que estava lendo o terceiro livro de uma saga do moderno escritor Ken Follet. Guardei a indicação, mas ainda não me atrevi a comprar porque é muito extenso. Ficção histórica da melhor qualidade. Fiquei impressionada como alguém já depois dos 80 anos conseguia ler algo com tantas páginas e com tanta voracidade. Cada um dos calhamaços tinha mais de 800 páginas. Fiquei chocada.
Com elas duas, a lição mais valiosa que eu aprendi é que não devemos deixar de ouvir quem tem muito tempo de vida. Escutar pessoas que contam com mais de 80 anos pode ser como ter acesso a um grande tesouro. Uma pena que eu não tenha conseguido entrevistar dona Suzana Ribeiro. Ela se foi aos 102 anos. Deve ter ido com ela uma boa parte das Cidades Invisíveis que eu adoraria conhecer. Uma pena.
Vagalumes dançam na chuva
Por Kelly Garcia em 22.5.21
Depois de décadas sem avistar um vagalume sequer, eles vieram na minha casa, junto com a caravana de insetos dos mais variados tipos, que sempre estão vindo me visitar no apartamento.
Por aqui, as presenças mais constantes são as muriçocas, porque esse é o ambiente delas. Moro ao lado de um rio. Entretanto, quase todo dia tem alguma mariposa ou borboleta adormecida nas paredes, seja dentro do apartamento ou na escada. Já consegui identificar uns seis tipos diferentes.
Também já deram o ar da graça por aqui os louva-a-deus, gafanhotos, esperanças, bichos-paus, libélulas e até outros insetos que eu não gosto nenhum pouco, como as baratas, aranhas vermelhas e até cupins, que detonaram o meu armário assim que ele chegou.
Mesmo assim, nada de vagalume. Até que em um dia de chuva, apareceu um besouro esquisito que ficava fazendo um barulho quando se tacava nas paredes. No dia seguinte, não sei se cansado ou doente, ele ficou mais quieto e consegui ver sua cara simpática. Quando ele resolveu ficar com as patinhas pra cima, veio a surpresa. Ele acendia!
No dia seguinte, apareceram mais dois. Todos morreram, infelizmente. Quando coloquei sua foto no Google Lens, disse que era uma espécie barulhenta que se jogava em lugares com luz artificial. Todo esse esforço para quê? Encontrar um amor.
Depois disso, toda vez que olho na janela de noite, fico olhando como que hipnotizada para o poste. Eles sempre estão lá e na chuva, as luzes ficam mais fortes.
O inverno no Ceará é como a primavera, faz o amor florescer em toda a natureza. Até mesmo nesses bichinhos minúsculos. Até eles sabem que o amor é melhor com uma chuva pra regar.
Teleceará, cartões telefônicos e outras formas de se comunicar
Por Kelly Garcia em 16.5.21
2021. Domingo das mães. Sua mãe mora longe. Como não deixar o seu dia especial passar em branco? Muito fácil! Encomende uma serenata, mande ir deixar na casa dela um almoço especial e um buquê de rosas. Faça um delivery de presente. Tudo isso, se você tiver dinheiro, facinho de encomendar pelas redes sociais, ao alcance de um botão, com um pix. Depois, uma chamada de vídeo pelo whatsapp. Pronto! Todos alegres e satisfeitos.
Volte 30 anos. Sua mãe mora em outro Estado. Você, com dois filhos pequenos, sai em busca do único posto da Teleceará no seu bairro que faz interurbano. É um pouco longe da sua casa, mas como é Dia das Mães, você vai assim mesmo. Pra sua sorte, sua mãe faz parte do grupo privilegiado de pessoas que tem uma linha telefônica em casa. Consigo lembrar até do número: 578-7856. Que coisa doida é a memória da gente!
A mãe com duas crianças é a minha. As crianças, eu e o meu irmão. Ele, nesse tempo, ainda nem andava direito.
Lembro que o posto da Teleceará ficava em um apartamento na parte mais alta do Araturi. Era caro e tinha fila. A gente sempre ia uma vez no mês e nas datas comemorativas. Talvez fosse algo como 30 reais por 5 minutos. Não sei direito.
Já pro meu pai falar com a minha avó, era só pessoalmente mesmo, uma vez no ano, quando ia na sua casa, no Córrego do Urubu, em Jijoca de Jeri. Pra compensar, os filhos de Fortaleza sempre se juntavam pra um bom presente. Quando chegou a energia, em 1993, compraram uma geladeira, um fogão e um liquidificador. Até pensaram em comprar uma televisão também, mas meu avô não quis. Ele cansava de dizer que enquanto ele fosse vivo, não ia ter televisão naquela casa. E não teve nunca mesmo. Em outro ano, compraram um motor de moer mandioca pra casa de farinha. Os filhos eram generosos.
Minha mãe, nos poucos Dias das Mães que fui na minha avó Francisca, em São Paulo, isso ainda no meu tempo morando lá, até os cinco anos, me recordo de levarmos um presente simples. Era um conjunto de xícaras, um bule ou mesmo um kit de sabonetes com a colônia que ela mais gostava, a Leite de Alphazema da Phebo. De comida, ela preparava uma macarronada à bolonhesa bem substanciosa, com bastante carne moída, herança dos Lavorato dela, que ela perdeu ao casar com meu avô espanhol.
Eu vivi todas essas transformações da comunicação entre parentes. Da carestia em ir para o posto da Teleceará para fazer ligação interurbana, passando para a nova era dos cartões telefônicos, quando tínhamos que comprar uns 4 de 50 unidades pra tentar ver se dava pra falar uns quinze minutos. O meu pai comprou um telefone em 1998, mas colocou uma chave. Tava era certo. Adolescentes têm muito assunto. O primeiro celular, ele me deu já perto de eu concluir a faculdade.
Depois de a gente gastar tanto com ligações tão curtas, chegou minha vez de ter a mãe morando longe. Era ela quem comprava o cartão e ligava pra nossa casa. Foi morar em São Paulo quando separou do meu pai e ficamos com ele. No nosso primeiro Dia das Mães separadas, ganhei um buquê de rosas em um sorteio. Como não podia mandar pra ela pelo correio, fiz um pacote especial com meus melhores produtos do primeiro emprego, como vendedora da Avon. Eu tinha acabado de completar 18 anos.
Na caixa dos correios, coloquei uns esmaltes vermelhos, o batom Marajoara Encore e o Pop Love de Melancia, que ela gostava, um splash de alfazema, um porta jóias de resina que comprei na Caucaia e fechei o pacote. Ela recebeu uns 20 dias depois e ficou muito feliz, disse. Em outro ano, comprei uns CDs da Clara Nunes e do Roberto Carlos.
O tempo passou, os cartões telefônicos deixaram de existir, chegou a Tim sem limites de interurbano e começamos a nos falar dessa forma. Aí, ela veio morar no Ceará de novo e nos falamos todos os dias pelo whatsapp.
Jamais imaginei que a comunicação pudesse evoluir tanto. Não consigo deixar de me surpreender.
Carta para Gilmar de Carvalho
Por Kelly Garcia em 20.4.21
Querido professor
Faz tantos anos que a gente não se fala. A vida seguiu seu curso e eu quase desisti de tudo. Das minhas pesquisas, do jornalismo, da escrita. Fiquei sem rumo, “bestando” um bom tempo. Nesse meu tempo andando em círculos, te encontrei quando eu estava indo comprar um sapato no Centro. Eu, dentro da loja que fica vizinho a onde era antes o Cine Majestic, perto da Praça do Ferreira e você caminhava pela rua. De dentro da loja, te avistei tão rápido. Não deu tempo parar tudo para correr para o reencontro. E você passou.
No mesmo ano, 2019, fui na bienal com meu menino pequeno, minha mãe, o sobrinho e a vó dele. Naquele furdunço de gente, rodei, vi umas homenagens, consegui fugir um pouco daquela rotina exaustiva de mãe. Senti um respiro, um novo ar, em meio aquelas programações todas. Ali, era o meu ambiente e eu andava tão longe de tudo. Parecia um reencontro comigo. A de antes.
Tirei fotos, peguei marcadores e fiquei olhando tudo muito atentamente. Muita gente que eu conhecia de vista. Uns livros lindos que eu namorava faz tempo. Acabei não levando nada, só trocando alguns. Na saída, já dentro do uber pra voltar pra casa, eu te avistei de novo de longe. Dessa vez, eu acenei, acho que você me viu. Ficou olhando, assim como eu. E eu fui embora. Jurava que poderia te ver de novo. Me enganei.
Agora, você foi embora de vez. E eu passei essa semana toda falando com Deus, pedindo que você pudesse se recuperar pra que esse encontro acontecesse. Pra que eu pudesse te contar que estava pra lançar um livro. Te agradecer de alguma forma por ter me colocado nesse caminho.
Sim, porque foi você quem me apresentou todo esse universo das memórias, dos saberes da cultura popular. Quando eu entrei na faculdade, nunca na vida tinha entrado num museu, nem nessas coisas mais culturais, era uma matuta, uma índia de Caucaia, como vc costumava brincar.
Na primeira cadeira contigo, aquela do segundo semestre, me apaixonei pelos cordéis. Você me apresentou a eles e me deu logo uma coleção organizada por ti, que guardo com carinho até hoje. Aquela mini monografia sobre os cordéis que falavam do ataque contra as Torres Gêmeas foi o início de tudo. Acho que naquele mesmo ano, comecei a participar do seu Grupo de Estudos, e viajamos eu e um monte de gente da comunicação para o Cariri. Lembro de tantos detalhes, das praças, da comida, da casa do Patativa, em Assaré, do Crato, Juazeiro, de tanta coisa linda, em Nova Olinda. E da passada em Várzea Alegre, na casa da mãe do Magela. Minha primeira viagem de adulta estudante.
Na monografia, você me orientou a pesquisar os tapeba da minha Caucaia, onde moro até hoje, sobre a oralidade no repasse das lendas indígenas. Eu, sem noção que era, ia sozinha desbravar os trilhos desertos, confiando em desconhecidos. Uma vez, você e o Francisco foram comigo e me alertaram desses riscos. Pra minha sorte, nunca aconteceu nada.
Ainda hoje quando eu passo em frente a aquele restaurante no caminho de Aquiraz, eu lembro daquela galinha caipira que a gente comeu. E depois, vocês me deixaram em casa, no Araturi. Tão longe. E vocês, tão gentis.
Lamento tanto não ter nenhuma foto desse tempo, daquela viagem. Nem da minha defesa atrapalhada que só durou cinco minutos. Eu, sempre muito tímida, travei e não consegui falar mais nada. Mesmo assim, tirei 10 e deu tudo certo.
E o bonito pra chover, eu só entendi direito contigo. Lá em São Paulo, onde eu nasci, tempo chuvoso é feio. Aqui, é bonito. Naquele livro de ensaios, o Bonito pra Chover, tenho a tua letra, lembrança mais forte tua e que tenho revisto nos últimos dias.
Ontem, depois da sexta tentativa de engatar uma leitura, peguei o livro da Lygia Fagundes Telles, aquele de crônicas sobre a escrita. Logo a primeira falava da despedida de Clarice Lispector, sua amiga, no texto "Onde estivestes de noite". O sol indo embora me deu o estalo pra essa carta, escrita aos garranchos, chorando.
Te agradeço, Gilmar, por tudo que você me ensinou. Nos livros e fora deles. Sem você, não tinha jornalista Kelly Garcia. Muito menos essas cidades invisíveis que estou pra receber. Gratidão demais.
Parindo um filho de papel
Por Kelly Garcia em 17.4.21
Eu sei que é meio clichê dizer que livros são como filhos. Mas, guardadas as devidas proporções, talvez colocar um livro no mundo tenha suas semelhanças sim com parir uma criança.
Experimentei a maternidade duas vezes. Sou mãe de uma menina de 13 e um menino de cinco anos. Nas duas, senti uma insegurança grande na véspera do parto. Foram duas cesáreas agendadas. Na primeira vez, por causa de uma possibilidade de cordão umbilical em volta do pescoço. Da segunda, por causa da hipertensão que desenvolvi no oitavo mês de gestação. Nunca soube o que é uma contração de parto.
Nas duas vezes, eu não consegui dormir direito na véspera. Da Luiza, amanheci o dia acordada. Do Nuno, até cochilei, mas acordei muitas vezes. Foi assim no dia da live do lançamento do livro Cidades Invisíveis, dia 13 de abril. Costumo dizer pras minhas amigas que eu nunca me senti tão perto da morte do que no nascimento dos meus filhos. Me sinto assim agora também.
Nesse ano, com a pandemia, perdi vários vizinhos do outro bairro, o que morei 30 anos. Essa semana, quem partiu foi a minha costureira. O meu orientador nos tempos da faculdade está hospitalizado em estado grave. Meu pai venceu a doença, mas ficou numa situação muito crítica. A morte nunca esteve tão próxima. Nunca foi tão real.
Assim como na gestação de uma criança, também são meses e meses pra Deus tecer a criança no ventre. Não podemos apressar o processo. E foi desse jeito com o livro também.
Ele foi orquestrando cada acontecimento, depois foi costurando as lembranças, colocou as pessoas certas no caminho e foi me empurrando pra escrever. Tudo no tempo certo. Nada fora do compasso. Como tudo que Ele faz. Mesmo que eu não entenda. Porque eu só vejo um pedaço da história. O todo, só Ele tem acesso.
Há uma hora certa de nascer e morrer. Não devo me preocupar tanto assim. Ele está no comando. E o livro está nascendo. Falta pouco.
Quarto Ofertório do Livro
Por Kelly Garcia em 12.4.21
Essa semana, eu reli todas as crônicas do livro Cidades Invisíveis. Olhei para cada uma e quase beijei o notebook, meio que abençoando por elas estarem indo para o mundo e cumprir o seu caminho.
Cada texto meu é como um filho. Filho não fica, mas tem que seguir, andar com as próprias pernas. São flechas no alforje do guerreiro, como diz o provérbio bíblico. As palavras também. Flechas que fazem chorar como fizeram os meus sogros ao lerem a carta que escrevi para minha filha no ano passado, quando ela fez doze anos e que está no livro Cidades Invisíveis, que começará a ser vendido no dia 13.
Em alguns textos quem chorou foi eu, ao escrever. Isso aconteceu com o Lamento por João Felipe, sobre a centenária estação desativada. A carta ao Mara Hope, que irá abrir o livro. Foi tão bom rever meu velho navio, passados tantos anos. Meu presente de aniversário depois de longos meses reclusa em um ano tão difícil e que não terminou.
Meus olhos marejam agora também. Esse livro às vezes parece uma despedida. A morte parece estar à espreita. São tantas pessoas que perdemos. As filas por UTIs. Dá um medo de não conseguir alcançar o lançamento. Mas, ao mesmo tempo, lembro logo que não existem acasos. Deus está orquestrando cada movimento. Nada lhe escapa. Nem os meus cabelos que insistem em cair.
Entretanto, escrever sobre alguns momentos também renderam risos, como quando lembrei da minha amiga abandonada pelo namorado dramático na Praça da Bandeira e da minha própria inocência, à espera do fim do mundo na virada do milênio.
Em outras, a raiva me moveu, ao relembrar a história da mulher que sofria abusos do patrão no ambiente de trabalho, contada no ônibus pra mim. Infelizmente, eu conhecia o abusador das fotos nas colunas sociais. Esse sentimento também me guiou ao fazer a crônica sobre o Farol do Mucuripe, que agoniza em ruínas de abandono.
Suspirei de saudade ao relembrar a adolescente que eu era, sempre nas filas pra pegar ingresso do Centro Cultural Banco do Nordeste ou dos shows das sextas no Theatro José de Alencar. Pegando chuva na Praça Verde do Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura e no Domínio Público, no Noise3d, ou no Canto das Tribos, nos dias dos covers de rock. Olhando admirada o Cine São Luís e com medo dos banheiros do Cine Diogo.
Me admirei com as histórias da Pierina Rossi, do Plácido de Carvalho e do Emilio Hinko, com a busca galhofeira pelo Gatsby cearense e as lembranças de gente anônima e importante. Tudo se costurando de uma forma tão interessante para sair esse livro de crônicas. Tudo tão na vista da gente. Tantas histórias que rendem livros...
Pra finalizar, digo a vocês que esse livro não é apenas um presente para Fortaleza nesses 295 anos de fundação, mas para o Milton Dias, cronista por muitas décadas no Jornal O Povo, que me ensinou a reconhecer os encantos da cidade quando eu tinha 16 anos e li o seu Relembranças para o vestibular.
Inclusive, o Milton Dias me respondeu a carta que escrevi para ele no meu livro, dando notícias da Praia de Iracema. Mês passado, eu comprei um livro dele no sebo O Geraldo – Cartas sem resposta – E veio autografado por ele. Não para mim, claro. Identifiquei como um bom sinal para tudo que se anuncia. Espero vocês na live de lançamento, às 17 horas, no dia 13. Até lá.
A crise que derruba a história
Por Kelly Garcia em 31.3.21
Estou para lançar um livro sobre minhas vivências em Fortaleza e esse era um dos maiores sonhos da minha vida. O sonho mesmo não era de lançar um livro sobre a cidade. Na verdade, isso acabou acontecendo de forma natural, escrevendo essas crônicas por aqui. Mas o de me assumir escritora, sim, era um sonho. Só que esse desejo era meio esquisito.
Ao mesmo tempo que queria ser escritora, ter um livro meu publicado, eu tinha medo da opinião dos outros. Não me achava essas coisas todas para poder tanto. Aí, um incentivo se uniu à uma possibilidade real e eu percebi que sim, poderia dar certo e aqui estou, contando os dias para abrir a pré-venda.
Era pra eu estar radiante de tanta alegria, mas não é bem isso que tem acontecido. Fora o nervosismo de algum detalhe dar errado no lançamento desse projeto do site catarse, que faz a ponte entre os incentivadores e quem vai receber o financiamento coletivo, me assombra pensar que Fortaleza pode estar à beira de uma demolição numerosa.
Com a crise, uma das formas de fazer dinheiro é vender imóveis que estão sem uso, certo? Olhem para o Centro, agora totalmente fechado por conta do Lockdown. Preste atenção no aumento de placas de aluga-se e vende-se. Deu pra entender o que pode acontecer? Quem vai ter interesse em restaurar uma casa velha? Pensando racionalmente, não é mais vantajoso derrubar e vender o terreno? Pois é.
Desde que me tornei repórter, em 2004, derrubaram, pelo menos, três imóveis que tinham alguma história com a cidade e que estavam em processo de tombamento. Foi assim com a Chácara Flora, no Benfica, imóvel de 1898, que trazia em sua estrutura as marcas de um tempo em que o bairro era rural, somente ocupado por sítios. A Universidade Federal do Ceará se interessou em comprar, mas a negociação não foi pra frente. Um belo dia, a Chácara se transformou em entulho. Na calada da noite.
Foi desse jeito também com o bangalô azul do Colégio Nossa Senhora da Assunção, na rua Padre Valdevino. Quando a escola religiosa faliu, uma construtora comprou e derrubou tudo pra construir um prédio.
Nesse mês, foi a vez da casa do Boteco Praia, que pertencia à família Jereissati e era testemunha dos anos 1930, quando era moda ter casa de veraneio na Praia de Iracema. Em pouco tempo, a casinha simpática que ficava em frente ao espigão da Av. Rui Barbosa se transformou poeira e escombros. No seu lugar, vão construir um prédio. É sempre desse jeito.
Outro imóvel ali pertinho que deve em breve tomar o mesmo destino é o do Edifício São Pedro, que abrigou o primeiro hotel da orla, nos anos 1950. Também nesse mês, apareceu nas páginas dos jornais que o movimento de vendedores de sucata estava grande por lá. Era um tal de entra e sai com portas, janelas, canos, ferragens. Estavam depenando o edifício, aproveitando que não tinha mais vigia. E pensar que o Lúcio Brasileiro morou lá um tempão e o prédio abrigava um dos restaurantes mais chiques da cidade: o Panela. Bons tempos que eu não alcancei. Só vi no documentário sobre o prédio no Youtube. E costumo colocar o carro no estacionamento do lado dele quando ando por lá. Não sei porque, gosto muito daquela parte da Praia de Iracema. Meus filhos gostam do vento, de andar de patins, olhar o mar no espigão. Mas, da última vez, quase fui assaltada. Nem fui mais.
Na Avenida Santos Dumont, eu já avistei outras duas casinhas simpáticas, talvez construídas pelo Emilio Hinko, desocupadas. Uma delas, quase em frente ao Colégio Militar, era onde minha filha se consultava com o pediatra. A outra, teve restaurante e até sede da Comunidade Católica Shalom. No Centro, sei que estão para alugar o primeiro andar do Hotel Excelsior. Quando fui fazer matéria sobre ele, ainda almocei no restaurante que ocupava esse espaço. O térreo e o elevador de lá são lindíssimos. Uma pena não serem abertos á visitação.
Outro que está pra alugar é o prédio da Associação dos Merceeiros, na praça do Carmo. Não sei se é tombado, mas os adornos mostram que deve ser dos anos 1930 ou de antes. Era o meu plano de saúde por muitos anos. Minha adolescência toda, andei lá pra cuidar dos dentes e fazer minhas consultas com o oculista. Aquelas tábuas do chão ficaram com as minhas pegadas também.
O velho casarão das pianistas, da família Leite Gondim, também já está em tempo de cair, na rua General Sampaio, esquina com a avenida Duque de Caxias. Achei bem esquisito que o estacionamento que ocupa o resto do terreno tá pintado e todo bonitinho, enquanto o casarão deve ter uns 20 anos que não vê tinta na fachada. Estarão esperando cair? Pertencem a donos diferentes? Outro imóvel que tem um documentário lindo, do Maurício Cals. Procurem no Youtube.
Sobre ser mais vantagem derrubar essas antiguidades, parece ser consenso em quem anda pelas ruas. Cansei de entrevistar quem passa e dizerem que é muito perigoso passar perto de casas assim. Que deixa feio e deveriam sim derrubar e construir algo melhor. Nas cidades do interior, desde as menores até as mais habitadas, é raro encontrar casas originais de antes dos anos 1960. O povo gosta é do novo. Do porcelanato, das vidraças... Quem gosta de coisa velha é museu, dizem.
Parece que as pessoas não se importam com o que não é delas. Uma vez, o Nirez me disse que talvez fosse porque boa parte de quem mora em Fortaleza, não é daqui. Por isso, o desapego com a história. Ora, eu também não sou daqui, mas não me conformo.
Qual será a próxima edificação a ser derrubada? Façam suas apostas. Como cantava o Ednardo nos anos 1970, quando derrubaram o castelo do Plácido na calada da noite para construírem um supermercado que nem veio a existir: uma a uma, as coisas vão sumindo... Em vez de supermercados, hoje tomam o lugar dessas edificações antigas as farmácias e os prédios altos. E Fortaleza vai ficando mais desmemoriada. Mais feia, mais quadrada. Mais sem graça. Uma pena!
Terceiro Ofertório do Livro
Por Kelly Garcia em 23.3.21
“Nós não somos gente que volta atrás e se perde. Pelo contrário, temos fé e somos salvos”
Carta aos Hebreus 10, 39 – Nova Tradução na Linguagem de Hoje
Esses dias, eu pensei em desistir de fazer o meu livro por medo. Depois de ver uma campanha do Catarse, site de financiamento coletivo, que passou um ano no ar e não conseguiu bater a meta de arrecadação, eu fiquei desanimada. Pensei que talvez esse fosse um sonho absurdo e sem condições de ser realizado dessa forma. Uma loucura parir um livro no meio de uma pandemia dessas.
E, fraca que sou, pensei em me endividar para bancar o livro com os meus próprios recursos. Recursos esses que não disponho. Minha família, no caso, meu marido, poderia me ajudar com mais isso. Ele, que tem me apoiado tanto em todos esses meses que tenho ficado um pouco aflita. Já estava me preparando para fazer isso quando recebi essa advertência: “Não somos dos que retrocedem”.
Sem dizer a referência, que pra minha vergonha eu também não lembrava, minha professora de escrita criativa, a Vanessa Passos, usou sabiamente a Bíblia para me lembrar dessa verdade. Ela me trouxe à memória tudo o que já foi feito até aqui e que precisamos acreditar no projeto. O não, já temos. E que eu já vendi 18 exemplares antes mesmo de colocar nesse site de financiamento coletivo, um ótimo sinal de que tem muita gente interessada nas minhas histórias com Fortaleza.
Aí eu lembrei quem é o dono supremo desse projeto. Quem me inspirou e me proporcionou todos aqueles momentos reais nos últimos 25 anos. Aquele que me deu a oportunidade de trabalhar no maior jornal do Ceará e ter acesso a tantas pessoas, situações e paisagens. Ele me encorajou a escrever. Aquele que é digno de toda honra e toda glória, o meu Deus.
Sejam os meus projetos pessoais, meu casamento, meu trabalho... Tudo é dEle. Se não der certo, tudo bem. Mas eu preciso tentar.
A Vanessa, sem querer, me lembrou o mesmo versículo que a esposa do pastor que me batizou, em 2007, leu pra mim, ao nos encontrarmos virtualmente, passados mais de dez anos da última vez. Apesar dos problemas, das decepções, de todas as coisas que não ocorrem como a gente quer, dos sonhos desfeitos, eu não retrocedi. Continuei com a minha fé. Eu não voltei aos meus caminhos antigos.
A despeito da minha pequena fé, meu Deus é grande e me encoraja de formas que eu nem pude imaginar, com conexões bem inusitadas. Então, eu não vou retroceder. Aguardem meu projeto no Catarse mesmo e vou precisar da ajuda de cada um de vocês que me lêem. Esse projeto é nosso. Das lembranças dessa Fortaleza que aquece os nossos corações.
Segundo Ofertório das Cidades Invisíveis
Por Kelly Garcia em 9.3.21
Tem dias que a gente precisa ler para poder ter idéias. Enquanto tem dias que elas surgem aos borbotões, como uma hemoptise de tuberculose terminal. O ideal seria anotar as idéias nos dias das vacas gordas. Mas nem sempre alcanço o papel antes que elas evaporem.
Faz mais de dez dias que não escrevo. Entretanto, desde o primeiro ofertório do livro Cidades Invisíveis, tinha que contar da minha grande alegria de ter encontrado um artista para ilustrar o livro com alguns dos trechos das minhas lembranças.
O artista é o Vando Figueiredo, cearense de Fortaleza, que me presenteou com lindos desenhos em aquarela, com um traço firme, revelando aqueles pontos da cidade que mais marcaram a minha vida.
Ele, com seu olhar atento sobre as artes e que já expôs em tantos lugares no mundo, traduziu em traços e cores toda a sensibilidade do que eu vi em outros tempos.
Confesso que, por pouco, não chorei ao receber a boa notícia de que meu livro teria tão belas ilustrações. Mais uma parte do presente que quero entregar a vocês nesses 295 anos da Fortaleza de Nossa Senhora da Assunção
Com o lockdown e tudo fechado, inclusive com policiais mandando pra casa quem quiser se arriscar nas ruas, essas ilustrações ajudam a nos consolar em alguns momentos. Em outros, aguçam a nossa saudade.
Nos locais escolhidos, eu fui mais feliz, vivi algumas das minhas emoções mais fortes e sei que não somente eu, mas muitas outras pessoas.
Um deles é o Farol Velho, onde eu estive apenas uma vez e escoltada por policiais, morrendo de medo de assalto ou coisa pior. Sim, porque no Serviluz, alguns anos antes, assassinaram um motorista do jornal enquanto ele esperava o repórter voltar da pauta. O velho prédio, que conheceu uma Fortaleza jovem e observou toda a decadência do seu entorno, me viu perto do meio dia. Mesmo com o sol tinindo, algumas crianças que estavam na escadaria logo alertaram sobre a máquina da fotógrafa. O farol fedia a esterco, embora a vista fosse uma das mais lindas que eu já vi em toda a minha vida.
Outro ponto que será imortalizado em desenho é a Ponte dos Ingleses, que está em reforma, com tudo interditado há mais de dois anos. Esse ponto turístico, nem depois do lockdown, vai dar pra visitar. Mas eu sei que tem um monte de gente com recordações boas de lá, principalmente ao entardecer.
O meu Mara Hope querido também está na lista. Ao escrever a crônica sobre ele, eu me emocionei muito porque descobri muitas coisas em comum. E vê-lo no meu aniversário, ao pôr-do-sol, foi o melhor presente que eu poderia ter ganho nos meus 37 anos.
Lugar de encontros e partidas por mais de um século, a Estação João Felipe é o último prédio histórico a ser retratado. Meu coração continua batendo parado naquela estação, como cantou a Adriana Calcanhoto, mesmo passados tantos anos da sua desativação.
A cada pequeno detalhe, um quebra cabeça vem sendo montado e o quadro vai ficando mais bonito. Até o aniversário de Fortaleza, estarei contando sempre mais um pouco desse meu projeto, que oferto a vocês em linhas e palavras. Meu presente pra cidade que me acolheu.
Ofertório das Cidades Invisíveis
Por Kelly Garcia em 20.2.21
As crônicas das Cidades Invisíveis vão virar livro. Lendo essa frase, parece que apresento o livro de outra pessoa. Apesar de alimentar esse sonho desde menina, agora que ele está prestes a se realizar, parece que não sou eu. O que eu quero lançando um livro? Quem sou eu para escrever? Que especialização eu tenho? O que possuo, além dos olhos míopes e os dedos com calos de caneta? Quem eu penso que sou para me apresentar dessa forma?
Ora, quem sou eu?, respondo para mim. Que mania de se diminuir... Sou jornalista, vivo do que escrevo, há mais de uma década. A desgraçada da voz me responde, irônica: E ser jornalista te faz escritora, por acaso? Mas por quê eu não posso ser? Por quê?
Ela me pergunta de novo: Como você ousa buscar as memórias para a escrita se nem tem quarenta anos? Quem faz isso já é vivido, você não! Eu grito que ela se cale, porque eu não quero mais ouvir... Nós mesmas temos uma mania besta de achar que somos uma farsa, às vezes. É a tal da síndrome do impostor. Assim, me sinto.
Ao mesmo tempo, o que meus olhos viram, seja nos tempos de menina, correndo na Barra do Ceará e no Bom Jardim; Ou moça, encantada com as cores do mar de Iracema ou repórter atrás de pauta olhando através das janelas dos transportes da vida, tudo isso gritava dentro de mim. Eu precisava falar.
Todas essas paisagens que guardei aqui dentro precisavam sair, nascer como palavra, conversar com as lembranças dos outros, cerzir em um bordado bonito, uma colcha de retalhos compartilhada. Talvez eu morresse se não riscasse esses cadernos, escrevendo essas cidades que não existem mais. É um fluxo que ficou por muitos anos maturando. E chegou o tempo de trazer para a luz. Ele apodreceria dentro de mim se eu o guardasse.
Por isso, juntei todas essas palavras, que borbulharam entre lágrimas e risos, cheias de suor das faxinas, escritas depois que as crianças dormiram ou antes que elas despertassem, nas aulas de reforço, entre um cálculo e outro de matemática. Com a barriga cheia do almoço ou ainda com fome, esperando a sobremesa. Tirando a poeira dos velhos diários, dos livros desprezados que guardei, vasculhando as latas com recortes de um tempo que não volta. Em alguns lugares que mexi, sangrei por velhas feridas. Fiquei em carne viva.
Esses fluidos todos, essa verdade que é minha, oferto a vocês, leitores. Minha carne desnudada nessas linhas das Cidades Invisíveis que Fortaleza me apresentou nesses quase 38 anos que caminho nela como vivente. Não sei qual Fortaleza vive nos teus cenários importantes. Se você beijou alguém na Ponte Metálica, se desembarcou na Estação João Felipe ou chegou a ver o Castelo do Plácido na Avenida Santos Dumont. Na verdade, nem sei se você conhece essa Fortaleza que eu amo. Mas deveria. Se vão me criticar pelo que contei, esse é um risco que corro todos os dias. Se vou ter que dar a cara à tapa, que seja assim. Não posso deixar os meus tesouros apodrecerem.
Sobre ser repórter
Por Kelly Garcia em 16.2.21
No colégio, em todo o Ensino Fundamental, eu quis ter várias profissões. Quis ser escritora na quinta série, geóloga na sexta, bióloga na sétima e cantora na oitava. Mas no Ensino Médio, tive que decidir porque precisava ranquear nos simulados e, pensando no quanto eu amava escrever e ler, optei pela comunicação. Pesou muito saber que escritores como Clarice Lispector e Nelson Rodrigues eram jornalistas. Talvez fosse um meio para escrever e ser reconhecido.
Passar no vestibular para uma Universidade Pública foi difícil, mas bastou uma vez. Ao chegar no Centro de Humanidades, há 20 anos, vi outros estudantes que, como eu, não tinham muita idéia do que era ser jornalista. Depois de mais de três anos entre cadeiras teóricas e práticas, cheguei finalmente à redação de um jornal para estagiar. Faltavam só três meses para eu me formar.
A zoada era grande. Os dedos furiosos nos teclados cinza dos computadores de tubo. Uns 30 telefones tocando ao mesmo tempo, gente falando... Até hoje, eu me arrepio lembrando da gente correndo pra terminar o texto antes do deadline, prazo máximo pra entrega, pra não atrasar o jornal. Todo dia, a pauta era uma surpresa. O chefe de reportagem sentado de um lado com seus rabiscos e releases para distribuir e pautar os repórteres.
E eu sem ter a menor idéia de pra onde seria enviado. Isso dava medo. Comparo como o artista quando sobe no palco. Tem que ter sangue frio ou nos olhos. Não dá pra ser em cima do muro. Você poderia ser enviado para o Jangurussu, um dos bairros mais pobres da cidade, para uma pauta sobre os impactos do chorume na vida das pessoas que moravam perto de onde era antes o lixão. Ou para entrevistar o governador sobre a seca. Mas o que eu vou perguntar? Te vira, bacana!
Era frio na barriga todo dia subindo aquelas escadas. Fiquei viciada nessa falta de rotina. E em olhar tudo nos mínimos detalhes no caminho para lá, porque talvez pudesse virar pauta. Quando a estagiária era novata, saía com o repórter uns três dias pra ver como funcionavam as coisas. Ele fazia a matéria principal e a estagiária, a coordenada. Assim, eu ouvia atenta a freqüência do rádio, pra ver como voltaríamos pra redação, enquanto a Martinha escrevia apressada com os bloquinhos de resto de papel do jornal a fala do entrevistado. Rapidinho, eu aprendi as manhas de deixar minha letra garranchosa pra captar tudo. Só não consegui desaprender. Também aprendi que o melhor Pó de Guaraná da cidade ficava na rua Assunção, e dava tempo de tomar antes de voltar pra redação nas pautas do Centro.
Nesses tempos de estagiária, o olho era atento pra observar se a matéria sairia assinada no dia seguinte. Todos aguardavam ansiosamente por esse momento de glória. E se virasse capa? Em dois meses, consegui as duas coisas, embora tenha sido por um assunto inusitado, entrevistando alguém de quem as pessoas fugiam. A manchete: Carne de jumento vira mortadela no Rio de Janeiro me rendeu muita zoação. E foi logo a primeira!
Depois de passar pela coluna social, entre muitos aniversários, viagens e aniversários que viram notícia e a gente pega quem foi só por telefone, o que faço até hoje, passei por outras editorias. Quando saí de lá, fiz um freela pra uma revista de decoração e passava as tardes nos apartamentos chiques da Beira-Mar e as mansões das Dunas, observando e depois, traduzia meus garranchos voltando pra casa de trem, saindo da Estação João Felipe.
Eu sei é que ser repórter é ver pauta em todo canto. É atender ao celular com um redação antes do alô porque aquele costume já enraizou. É segurar o choro na hora de entrevistar a família de alguém que você conhecia e aquela mãe que nunca saiu do hospital porque o seu filho espera um transplante de coração desde que nasceu. É ficar com ódio por ter sido escalado para trabalhar no Réveillon e, depois de chegar às 4 da manhã em casa, com duas páginas de anotações de bêbados, seguir pra escrever tudo às 9 e descobrir que vai ter que espremer tudo em cinco linhas.
Ser repórter é sentir aquele frio na barriga só de lembrar dessa rotina louca, mesmo passados tantos anos. Uma vez repórter, sempre repórter. Por isso, sigo escrevendo o que pude observar nas entrelinhas das notícias. Tem experiências que sei que não viverei nunca mais e lugares que deixaram de existir. Acaba virando parte das Cidades Invisíveis.
A saga de escrever um texto
por Kelly Garcia em 6.2.21
Meu dia começa, na maioria das vezes, desligando o alarme do celular. Raramente durmo antes da uma da manhã, mas alimento o sonho de acordar bem disposta às 5 horas pra fazer o dia render como dita o Best Seller O Milagre da Manhã.
Tem vezes que o alarme toca e eu não ouço e então começa mais um dia atrapalhado, acordando depois das 8 horas. Quando é assim, eu nem bebo água e já começo a trabalhar no celular. Respondo mensagens, coloco a água do café no fogo, respondo mensagens, posto no instagram, frito os ovos, passo o café, respondo mensagens, faço um sanduíche e vou tomar o café da manhã.
Termino apressada e sigo para mais posts, pesquiso fotos, vejo notícias, respondo mensagens. Minha filho acorda. Mando tomar banho – falta não terminar ... Vai escovar os dentes, faço outro sanduíche e um leite com achocolatado. Minha filha acorda e se tranca no banheiro. Parece que morreu lá e eu tenho que mandar sair. Faço outro post, edito algo, envio um e-mail. Passou voando o tempo. Já está na hora de pedir o almoço. A louça de ontem ainda tá na pia. Tento decidir se lavo ou deixo lá. Segunda opção. Escrevo, envio, escuto.
Almoço e volto para os posts e mensagens. Os filhos brigam. Um quer assistir televisão. A outra, ouvir música. A louça na pia. O chão com farelo. A mesa suja. A roupa por dobrar. Aquele caos me incomoda, mas a folha branca do caderno continua esperando. Não sei o que escrever. Como vou digitar?
Pesquiso um pouco. Faço um post, escuto e printo fotos. A idéia surge. Escreverei que horas?
Mamãe, tô com fome. A água acabou. Tem um vazamento no banheiro e caiu o teto do vizinho de baixo. Vou beber água e percebo que os cupins voltaram. O meu armário novo da cozinha já era. Quem será que vai acabar primeiro? As prestações do empréstimo ou os móveis?
Faço mais posts e pesquisas. Já é a hora de dar a aula de reforço no vizinho. Quem sabe eu escreva lá. Mas é prova de Geografia e são 80 páginas pra estudar! Não vai dar...
Com os pés inchados, volto e percebo a casa ainda suja e a louça no mesmo lugar. Tem o lixo que ninguém levou. Não posso mais fugir deles.
E a crônica? E as Cidades Invisíveis? Se perderam na rotina dos dias.
Reforma na alma
por Kelly Garcia em 23.1.21
“Tudo quanto vive, vive porque muda; muda porque passa; e, porque passa, morre. Tudo quanto vive perpetuamente se torna outra coisa, constantemente se nega, se furta à vida”.
O verso de Fernando Pessoa me diz uma verdade necessária: por mais que eu relute, resista e não queira, a mudança vem. Ou ela vem ou eu terei que me furtar à vida e mentir que é melhor ficar com as paredes mofadas, com o armário sem as portas, a cama gasta, os tiros na porta de madrugada, o forró até amanhecer inundando meus pesadelos. Ou eu me mudava, ou esses disparos talvez fossem dentro de casa, pra defender os meus ou pra nos separar em definitivo. Essa mudança eu tive de fazer.
Por esses dias, li a crônica da newsletter da escritora e professora de escrita criativa, Vanessa Passos e fiquei matutando sobre as mudanças e reformas poucas pelas quais já passei. Algumas à força. Assim como ela, eu tenho uma tendência a resistir. Guardar o antigo, repetir o modelo de sempre à exaustão.
Prefiro mil vezes deixar de usar a torneira do que quebrar as paredes para encontrar o cano rachado, a raiz do problema. Sou capaz de suportar anos de goteiras, acostumar com o móvel velho e jogar uma manta por cima. Fazer qualquer gambiarra a ter que reformar. Herdo mobília. Aceito as roupas. Não gosto de mudar nem os móveis de lugar.
Desse jeito, passei 30 anos no mesmo endereço. Todos se foram e eu fiquei. O apego era tão grande que eu marejei os olhos ao ver aquelas paredes desgastadas, sem tudo o que fui nessas três décadas. Me desmontei e me dividi nas caixas e sacos. Só dois dias para juntar tudo e partir. Ali, fui criança, adolescente, mulher, mãe. Naquela escada perdendo as cores e mostrando o reboco que eu brinquei com as minhas barbies, chorei de amor e de ódio. Construí e destruí. Tive que abandonar sem olhar nem pra trás.
É difícil quebrar as paredes da gente. Dói mais do que erguer de novo. Parece que sangra. Talvez seja o medo de derrubar algum alicerce e dar perda total. Nem todo mundo sabe o que sustenta sua confusão. E pra os relacionamentos e mesmo a saúde mental, não tem seguro que pague. Tem gente que nunca mais se recupera, enlouquece de vez.
Já vi parede explodir depois de anos de gambiarra. E já vi gente morrer por engolir tudo calado. Um dia, a casa cai, às vezes, literalmente. E quem parece feito de chumbo pode virar pó, depois de anos remendando porcamente suas fissuras e fragilidades.
O preço de fincar o pé e teimar em aceitar à mudança é alto. Não é só a casa que precisa desses reparos periódicos ou o carro que precisa da revisão, assim é com a gente e os nossos laços. Corre o risco de você acordar um dia e não saber mais quem divide a casa contigo, como se tivesse avançado com o controle, como naquele filme do Adam Sandler.
É, Vanessa, a gente tem mesmo que derrubar essas paredes corroídas e jogar fora o móvel que o cupim comeu. Nem toda louça merece o remendo. Pode vir um pequeno começo lindo como o que a tua filha mostrou na planta. O novo sempre vem. E tem vezes que ele se mostra muito mais luminoso que o antigo. Que seja assim na escrita e nesse ano que começou.
Cartas perdidas
por Kelly Garcia em 9.1.21
Lendo um texto sobre avós que escreviam para suas netas que moravam longe, lembrei das cartas que escrevi para várias cidades por longos anos. O livro era O fruto de suas mãos, de Nancy Wilson, mas era só um lembrete de como podemos honrar e amar nossos parentes mais idosos. Entretanto, minha memória viajou para os destinos das minhas cartas. Cheguei em Caucaia aos cinco anos, quase seis. Tinha sido alfabetizada pela minha mãe pouco tempo antes. Então, ao ir embora, meu tio me fez prometer que eu responderia as cartas de todos que nos enviassem e não apenas a minha mãe. Seria uma forma de aprender a escrever melhor, ele disse. Sabia bem a sobrinha que tinha.
Nos mudamos em junho e logo que estávamos instalados no apartamento do Araturi que morei por 30 anos, escrevemos para dizer como estava a nova rotina. Minha mãe, nascida e criada em São Paulo, chorava de saudades não só da família, como das comodidades da capital paulistana.
No nosso conjunto habitacional, a parada do ônibus era longe de casa. Não tinha feira pra escolher os legumes, verduras e frutas que minha mãe era acostumada a comer. De frutas, tinha mais variedade, como mangas, melancias e bananas. Porém , a única verdura que a gente achava era o tomate e o cheiro verde, que o povo dizia ser a “salada” daqui. O frango era abatido na hora, assim como o peixe. Os dois vendidos com as suas vísceras. Minha mãe não sabia muito bem como preparar. Amargamos muitos meses nos adaptando. Talvez as primeiras cartas falassem disso. Eu não lembro bem.
A lembrança mais forte desses primeiros anos remontam à velha agência dos Correios de Caucaia, onde tivemos que ir buscar o meu presente de aniversário mais maravilhoso de todos: a boneca Beijoca. Ela ainda existe e está na casa da minha mãe, completou 31 anos. Já é uma balzaquiana, igual a mim.
Além do meu tio e da minha avó Francisca, também escrevíamos para as tias da minha mãe, Neuza e Suzi, duas cunhadas com mãos de fada para doces e todo tipo de comida. As cartas das duas sempre continham receitas de sorvetes caseiros, tortas, bolos, tudo para alegrar nossos dias de criança. O bolo cremoso de coco do meu aniversário de oito anos foi ensinado na letrinha inclinada da tia Suzi, assim como a torta deliciosa e outros pratos, que minha mãe de vez em quando experimentava fazer. No envelope, também vinham fotos para completar os álbuns de recordações.
Recebemos cartas das duas até 1993. Do meu tio, ainda me correspondi até chegar o telefone na minha casa, em 1998, quando passamos a escrever somente no fim do ano, para enviar os cartões de Natal, tradição hoje esquecida.
Para os amigos, só comecei a escrever com uns 11 anos, em uma viagem para São Paulo. Anos depois, também passei a me corresponder com os primos da Jijoca. Essas cartas eram muito esperadas e vinham com perfume, cartões feitos em papel vegetal. Nas minhas, comprava papel de carta, envelope especial, adesivos, cartões postais. Guardo muitas com todo o carinho em uma lata e em um baú. Durou uns quatro anos essa fase.
Infelizmente, das minhas avós não recebi muitas cartas. Vó Francisca não gostava muito de escrever e a vó Maria, só sabia assinar o nome. Minha mãe, nos tempos em que morou fora, ligava mais que escrevia. As cartas só costumavam vir junto com os cartões de Natal. Já eram os anos 2000 e nos ligávamos mais porque era mais rápido.
Ainda fiz algumas amigas, para quem escrevi cartas nos últimos anos. Mas, com o whatsapp, as cartas hoje são uma espécie de presente diferente, personalizado. Hoje, escrevo pouquíssimo à mão, geralmente como agradecimento e também os rascunhos das crônicas. É algo especial.
Ao fechar os olhos, ainda lembro das letras do meu tio, que li tantas vezes nesses envelopes, remetidos no endereço da Rua Pero Neto, as primeiras palavras que eu escrevi além do meu nome, quando estava sendo alfabetizada. Também vem forte a lembrança da letra da tia Suzi, para quem eu prometi escrever em 2011, quando a revi, passados quase 20 anos. Talvez seja a hora de retomar esse contato. Nunca é tarde.
As mangueiras de Natal
por Kelly Garcia em 2.1.21
Um dia desses de dezembro, vi em algum lugar que a árvore de Natal do cearense era um
pé de manga cheio de frutas. Não deixa de ser verdade.
Dezembro era o mês da padroeira da cidade da família do meu pai. Em Jijoca de Jeri, dezembro já se inicia com a cidade mais colorida e alegre. Na Igreja de Santa Luzia, as bandeirinhas coloridas anunciam a festa da Santa Luzia, a protetora dos olhos, que os traz em uma bandeja nos quadros rodeados de mosaicos de espelhos, como em toda quermesse de interior. O parque de diversões grande, com autopista, espalha brasa e roda gigante também era certeza ter. Nas barracas, tiro ao alvo e pescaria. No balneário da Lagoa, forró com alguma banda de fora.
Enquanto de noite dava pra ouvir barulho de festa por todo lado, de dia as crianças só queriam saber era de lagoa. Meus avós, apesar de terem sua casa de sempre no Córrego do Urubu, tinham uma casa “na rua”, como a gente chamava a sede do município, para poderem participar dos festejos sem ter de fazer o deslocamento mais longo. Do Córrego pra rua, era mais de meia hora a pé, cansava muito e os dois já passavam dos 70.
Eu, que só fui nessa época uma vez, lembro que essa casa ficava pertinho do posto mais antigo da cidade. Era um pouco distante da parte mais balneável da lagoa também, o que não dificultava as coisas para um bando de meninos da cidade doidos por diversão.
Nossa tia ia com a gente e no caminho a gente enchia a sacola das manguitas que encontrava, o que garantia a merenda da manhã, o suco da tarde e, quem sabe, até uns dindins. A casa da rua era menor que a do Córrego. Com uns cobogós na porta e um alpendre pequeno. Lembro pouco. A lembrança mais forte era mesmo do sabor da água do pote de barro, coberto com um paninho com uma barra de crochê. Tudo muito bonitinho.
Apesar da proximidade com os mercadinhos mais avançados na cidade, que vendiam os meus biscoitos recheados preferidos, sempre preferi me embrenhar nos matos do córrego mesmo. Não via muita graça em ficar na cidade. O céu estrelado onde não tinha iluminação era melhor que qualquer festa. E eu nunca fui muito fã de forró. Nem aprendi a dançar. Dali a uns cinco anos apenas, minha vó partiu em um 31 de dezembro, iniciando uma caravana de vários parentes para o outro lado e fechando as portas em definitivo da velha casa do Córrego do Urubu, que continua de pé, mas pertence a outras pessoas.
Ainda fui passar o Ano Novo já adulta na Jeri, acompanhada de tantos primos e agregados que enchiam uma picape, hospedada na cidade, na casa de uns tios, mas nunca mais foi a mesma coisa. Parecia que a virada do ano tinha ficado com aquela mancha de morte. Por mais que eu disfarçasse bem, não conseguia esquecer.
Essa cidade em tempo de festa ficou invisível porque nunca mais voltei lá nessa época. E obviamente, tudo mudou. Tanto a cidade como eu.
Ano Novo hoje é tempo de agradecer ao dono do tempo, das festas, das cidades todas. Não preciso estar mais na beira da praia para pedir um ano melhor. E nem fingir felicidade abraçando desconhecidos em cima da duna do Pôr-do-Sol, já meio mareada de champagne barata e da erva que rola solta por lá, toda noite. Não.
Hoje, sou muito mais um jantar com minha família de casa. Com uma comidinha boa e depois da meia noite, uma oração agradecendo por tudo. E isso não é pouco. Posso até ir pra uma beira de praia, mas com eles, rindo das besteiras, admirando os cataventos imensos do caminho ou as estrelas do meio da estrada.
Tudo passa nessa vida. Ainda bem.
O amor inesperado
por Kelly Garcia em 19.12.20
Seguindo a mesma lógica da lagarta que caiu na minha cabeça quando eu ia comprar peixe, o meu grande amor chegou quando eu não estava mais procurando por ele. Em abril, contei aqui que eu passei anos cultivando dois jardins, um na janela e outro na escada, esperando que as borboletas aparecessem para que eu pudesse vê-las mais de perto. Elas nunca estiveram por lá, pelo menos não para que eu visse. Me mudei e deixei de ter plantas em casa. Um ano depois, caiu uma lagarta na minha cabeça e eu levei pra casa. Não só pude observar toda a metamorfose, como vi bem de pertinho suas belas asas. Eu nem lembrava mais desse desejo. E criei borboletas cinco vezes esse ano, de duas espécies diferentes, fora as que morreram na minha casa e as outras que se exibiram para os meus vídeos no jardim do condomínio. Um verdadeiro privilégio que só posso explicar porque sei que Deus me ouve.
Pois o meu grande amor foi quase assim. Inesperado.
Era uma noite quente de dezembro e eu tinha acabado de chegar do meu curso de Espanhol, depois de um longo dia de trabalho na revista. Tomei um banho e percebi que meus absorventes estavam acabando. É, eu ia ter que descer pra comprar na mercearia. Tomara que ainda esteja aberta, eu pensei, porque já era quase dez da noite. Pensando no horário e no pouco movimento da rua, coloquei um vestido de usar em casa mesmo, bem leve e confortável, mesmo sabendo que aquela não era a melhor roupa pra sair. Falei comigo mesma: o que é que tem? Não é mais hora de encontrar ninguém na rua e eu vou e volto rapidinho.
Engano meu. Quando eu voltei da mercearia, que ficava praticamente na esquina de casa, encontrei o pai dos meus filhos me esperando no portão. Nem ele, nem eu sabíamos, obviamente, que teríamos um casal de filhos e que nos casaríamos dali a sete meses. Naquele tempo, ele era o rapaz bonito, legal e talentoso que cruzava comigo em todos os meus grupos de amigos desde os meus dez anos, quando estudamos na mesma escola. Era bem estranho encontrá-lo uma hora daquelas no meu portão, até porque já tinha uns meses que eu não o via, apesar de sua casa estar no meu caminho quase todos os dias.
O motivo, segundo ele, era pedir emprestado um cd de blues que o meu vizinho da frente disse que eu tinha. Um tributo ao Stevie Ray Vaughan. Que pedido esquisito! Mesmo sem entender, emprestei. Uns tempos antes, eu pensei que jamais me casaria e fiz planos para morar com os índios em algum lugar perdido da Amazônia ou me mudar para a Espanha, quando eu conseguisse falar a língua. Poderia até conseguir a cidadania, porque meu avô era espanhol. Eu fazia esses planos aleatórios porque queria fugir pra algum lugar bem longe. Começar uma vida nova. Assim que eu soubesse o resultado da seleção de mestrado em Sociologia, me organizaria para isso. Quem sabe um doutorado? Dava tempo até de juntar um dinheiro.
Aos 22, minhas melhores amigas já estavam casadas. Algumas, já tinham até filhos. Só eu tinha ficado solteira. No meu exagero, parecia que casar e ter filhos era algo muito distante, eu imaginava, meio ressentida por não ter achado alguém ainda.
No dia seguinte ao pedido do CD, ele me devolveu e me perguntou o que eu ia fazer na sexta. Já tinha agendado um show pra ir com umas amigas, o da Nana Caymmi. Ele disse que queria me acompanhar. Aceitei. Só que não tínhamos celular e nos desencontramos.
Quando ele me achou, sentada na grama na Praça Verde do Dragão do Mar, no meio da multidão, já estava na quinta música, eu acho. Ficou ali do meu lado escutando, e eu sabendo que aquele não era o tipo de show que ele costumava ir. Achei ainda mais bonito. Depois do show, ele me perguntou se poderíamos namorar. Eu não quis. Achei cedo. E ele se foi triste, naquela madrugada, sem nenhum beijo sequer.
Dois dias depois, ele surgiu no meu portão de novo. Fiquei surpresa. Achei que depois dessa negativa, ele desistiria. Eu ainda não conhecia sua determinação. Vi nos olhos dele um brilho que me puxava pra dentro. Gostava de conversar. Sabia tanto da vida, da música. E ainda era tão gato. Resolvi não resistir mais. Daquele dia em diante, foram noites e madrugadas cheias de tantas conversas. Era bom ver o dia amanhecer. O tempo passava depressa demais.
A seleção pro mestrado não deu certo, nem a minha ida para a Amazônia ou pra Espanha. Deus tinha outros planos melhores pra mim.
Quinze anos depois, somos quatro. Continuamos a ouvir música e a recomeçar todos os dias. Em cada xícara de café ou de chá, seja na batata doce da dieta ou no bolo de pote. No pedido de desculpas por alguma besteira. Também voltei a escrever. E o amor me encontrou distraída, assim como a lagarta, que se revelou quando eu não estava mais esperando.
Em busca do Gatsby Cearense
por Kelly Garcia em 28.11.20
Esses dias, assisti o Grande Gatsby, aquele filme estrelado por Leonardo di Caprio, adaptação do clássico de Fitzgerald. O livro foi publicado nos loucos anos 20, mais especificamente, em 1925, embora o ano da história seja 1922.
Se você não viu o filme, o Gatsby era um bon vivant, muito rico, que dava festas incríveis em sua mansão. Embora estivesse em muitas farras, seu coração era de uma mulher casada e sofria por não tê-la por perto. Sua fortuna devia-se à máfia, mas quase ninguém sabia ou se importava com isso. Ele era envolto em mistério. O narrador da história era o seu vizinho, primo da tal dona do coração do ricaço.
Depois de assistir o filme, foi difícil não ter curiosidade sobre como era Fortaleza nesse ano de 1922. Comecei a imaginar se existiria um Gatsby cearense. Que festas ele curtiria? Seria em casa ou nos clubes? Quem seria a melindrosa que partiu seu coração?O que rolava nas suas festas? Whisky falsificado, cachaça ou sidra? Existiriam drogas por aqui nesse tempo? Se ele existiu, de onde viria a fortuna? Teria alguma máfia por aqui?
A princípio, eu pensei que o nosso Gatsby seria o empresário Plácido de Carvalho. Afinal, ele tinha um castelo florentino na Aldeota, com direito a duas escadarias e mobília importada de Paris. Mas era casado. Não dava pra ter um coração partido pela melindrosa. E também já tinha passado dos 40, logo não era mais um moço em busca de aventuras. Suspeitei que eles davam grandes festas no castelo, mas não achei registros de ele ser sócio de nenhum clube importante na cidade, nem de grandes recepções. A impressão era que o casal era reservado. A sua fortuna, ao que tudo indica, vinha dos negócios de importação. Nada de máfia. É, definitivamente o Gatsby não ele.
Mesmo Plácido de Carvalho não sendo o Gatsby, um de seus cinemas devia ser o local que o verdadeiro bom vivant frequentava. O Cine Moderno era o lugar para espetáculos finos e requintados, diferente do Cine Majestic, que recebia até luta de boxe. A sua estrutura imponente e a fachada que imitava um templo egípcio, com direito a vitrais coloridos, também chamava a atenção na Praça do Ferreira nos anos 1920.
Outro que pensei que poderia ser o Gatsby cearense é o médico Meton de Alencar, o moço. Mesmo ele sendo casado com a pianista Yaya Jaguaribe e não tendo nenhuma melindrosa aparentemente envolvida, o casal era cadeira cativa nos clubes de Fortaleza desse tempo, o Iracema, que se reunia no Palacete Ceará, aquele ocupado pela Caixa Economica, na Praça do Ferreira e o Clube dos Diários, que tinha como sede o Palacete Guarany, em frente ao Bradesco da esquina da Senador Alencar com a Barão do Rio Branco.
Maximiano Leite Barbosa, com sua família tradicional e o casamento com a única filha do Barão de Camocim, poderia ser um forte candidato a Gatsby. Tirando a máfia e, talvez, o coração partido. Ele era muito benquisto na sociedade de Fortaleza e era genro do Barão que chegou a receber até mesmo a família real brasileira, depois do exílio.
O ano de 1922, assim como no clássico de Fitzgerald, foi bem agitado para Fortaleza. A Academia Cearense de Letras, que tinha dado um tempo, mas resolveu se reunir novamente. A reunião, inclusive, foi no Clube Iracema e decidiu que o próprio governador do Estado seria o novo presidente.
Ano de decisão para as eleições municipais, foi nessa época que Fortaleza escolheu como um de seus vereadores um bode cachaceiro e boêmio, o Yoyô. Nosso primeiro voto de protesto em prol da galhofa e do Ceará Moleque.
Quem aproveitava as noites culturais, já tinha como opção o Theatro José de Alencar, consolidado como ponto de encontro da sociedade com as óperas e outras apresentações artísticas, com 12 anos da fundação.
Para ir a esses eventos elegantes, os carros deveriam ser alugados na Garagem Elite, na mesma rua do Palacete Guarany. Nessa época, andar de carro era sinônimo de ter muito dinheiro. No fim dos anos 1920, Fortaleza teria uma frota de quase 300 veículos.
As roupas elegantes deveriam ser escolhidas nas lojas atrás do Majestic e, quem sabe, tomar um café em algum dos quatro da Praça do Ferreira, reduto de intelectuais e escritores. A demolição só viria em 1925. A Escola Normal permanecia na Praça José de Alencar, vizinha do Theatro e só se mudaria para a Aldeota no ano seguinte.
Se haviam prostitutas, que certamente deveriam haver, elas ainda não estavam em cabarés de luxo. Nos anos 1920, o Moura Brasil ainda era a zona de baixo meretrício da cidade. O asilo Bom Pastor, lugar para as moças perdidas, só começou a funcionar em 1928. As pensões alegres com as “meninas” mais concorridas da cidade só chegariam ao Centro depois da arribada geral dos ricos para o Benfica, o Jacarecanga e a Aldeota. Inclusive uma delas, a Pensão Guarany, funcionaria no cenário que outrora era o epicentro da high society, o mesmo Palacete Guarany que sediou o Clube dos Diários. Será que houve mesmo um Gatsby cearense? Façam suas apostas e se alguém souber, me diga.
Sobre adolescência, sonhos infantis e a distância
por Kelly Garcia em 14.11.20
Houve um tempo em que eu pensei que Fortaleza terminasse na Unifor. Pra quem não mora aqui, a Universidade de Fortaleza é a mais antiga entidade de ensino superior particular da cidade. Lá, era o fim da linha dos ônibus que eu achava que iam para os lugares mais longe na minha imaginação, o Campus do Pici-Unifor e o Antônio Bezerra-Unifor. Nessa época, eu ainda não conhecia os famosos Grande Circular 1 e 2 e Paranjana, que rodavam toda a cidade, até chegarem nas fronteiras.
Antes de eu começar a andar de ônibus sem os meus pais, já percebia que o Iguatemi era muito, muito distante. Eu sabia que ele ficava um pouco antes da Unifor e, portanto, era bem pertinho do fim da cidade. Nos fins de novembro, na TV, a decoração de Natal daquele shopping era de encher os olhos. Você praticamente era transportado para a terra natal do Papai Noel. Para uma criança, era difícil acreditar que houvesse algo mais belo. E eu, como qualquer uma delas, sonhava em conhecer aqueles cenários branquinhos, cheios de verde, vermelho e dourado e muita neve artificial. Outro grande motivo que me fazia sonhar com o Iguatemi era porque, nos anos 1990, era no pátio de lá que montavam o Universal Park e os circos grandes. Como eu queria conhecer!
Morando em Caucaia, algumas vezes pedi ao meu pai para me levar. Ele, muito brincalhão e, ao mesmo tempo, sabendo da distância e nada empolgado com a viagem, deixava logo claro que não iria andar de carro por mais de uma hora só para ver árvore de Natal e velho vestido de Papai Noel ou as outras atrações. Minha tia, que nesse tempo morava no mesmo bairro, sempre levava os filhos para o Circo e o Universal Park. Em uma das vezes, pedi ao meu pai pra ir com ela, mas ele não autorizou. Seriam dois ônibus pra ir e dois pra voltar e minha mãe disse que não iria sem ele. Deu errado de novo e eu continuei alimentando essa vontade de ir. Eu sabia que em algum momento eu iria.
Chegou a minha adolescência e eu arranjei um namorado. O rapaz, colega de escola, morava em outra cidade da Região Metropolitana. Ele conhecia o Iguatemi e sabendo do meu sonho de matuta de conhecer aquele shopping, me levou lá no nosso primeiro passeio clandestino. O dia era de aulas e não lembro bem se era o Dia dos Namorados ou os meus 15 anos. A programação era ir ao cinema de lá. Nesse tempo, era o melhor da cidade. Como ele não dirigia aos 16 e nem era rico para ter um motorista, fomos de ônibus. Lembro bem do percurso. Pegamos três ônibus. Primeiro, o Circular, atrás da escola, na Princesa Isabel, ali onde hoje tem uma delegacia. Descemos na reitoria da UFC e pegamos o Campus do Pici-Unifor. Mal sabia eu que passaria quatro anos pegando esse mesmo ônibus nos tempos da faculdade.
Antes de chegarmos na Reitoria, passamos em frente a um grande descampado, cercado por tapumes, com várias árvores derrubadas, onde já estavam construindo o Shopping Benfica. Ao apanhar o ônibus, foram mais uns 40 minutos dentro e eu morrendo de medo de enjoar ali na frente do meu namorado. Nunca fui de me sentir muito bem nos ônibus em viagens muito longas. A prática de ler na condução só adquiri depois. Lembro bem de ter achado linda a Igreja de Fátima, que ele prometeu me levar em outra oportunidade e o prédio espelhado da Assembleia Legislativa. Na descida da Antônio Sales, passamos quase em frente à outra sede da nossa escola, que era possível avistar por causa do planetário.
Ali, já tínhamos que nos preparar para descer. Finalmente, eu tinha chegado ao meu destino de criança.
Achei tudo tão grande! Fiquei até com medo de me perder. Meu namorado adolescente, sabendo dos preços salgados do shopping, já tinha pagado meu almoço em um self service nas redondezas da Praça da Bandeira, perto da escola mesmo. O lanche do shopping poderia ser um sanduíche, sorvete, alguma coisa assim. Talvez tenha sido nessa vez que eu tenha provado os sabores peculiares da batata frita com Milkshake de Ovomaltine. Ou será que eu escolhi o Top Sundae de caramelo do McDonalds? Ou era um gelato gourmet de uma sorveteria cara que só tinha lá? Não lembro...
Em 1998, quando fiz 15 anos, assistimos por lá dois filmes de fim do mundo – Armageddon e Impacto Profundo. O romantismo desse tempo ficou pelos beijos sentados no banco das fontes internas do shopping. Nessas duas vezes, não gostei muito de ter que escolher os meus presentes, preferia a surpresa. A parte boa é que eu voltei pra casa com dois Cds da minha banda preferida: o Legião Urbana, que estou escutando aqui pra escrever. Enfim, agora eu tinha ido até o fim da Aldeota, que era o Cocó, na verdade, e conhecia o Iguatemi.
Depois daquele namoro acabar, fui lá várias vezes e em todas ficava admirada com o tamanho do shopping. Eu ia para cobiçar os livros da Livraria Saraiva, em algumas vezes, consegui comprar uns baratos. Também provei de um bolo de chocolate com capuccino difíceis de esquecer com minha filha. No cinema de lá, fui pouquíssimas vezes de novo. A distância, reconheço, continua importando muito. Por isso, até hoje não conheço pessoalmente aquele teto com design diferenciado. Fica muito contramão, como se diz. Hoje, adulta, acabo dando razão ao meu pai mesmo.
Carta para o Mara Hope
por Kelly Garcia em 3.11.20
Começo esta carta te dizendo que dizendo que temos muito em comum. No ano em que eu nasci, você foi incendiado. Minha vida começava e a sua utilidade como petroleiro chegava ao fim. Eu, em São Paulo, naquela maternidade da Santa Cruz. Você, em Port Neches, no Texas. Fotos: blog Fortaleza Nobre
Assim como você, fui levado para Fortaleza. Você, de passagem. Eu, para ficar. Meu pai cearense viu possibilidades de estabelecer com mais conforto aqui. Dois meses depois de ele voltar para o Ceará, eu chegava no aeroporto Pinto Martins com minha mãe e meu irmão.
Você chegou quatro anos antes de mim, em 1985. Um rebocador te trouxe até este porto. Uma tempestade soltou suas amarras, ou alguém soltou de propósito. Levado por ventos fortes, encalhou em um banco de areia quase em frente à Ponte dos Ingleses, de onde olha Fortaleza há 35 anos.
Assim como você, depois que aqui cheguei, também finquei minhas amarras. Você, há tantos anos encalhado, teve seu convés transformado em um berçário de peixes e corais. Foi point de mergulho durante muitos anos. Eu fiz minha vida por aqui e floresci. De mim, surgiram duas belas crianças, graças ao bom Deus que toca e faz surgir vida de onde Ele quer. Não lembro bem quando te conheci. Terá sido em 1996, quando fui até o Panorama Artesanal avistar o Por-do-Sol e ver as luzes do Marina Park se acenderem? Ou terá sido quando conheci a Ponte Metálica? Será que foi quando fui no Passeio Público? Não consigo lembrar.
Sei que depois que passei a reparar em ti, buscava tua sombra em cada avistar do mar. Ia ao Passeio Público só pra te ver e mostrar pra quem estivesse comigo. Na volta do trabalho, fazia questão de pegar o Circular para te ver ali do Aterro do Praia de Iracema, ao cair da tarde, enquanto o sol se despedia, até você sumir detrás dos prédios e eu continuar meu percurso até a padre Ibiapina, onde ia pegar meu outro ônibus pra casa.
E eis que como se tu assoprasse tua voz de barco naufragado para a redação, surge a oportunidade de, em um veleiro, eu te conhecer bem de pertinho. O sol era de meio dia, mas eu sabia que jamais esqueceria aquele encontro. Em vez da tua sombra distante, vi como você sofria a ação do tempo, com muita ferrugem, um grande pedaço arrancado e seu mastro, que quebrado, estava prestes a cair.
Ainda assim, eras belo. E guardei tua imagem comigo, sonhando com o momento do reencontro.
Oito anos depois, voltei a te ver. Dessa vez, acompanhada do marido e dos filhos. Em vez do Sol impiedoso que me rendeu uma enxaqueca, te vi cercado de tons amarelos e alaranjados e do mar verde com sua faixa dourada pelo entardecer.
Tanto tempo depois, estás ainda mais corroído. Teu mastro caiu. Não é mais recomendado o mergulho pulando do teu convés. Igual a mim, de novo. Faltando três anos para os quarenta, sinto menos força. Os anos de descuido me renderam pés inchados, quilos extras. Preciso mudar meus hábitos. Estou enferrujando e soltando pedaços, igual a ti.
Espero te encontrar de novo logo, Mara Hope. Quem de nós dois sumirá de Fortaleza primeiro?
Sobre servir e o sentido da vida
por Kelly Garcia em 21.10.20
Hoje é meu aniversário, mas não fui presenteada com a inspiração sobre algo relacionado à cidade. Então, esperem algo autoral para a semana que vem e fiquem com essa mensagem que muito me emocionou hoje de manhã, do Devocional Dia a Dia com Spurgeon, do pregador Charles Spurgeon.
“...o amor de Cristo nos constrange...” 2 Coríntios 5, 14
Quanto você deve a seu Senhor? Ele, alguma vez, fez algo por você? Ele perdoou seus pecados? Ele o cobriu com um manto de justiça? Firmou seus pés sobre uma rocha? Estabeleceu seu curso de vida? Ele preparou-lhe o céu? Ele o preparou para o céu? Escreveu Seu nome no livro da vida? Concedeu-lhe bênçãos incontáveis? Ele separou para você um estoque de misericórdias que olhos não viram, nem ouvidos ouviram?
Então, faca algo para Jesus digno de Seu amor. Não dê uma simples oferta verbal a um Redentor agonizante. Como você se sentira quando Seu mestre vier, se precisar confessar que não fez nada por Ele, mas manteve seu amor calado, como água parada que não flui nem para Seus pobres , nem para a Sua obra? Que amor vergonhoso e esse? O que pensam os homens sobre um amor que nunca manifesta ação? Ora, eles dizem: “melhor repreensão franca do que o amor encoberto.” Quem aceitara um amor tão fraco que não o incita a um ato sequer de autonegação, generosidade, heroísmo ou zelo? Pense em como Ele o amou e se entregou em seu lugar! Você conhece o poder desse amor?
Então, deixe que ele seja para a sua alma como um vento impetuoso e forte que afasta as nuvens de seu mundanismo e acaba e acaba com as nevoas do pecado. “Por amor a Cristo” seja esta a língua de fogo a vir sobre você, “por amor a Cristo” seja este arrebatamento divino, a inspiração celestial a conduzi-lo as alturas, o espírito divino que o fará ousado como um leão e veloz como uma águia em seu serviço para o Senhor.
O amor deveria dar asas aos pés que servem, e força aos braços que trabalham. Fixos em Deus, com uma Constancia que não e abalada, decididos a honrá-lo com uma determinação da qual não é abalada, decididos a honrá-lo com uma determinação da qual não devemos nos desviar, e pressionados com ardor que nunca se fatiga, manifestemos nossos limites no amor a Jesus. Que o ímã divino nos atraia para o céu.
Sobre Cidades Invisíveis e a escrita
por Kelly Garcia em 14.10.20
Dia 13 de outubro é a data em que se celebra o Dia do Escritor. Lembrei então que há algum tempo eu tentei resumir como eu e a escrita por prazer nos encontramos e achei esse texto que explica algumas coisas. Escrever faz parte de mim desde que eu tinha dez anos. Foi na pasta de redação da quinta série do Fundamental, do Hermínio Sargentim, que vinha com um livro de verdade a ser escrito durante o ano, que guardei comigo a decisão de escrever um livro. Lembro do meu pai e eu dando muitas risadas com as histórias que geravam os textos. Você vai ser escritora, ele dizia. E eu acreditei. O livro ficou guardado por muitos anos, mas se perdeu na última mudança. Tinha desenhos toscos e uma letra redonda de criança. Quando fecho os olhos, lembro de cada detalhe.
O desejo permaneceu comigo e foi reavivado no ano seguinte, quando uma amiga precisou escrever um livro com 20 páginas pra um trabalho da escola. Ela estudava em uma escola melhor e eu peguei a ideia e fiz o meu, com 80. Duas Vidas era um romance adolescente, com algumas reviravoltas. Dele, eu lembro só o básico e que era bem clichê. Patrícia e Patrick começam a namorar na escola, terminam e voltam algumas vezes. Ela vai embora estudar em outro Estado e eles terminam, mas depois que ela se forma, voltam e se casam. Previsível? Sim. Tem horas que tenho vontade de recontar essa história, melhorando.
Com uns 14 anos, comecei a escrever poesia. Era um processo caótico, no qual a inspiração aparecia do nada e eu a seguia. Escrevia no ônibus, na rua, no banheiro... Juntei todas em um caderno, dei algumas de presente. Me uni a alguns amigos também poetas com a intenção de publicarmos juntos. Mas o projeto nunca foi pra frente. Outro dia, achei algumas e fiquei com vergonha.
Na faculdade, parei de vez com a escrita por diversão. Escrever como profissão me deixou mais crítica com meus textos e eu achei que não tinha talento mesmo com a ficção. Foi um período de muita leitura e pouco tempo livre, também. O sonho de escrever um livro ficou parecendo uma vontade besta que eu joguei como lixo pra debaixo do tapete. Só que um dia o lixo fica tão grande que ressurge. Não dá mais pra esconder.
Fui atropelada pelos acontecimentos não planejados. Deixei a vida me levar e me casei, tive filho, fui trabalhar feito louca pra dar conta dos boletos. O desejo bem fraquinho, eu nem ouvia mais. Mas, aqui, acolá, ressurgia como um sussurro, com uma vontade de fazer mestrado, só pra escrever um livro no fim. E nas matérias que eu mais amava, as históricas, que eu dava um jeito de encaixar poesia pelo meio. De vez em quando, eu não conseguia segurar a vontade e escrevia um conto. Mas, com vergonha, nem salvava. E ele se perdia pelo meio dos arquivos da vida.
Com a infância da minha filha mais velha, a criatividade dela me dava muitas boas ideias. As tiradas ótimas viravam posts nas redes sociais e as pessoas me incentivavam a lançar um livro sobre isso. Mas, nunca fui muito de acreditar nessas coisas e seguia adiante. Por via das dúvidas salvei no email todas elas.
Depois do segundo filho, escolhi cuidar da família e dos meus. Nesse caminho totalmente novo, me vi só como nunca antes e o desejo de escrever voltou com força. Foi aí que eu notei que se eu não escrevesse morreria sufocada. Quantas madrugadas eu passei em claro, amamentando e pensando em posts, lendo, escrevendo crônicas para desabafar. Todas ineditas porque nunca tive coragem de mostrar.
Pra elaborar melhor as situações que eu vivia, comecei a criar contos. Um deles, o primeiro, entreguei pra uma amiga se escrever em um concurso. Tudo porque morria de vergonha de me expor. Me sentia nua. Não queria dar minha cara a tapa. Com meu primeiro conto, claro, ela não ganhou o concurso. Ficamos de escrever mais juntas, para quando surgisse a próxima oportunidade. Nos esquecemos e na época do concurso seguinte, eu continuava só com aquele conto. Mas, outros seis surgiram desde então. Com um deles, fui selecionada como uma das 50 melhores em um concurso nacional. Tenho escrito crônicas por aqui toda semana e anotado as ideias. Ainda estou longe do ideal, mas sei que esse é um caminho que se constrói a cada dia.
Quero sim ser escritora. Por mais que me julguem mal. Ou que me chamem de tola. De que estou perdendo meu tempo e meu dinheiro. A gente é para o que nasce mesmo.
Não adianta fugir. Vou encarar.
Sobre o ouro do sertão, poeira e infância
por Kelly Garcia em 07.10.20
Qual a sua lembrança mais marcante da infância? Na minha infância, como geralmente é, teve muita coisa boa e ruim. Nunca fui criança de brincar muito na rua. Nasci em São Paulo capital e por lá vivi até os cinco anos. Já nos tempos que vivi por lá, era sim perigoso brincar na rua, especialmente nos dias de semana. Corria o risco de ser atropelado, sofrer um rapto ou coisa pior. Por isso, lá criança era do portão pra dentro.
Eu gostava de ficar olhando pelos buraquinhos das grades. O muro era baixo, mas eu com meus cinco anos, não dava conta de pular. Aí ficava só olhando mesmo os carros passando. Como minha mãe é de lá, minha rotina não mudou muito depois que passei a morar em Caucaia, no Araturi, onde passei 30 dos meus 37 anos que vou completar no próximo dia 21. Meu apartamento era pequeno, então eu tentava me apoderar ao máximo dos lugares abertos que eu visitava, das paisagens, dos cheiros, das plantas, de tudo. Eu me agarrava às cidades que visitava para que eu pudesse voltar pra lá sempre que eu quisesse, para não esquecer e avistá-las quando fechasse os olhos. Foi assim, me agarrando aos flashes, que fiquei marcada pela dureza de Apuiarés. Fui naquele lugar poeirento uma única vez, talvez com uns nove ou dez anos, não lembro bem da data. Entretanto, do que vivi por lá, lembro muito.
Chegamos na casa que nos receberia era perto de meio dia. Algumas crianças e adolescentes estavam no alpendre debulhando milho. Pra mim, foi uma brincadeira que logo feriu minhas mãos finas de criança da cidade e logo desisti. Banho era de balde, como em qualquer interior. Só que nesse lugar, em vez de cacimba, a água era do rio. Pra pegar, tinha que andar mais de uma hora com os baldes na cabeça. Isso eu descobri depois de desperdiçar a terceira caneca de água, acostumada à fartura das torneiras e chuveiros e mesmo do tanque lá da Jijoca. Enchi meus olhos de água do carão que eu levei, mas depois entendi. Água é ouro no sertão. Tem que economizar o máximo que puder.
Foi lá também que vi um capote pela primeira vez, essa galinha que parece pintada à mão e fala do nosso cansaço: Tô fraco, tô fraco. Depois desse carão, fiquei fraca mesmo pra chorar e foi o que aconteceu quando eu vi a galinha do almoço sendo morta e tratada pro almoço. Coisa fraca é menina da cidade. Qualquer coisa, chora e ainda é lesada. Será que se cria?, escutei sem querer.
No caminho de volta, a estrada era muito esburacada e não tinha asfalto a partir de alguma cidade. Sei que o carro deu o prego em Pentecoste. O carro do meu pai não agüentou o sacolejo. Acho que voltamos apertados no carro do meu tio, enquanto meu pai consertava.
Entrou pras cidades invisíveis, pra minha coleção de lembranças. Essa não é boa, mas serviu pra eu ver na realidade o cenário dos meus livros preferidos de hoje, os regionalistas. Dos recentes, tem o Outros Cantos, da Maria Valéria Rezende e o A Casa, de Natércia Campos.
A crônica foi digitada enquanto eu escutava o Mastruz com Leite das antigas pra dar uma força na inspiração. Na minha infância, esses forrós estavam sempre presentes porque meu pai sempre gostou e colocava nas fitas pra gente viajar pra casa dos meus avós. Das quatro da tarde em diante, também era certeza nas rádios da família e da vizinhança e nos churrascos dos amigos nordestinos de São Paulo todo Natal.
Mas isso é assunto pra outra crônica.
Até a próxima.
Entre a ficção nas minas dos Estados Unidos e a realidade cearense
Tem dias que as crônicas não surgem, nem mesmo quando há esforço. Mas tem dias em que elas aparecem no meio de uma aula de reforço. Ah, o tédio e o ócio... Como são importantes para quem trabalha com a criatividade.
No meio de uma aula de matemática a domicílio, comecei a pensar nas cidades invisíveis que visitei em uma leitura coletiva com as mulheres da minha igreja. O livro é Amor de Redenção, da norte-americana Francine Rivers.
O livro se passa nos anos 1850, em uma zona mineira dos EUA, próxima da California e de Sacramento. Eu, pouco conhecedora que sou da história deles, nunca soube onde ficavam essas zonas mineiras. Mas no Brasil, eu sei onde ficavam e onde ficam hoje e como sabemos pelo que acontece por aqui, onde tem ouro e garimpo, tem prostituta, violência, escassez, pedofilia e muita gente má.
No livro, a protagonista é uma prostituta, filha bastarda de um cara poderoso e sofre mais do que personagem de novela mexicana. Muito mais. Tudo o que você imaginar de coisa ruim, essa personagem sofre já antes dos dez anos e isso se reflete em sua vida adulta, secando seu coração e impedindo que ela viva uma vida plena. Mas Deus estava cuidando de tudo para que, na hora certa, ela encontrasse uma saída.
Mas, quando você pensa que finalmente ela vai parar de sofrer com os erros do passado, ela foge. Eu não sei como foi com vocês, mas quando alguém começa a se encontrar com o amor de Deus é bem parecido. Você foge. Volta para os velhos hábitos ruins, para o pecado, até que Jesus vem e te resgata.
Entretanto, diferente das minhas irmãs que fizeram a leitura, eu não consegui chorar logo. Meu coração parecia ter endurecido, porque eu já tinha visto a história da protagonista contada outras vezes. De forma real. Eu tinha apenas 13 anos e me mostraram o relatório da CPI da Prostituição Infantil de Fortaleza, em folder, nos anos 1990. As histórias eram quase iguais a da protagonista do livro. Talvez muitas daquelas meninas de sete, oito e nove anos nem tenham conseguido sobreviver, ao se prostituir para os italianos, de fazer isso em prol da própria família miserável. Será que se viciaram em drogas? Morreram assassinadas? Elas vinham do Pirambu, da Barra do Ceará, do Castelo Encantado... Era triste demais. Outras histórias fictícias e reais envolvendo esse tema também sempre me chamavam a atenção. Foi assim com a Luciola, do José de Alencar e também com O Doce Veneno do Escorpião, da Bruna Surfistinha.
Infelizmente, o Ceará foi e continua sendo um paraíso para os pervertidos que preferem menininhas. Quantas histórias escondidas não devem ter por aí das que caíram nas garras dos pedófilos daqui e dos gringos. Dos monstros que às vezes moram na mesma casa que elas. Pais, padrastos, avós, tios, primos, vizinhos...
Também não duvido que o mesmo ocorra aos montes no Pará, no Amapá ou Mato Grosso. Já vi várias vezes nos jornais.
A realidade é que a história da protagonista de Amor de Redenção pode ser mais comum do que gostaríamos. A vida real, geralmente, é muito mais brutal e surpreendente do que ocorre nos livros.
Porém, é bom lembrar que o amor de Deus é capaz de redimir tudo isso. Independente do que nos aconteça, ele nos arrasta de volta quando estamos na lama. Ele não se surpreende com nossas maldades. E o seu amor é capaz de limpar toda a imundície e curar feridas do passado, para que se possa curar outras pessoas feridas da mesma maneira.
Leiam Amor de Redenção. Se você for sensível, deixe logo os lenços separados. Se for como eu, escreva pra você mesma, lembrando das pessoas reais que passaram por isso e ore por elas, porque não são poucas infelizmente. E se souber de algum abuso, denuncie.
Assinado por Kelly Garcia em 29.09.20
Entre a falta de palavras e livros perdidos
Tem dias que parece que a fonte das palavras secou. Dias de aridez, em que frases não se formam e o texto fica assim, engasgado, sem cor. Essas últimas semanas tem sido assim. Não sei se pela quantidade de coisas para fazer, o estresse de sempre, a sensação de dever não cumprido. As cidades invisíveis ficam apagadas, turvas. Especialmente se não tenho visitado nenhuma cidade real. Fico olhando muito pras que a minha mente gravou, ruminando nostalgia de tempos que não voltam, de lugares que não voltarei a ver. Que simplesmente deixaram de existir e que não há nada que se possa fazer a não ser conviver com o perfume dessas lembranças.
Enquanto isso, a vida e a rotina exigem. É uma tarefa que ficou pra trás, um livro que se perdeu na estante que eu não tive tempo de arrumar, a agenda que foi para o limbo das coisas perdidas. E o celular voraz vai engolindo a família, a rotina, ocupando o lugar primeiro, a angústia tomando conta, o nó na garganta se forma e a inspiração não aparece. Por isso, tenho atrasado não só esse compromisso com os leitores, mas com a vida mesmo.
Parece que tudo acontece com os outros, lá fora, enquanto o que me resta é só assistir, noticiar. Viver num mundo tomado por distrações. O Instagram parece uma droga. Na verdade, as redes sociais são. Não há como negar.
O único assunto que me deu vontade de contar foi uma biblioteca desfeita de um casal desconhecido. Na semana passada, meu sebo preferido postou um volume nunca antes visto de livros maravilhosos à venda. Tinha Ítalo Calvino, Jorge Amado, Nelson Rodrigues, além de uma infinidade de autores contemporâneos conhecidos e muitas obras de não ficção, como biografias e teses publicadas.
Era um acervo invejável. Ao ver dois dos títulos que estavam na minha lista de desejos na Amazon, liguei para reservar os meus e perguntar de onde tinham surgido tantas pérolas preciosas.
A dona então me disse que era a biblioteca pessoal de um casal sendo desfeita. Só que um dos cônjuges estava vendendo logo tudo, antes que a outra parte reclamasse.
Apesar da minha experiência com livros, esse tipo de disputa eu só tinha visto nas músicas. Já vi muitos casos de separação em que um dos dois se desfaz do que pode em termos materiais, só para não ter que dividir. Geralmente, o marido inventa de vender a casa, os veículos, terrenos e dá uma justificativa qualquer. Aí, algum tempo depois, pede o divórcio e não tem mais quase nada para partilhar. Entretanto, esse tipo de maracutaia envolvendo livros, eu nunca tinha visto.
Eu mesma, quando ainda era mais novinha, inventei de ter um acervo compartilhado. Quando o relacionamento acabou, perdi todos porque não fiz questão por nenhum deles. Preferi deixar para trás. Aos poucos, fui comprando de novo os que eu gostava mais. Alguns, ganhei de presente do marido. Espero que nunca tenha que dividir esse acervo, porque deu muito trabalho para construir. Ao todo, talvez tenhamos mais de 500 títulos, acumulados nesses últimos 15 anos.
Mesmo sem saber quem era esse casal, fiquei imaginando a reação da mulher ao descobrir que não havia mais nenhum livro seu na estante. Que vazio. Aquele livro com dedicatória, aquele comprado em uma viagem, os da escola... Tudo indo embora. Quantas cidades invisíveis deixam de existir quando um relacionamento acaba? Quantas viagens, histórias, são queimadas pelo ressentimento quando um grande amor chega ao fim?
Fiquei com a dor dessa mulher na mente e pedindo a Deus que nunca uma coisa dessas me aconteça. Ao mesmo tempo, percebi o apego que tenho aos meus livros. Isso também não é bom. Livros novos podem ser comprados, mas tem edições que deixaram de ser publicadas. O meu Cem Anos de Solidão, que está se desfazendo, talvez nunca volte a encontrar. Nem se compara com as de hoje. Até a tradução é outra. Não tem os desenhos do Carybé...
E você, o que mais temeria perder se seu relacionamento acabasse agora? O brilho no olhar, a união da família? O amor mesmo ou os bens? Fica a reflexão.
Assinado por Kelly Garcia em 21.09.90
As cidades do fim do mundo
No dia 11 de setembro, como todo mundo que tem mais de 25 anos deve lembrar, as Torres Gêmeas - o World Trade Center, ruíram depois de um ataque terrorista. Eu não sei o que vocês estavam fazendo nesse dia, mas, mais uma vez, pensei que fosse o começo do fim. Em toda a minha vida, nunca tinha visto uma prova real de que tudo fosse se acabar. Aquela foi a primeira vez, além da Guerra do Golfo, que também me impressionou.
Nesse dia, se eu bem me lembro, era por volta de meio dia, quando vi a imagem aterradora na televisão do Dudda’s Burguer, em frente à antiga sede do Centro Cultural Banco do Nordeste. Minha faculdade estava de greve e eu cursava o segundo semestre. Com a folga no tempo, estava fazendo um curso de informática nas proximidades da Praça do Coração de Jesus, aí comia meus dois pães de queijo recheados com capuccino e aproveitava o que tivesse passando no CCBNB. Essa notícia perturbou tanto meu dia que eu fui logo pra casa, atarantada, cantando na minha mente aquele hit do Paulinho Moska que foi tema da série O Fim do Mundo, na Globo. “Meu amor, o que você faria se só te restasse esse dia?” Achava muito injusto ter que morrer logo um mês antes de completar meus 18 anos. Como pode? Mas eu já imaginava que só viveria até os 17 porque tinha acreditado piamente nas profecias de Nostradamus. Então essa não foi a primeira vez que eu pensei que o mundo acabaria.
Aos nove, dez anos, gostava de revirar a minha biblioteca exótica, que era sediada no guarda roupa embutido do quarto dos meus pais. Lá, rodeado das enciclopédias e das muitas edições dos livros do Instituto Universal Brasileiro, que meu pai sempre fazia os cursos, tinha um exemplar surrado e sem capa das profecias de Nostradamus. Eu não só li, como comparei com o Apocalipse e ainda passei pro meu primo, que era o meu melhor amigo nessa época, ler também e ficamos os dois assustados, esperando viver até apenas os 17, porque o falso profeta previu que o mundo acabaria em 2000, fazendo referências com a Bíblia, os manuscritos do Mar Morto, astrologia, um monte de coisas. Foram muitas as noites insones preocupada com isso, era o meu filme de terror. Depois, aos 13, recebi uma carta com a revelação do Terceiro Segredo de Fátima. Fiquei mais aterrorizada ainda porque lá dizia que seriam muitos dias de escuridão e que a única luz seriam as velas bentas. Até benzi algumas para guardar, porque essa previsão não dava data certa.
Na virada do milênio, eu já andava desacreditada. Isso porque em 98 e 99, Hollywood explorou bem o tema com vários filmes e até a Globo fez uma série sobre isso. Se passa na TV, parece que é mesmo ficção. O Réveillon foi na casa de familiares em São Paulo. Na hora dos fogos, eu ainda pensei um pouco se o asteróide não estaria ofuscado pelo brilho e os estouros. Mas, aqui estamos e mundo continua. Em 2012, o calendário maia previu outro apocalipse e eu fiquei meio impressionada com as ondas gigantes porque cheguei a ter pesadelos com aquiloi várias vezes. Até hoje, não fico muito confortável com a vista de prédios para o mar. As poucas vezes que subi para fazer matérias, em alguns apartamentos na orla, fiquei me sentindo meio esquisita, como se o mar fosse invadir tudo a qualquer momento.
Apesar desse desconforto, diferente da virada do milênio e dos meus terrores infantis, hoje estou segura de quem é o Autor da história do mundo. Então, não preciso me desesperar. Esse mundo vai passar mesmo. E você, o que faria se só restasse esse dia? Se o mundo fosse acabar, o que você faria? Fiquei curiosa!
Publicado por Kelly Garcia em 13.09.20
Entre saias colegiais, insetos e livros
Agosto, entre outras datas marcantes, tem o dia do estudante. Por conta das muitas fotos interessantes que recebemos, fiquei com vontade de escrever as minhas lembranças da escola e misturar com as cidades invisíveis que habitam a memória de muitos dos que entrevistei.
Enquanto aluna, troquei bem pouco de escola. Até os seis anos, estudei com minha mãe em casa, onde fui alfabetizada. Depois, fui para uma escola daquelas pequenas, de bairro mesmo, onde fiquei até onde ainda tinha séries. No caso, até a sétima, que no meu tempo era o penúltimo ano do Fundamental II. Da oitava série até o terceiro ano do Ensino Médio, estudei no tradicional Colégio Sete de Setembro, que é bem conhecido em Fortaleza por aprovar no vestibular.
Na minha pequena escola de bairro, que funcionava em salas adaptadas de uma esquina com quatro apartamentos da antiga Cohab, aprendi a fazer amigos, conheci insetos diferentes e bonitinhos, como os soldadinhos e também o meu marido e pai dos meus filhos, que encontrei na fila para voltar pra sala de aula, embaixo do tal pé de castanholeira que abrigava os soldadinhos. Eu tinha uns nove ou dez anos e jamais imaginei que aquele menino magrinho com uma cicatriz no rosto por causa de uma mijada de potó seria a pessoa que eu me casaria doze anos depois.
Dessa escola, trouxe comigo as vergonhas dos muitos micos que passei por conhecer a todos, dos disparates respondidos revelando amores que era melhor esconder e também a segurar a saia colegial de pregas, que insistia em levantar, para alegria dos meninos mais afoitos.
Já no Colégio grande, eu aprendi o que é ser apenas um número em uma sala de 65 ou 70 alunos. Foi indo para lá que eu criei o hábito de pegar ônibus todos os dias,a sair das minhas próprias encruzilhadas. Porque, sim, adolescentes criam muitas presepadas e precisam se sair delas. Também foi lá que eu entendi o que é ser um peixe fora d’agua e me refugiar na biblioteca da escola, que tinha poucos livros e nenhum empréstimo. Encontrei nas prateleiras de ferro meus amores das letras. Nas capas rosa e vinho, conheci o Vinícius de Moraes. Nos livros de capa dura e papel jornal, fui até o Rio Grande do Sul e me apresentei ao Erico Veríssimo. Também peguei nas edições bem antigas de poetas cearenses, como o Francisco Carvalho. Passei quatro anos me escondendo por lá e vendo o que tinha nas livrarias nos arredores, tirei algumas Xerox e comprei alguns livros baratos, para imitar nos versos alguns poetas que me serviram para cantar um pouco esses amores juvenis desse tempo.
Os tempos escolares dos escritores sempre foram cheios de detalhes, especialmente nas memórias. Do Milton Dias, aluno do Colégio Cearense e antes, do Ginásio de Massapê, tenho várias crônicas no meu Relembranças. A Rachel de Queiroz conta uma de suas melhores histórias usando o tradicionalíssimo Colégio da Imaculada Conceição como pano de fundo no seu ótimo As Três Marias. O presidente da Academia Fortalezense de Letras, Seridião Montenegro também conta boas aventuras nos seus tempos de seminarista do antigo Colégio de São Vicente de Paulo, no Antônio Bezerra, que já foi Barro Vermelho.
Ao vasculhar as memórias de algumas pessoas da sociedade, descobri que não era só os homens que viviam nos internatos. Além de ter um no próprio Colégio da Imaculada Conceição, a maioria dos colégios religiosos mantinha esse regime para meninas. A defensora pública aposentada Irene Mota me contou muitas memórias engraçadas e interessantes dos tempos em que foi interna no Colégio Santa Isabel, ainda hoje funcionando, no fim da Avenida Bezerra de Menezes. Ela foi interna até os 14 anos e me contou que a disciplina rígida a incomodava um pouco, assim como o cardápio servido. As conversas, livros e cartas escondidas lembravam muito os dos filmes. Com ela me contando me transportei para a Anne de Green Gables nos tempos do orfanato, apesar de tudo se passar no fim dos anos 1950, porque também como lá, algumas freiras eram bem sisudas e tinham as suas espiãs e protegidas. Achei as histórias uma delícia de ouvir e acredito que renderia livro dos bons.
Imaginei como ver os diários desses tempos seria uma experiência riquíssima, um verdadeiro tesouro nesses tempos difíceis do distanciamento da família, além das muitas cartas trocadas entre mães e filhas, amigas ou mesmo os namorados. Será que alguém teria um tesouro assim para me mostrar? Quem dera ter essa honra. Vou ficar aguardando, mas desde já desejo um feliz fim de agosto do estudante para todos.
Assinado por Kelly Garcia em 30.08.20
As cidades invisíveis dentro de Caucaia
Hoje, eu estava decidida a escrever sobre escolas, saias colegiais e rotinas nos meus tempos e nos de outras pessoas. Mas, dia 17 foi o Dia do Patrimônio Histórico e eu não poderia deixar passar em branco uma data tão importante.
Os prédios históricos já chamavam minha atenção quando eu era apenas uma estudante de Ensino Médio. No meu caminho pra tudo na vida, a Avenida Bezerra de Menezes, algumas poucas casas eram anteriores aos anos 1950, nos anos 1990 e se destacavam em meio aos muitos prédios e salas comerciais. De lá para cá, a maioria ou foi derrubada ou descaracterizada, assim como muito do que era antigo na cidade.
Também nos meus tempos de Ensino Médio, o professor de História nos levou a uma excursão na Casa do Português, da Avenida João Pessoa. Aquela casa imensa, de três pavimentos, parecia que ia cair a qualquer momento e tinha muitos varais porque muitas famílias moravam lá. Não conseguimos entender naquele tempo se era alugada ou invadida.
Depois de uma longa pausa nos tempos de faculdade, quando me dediquei mais a pesquisar cultura popular e a questão indígena, já nos meus tempos me dividindo entre a coluna social e a editoria de Cidades, passei a fazer mais matérias sobre o Patrimônio Histórico de Fortaleza e fui convidada também a integrar uma equipe de reportagem que investigaria a situação de tombamento e conservação dos prédios históricos pelo interior do Estado. Eu ficaria com a Região Metropolitana de Fortaleza e meus colegas, com as regiões do interior do Estado.
Como moro em Caucaia, escolheram a minha cidade para começar as investigações. Minha principal fonte foi o padre Tula, um sacerdote católico com mais de 50 anos de atuação que conhece a cidade como a palma da mão. Ele foi nosso guia em uma manhã e uma tarde rodando por toda a extensão do município, que é o maior da Região Metropolitana. Caucaia só tem um bem tombado pelo Iphan, a Cadeia Pública, que é do século XVIII, que hoje sedia a biblioteca municipal. Além dela, tem a Igreja de Nossa Senhora dos Prazeres, que conserva o estilo de 1920, embora tenha o seu alicerce erguido pelos indios da época das vilas e a estação ferroviária, também do início do século XX. O restante das edificações antigas são particulares e em locais de difícil acesso. A maioria sequer é mapeada.
Entre as edificações que conhecemos fora da zona urbana, estão as ruínas de quatro estações ferroviárias, que funcionavam praticamente dentro de fazendas de pessoas importantes do município, uma capela em um lugar ermo, dos anos 1890 e outra dentro de uma fazenda de café, na Serra de Caucaia, que disseram ser da primeira metade do século XIX, ainda com uma senzala, todas fechadas à visitação e que só pudemos entrar por conta da autorização do padre Tula, que é muito conhecido na cidade.
Depois desse dia, em que foram feitas muitas fotos e vídeos, aguardei a data em que eu visitaria Aquiraz, que é uma das cidades mais preservadas. Depois de bem um mês esperando, o projeto gráfico do jornal mudou, algumas pessoas da equipe foram demitidas e a reportagem foi pra gaveta. Mas eu guardei tudo isso na mente, embora não saiba se algum dia isso será revisitado. Eu perdi todas as minhas anotações na mudança e não faço ideia de onde estejam esses lugares. Se alguém conhecer, me avisa? Sei que uma das famílias importantes onde visitei a casa antiga é a da Vera Costa. O vilarejo, um distrito de Caucaia em que não recordo o nome, parecia parado no tempo. Estava na festa do padroeiro e até parque de diversões com Espalha Brasa tinha. Me senti nos anos 1980, embora esse ano fosse 2013. Qual a sua relação com o patrimônio histórico? Qual prédio carrega uma parte das suas cidades invisíveis? Essa Caucaia de padre Tula ficou gravada na minha coleção.
Publicado por Kelly Garcia em 22.08.20
Sobre galinhas, cidades e travessuras
Eu sei que vocês me pediram para eu contar das cidades invisíveis da minha avó Maria. Mas, procurando nas lembranças, percebi que se tem uma coisa que ela não fazia era viajar, nem presencialmente, indo para outras cidades e nem na imaginação. Como uma mulher acostumada às coisas práticas, ela não era de muitas conversas, nem de ficar relembrando o passado, festas das épocas de jovem ou coisa assim.
Com ela, aprendi que se eu pegar os pintos da galinha, vou sofrer as consequências. Na verdade, ela me disse isso, mas eu teimei e a galinha me bicou perto do olho. Também sempre a ajudava a alimentar as bichinhas. Ainda desse universo dos galináceos, aprendi quem eram os pixilingas, porque de tanto ela lidar com as galinhas, acabou com alguns na cabeça. Em dias de tédio, ela pedia para eu procurar. Eu gostava tanto de mexer naqueles cabelinhos ralos, todos muito pretos e lisos! Com 70 anos, ela ainda tinha poucos fios brancos, diferente da minha avó Francisca, totalmente grisalha desde que eu me entendo por gente.
O nariz grande e adunco e a fartura de carnes parece que acebei herdando. Embora o meu seja uma mistura dos muitos narizes grandes de todos os meus parentes. Infelizmente, todos tinham essa característica. Era muito difícil que o meu fosse menor.
Além de mim, a minha avó Maria tinha uns 90 netos ou mais. Na verdade, eu nunca soube a real quantidade porque sempre era atualizada. De filhos, ela pariu 16. Restaram 14 que se tornaram adultos, dois morreram bebês. Meu pai é o caçula.
Cearense da Jijoca, como todas as mulheres simples das cidades pequenas, ela levantava junto com as galinhas, antes do Sol nascer. Eu, nascida e criada na cidade, quando me levantava ali pelas seis horas da manhã já a encontrava em plena atividade. O café estava na mesa, as tapiocas no prato. Quando eu, meus pais e meus tios da cidade íamos para lá, éramos tratados como pessoas muito importantes. As redes muito alvas e rústicas tinham um cheiro bom, tinha sempre pão, margarina, frango ou carne no almoço. Aqui, acolá, um doce de caju, goiaba ou de mamão com coco. Para não encardir as redes, todo mundo tinha que lavar os pés muito bem antes de dormir. Como minha mãe era a única nora paulista e não dormia de rede, minha avó comprou uma cama especialmente para ela dormir quando ela veio conhecer a família. Essa cama ficou lá até depois da partida dos meus avós. As coisas eram feitas para durar.
Além dela, naquela casinha que ainda resiste, embora não pertença mais à nossa família, moravam o meu avô Doca Ribeiro, que na verdade se chamava Raimundo Nonato de Oliveira, e o meu tio João, que era solteiro.
As histórias que a vó Maria gostava mais de contar era das travessuras dos filhos mais novos, inclusive o meu pai. Dele, ela sempre dizia que era muito fraquinho e magro. Só depois que ficou forte. Além daquela foto pintada tradicional do casal, em destaque na sala, era do meu pai o outro retrato grande, em moldura decorada, com as bochechas muito rosadas. Era costume dela colocar meu pai e meu tio Lino nas pernas dela já adultos e pais de família quando eles a iam visitar. Meu pai teve paralisia infantil entre um e dois anos de idade. Entretanto, como a sequela era muito pouca, ela nunca admitiu que tinha sido a doença a limitar um pouco os movimentos do braço. Para ela, era culpa de um pisão que uma das filhas tinha dado nele, durante a noite, enquanto estava tudo escuro.
Assim como a vó Francisca, minha vó Maria também não gostava de sair de casa e nem de ir pra igreja. Já meu vô era o encomendador oficial de todos os mortos. Era o celebrante de todos os domingos. Quem tirava as novenas. O peso dela era meio limitante e depois de uma queda, ela ficou mais cuidadosa com os caminhos e evitava os perigos. Embora comesse pouco, era uma daquelas velhinhas redondas e baixinhas. Costumava comer em uma bacia, dizendo que era para não ter fastio, sentada no tucum de corda da cozinha. Fecho os olhos e vejo direitinho a cena.
Como ela tinha uma multidão de filhos e netos, ganhava muitos presentes, como colchas de cama, toalhas de mesa, louças, vestidos, redes. Essas preciosidades, ela guardava trancadas em um quarto miúdo, ao lado da camarinha com apenas duas redes e um pote, que era o quarto simples do casal, entre a sala e a cozinha, pelo qual durante o dia todos passavam. Nesse quarto com chave, onde ela guardava seus tesouros, só ela entrava. Eu mesma nunca consegui descobrir os seus mistérios.
Meu tio João morou com meus avós desde que voltou de São Paulo, um pouco antes do meu pai, nos anos 1980. Ele, por ser muito sozinho, desenvolveu uma depressão profunda que o levou definitivamente num dia de eleição, em outubro de 1998. Ele e minha avó Maria eram muito ligados um ao outro e ele costumava brincar que quando morresse, viria buscar sua velhinha. Foi o que aconteceu. Em dezembro desse mesmo ano, ela caiu doente. No último dia de 1998, ela faleceu.
Desde esse tempo, a passagem de ano pra mim ficou marcada pela lembrança da sua morte. No caixão, ela, com um vestido azul, parecia dormir, embora seu nariz tivesse ainda maior. Por causa dela, acompanhei o primeiro e último enterro de pessoa querida até hoje. Foi um dia muito triste, quando descobri que meu pai, sempre um poço de brincadeiras e alegria, também tinha lágrimas.
Nessa virada de ano, em 1998, peguei pra minha vida evitar sempre os enterros e velórios. Prefiro ter a imagem da pessoa viva na mente. Dessa maneira, os únicos entes queridos de quem avistei os rostos no caixão foram mesmo esses meus dois avós. O meu avô Doca Ribeiro ainda ficou por aqui mais dois anos e partiu em 2000. A velha casa do Córrego do Urubu foi vendida. O dinheiro, dividido entre os 14 irmãos. Ainda segue de pé e conservada no caminho para a Lagoa do Paraíso, em uma encruzilhada. Do tronco mais antigo, dos filhos de Doca e Maria, ainda restam 11 irmãos. Seis moram em Jijoca, um em Amontada, outra em Bela Cruz, outro em Camocim e mais dois em Fortaleza.
Assinada por Kelly Garcia em 16.08.20
As cidades de sonho da minha avó Francisca
Essa semana, passando pelo Facebook, dei de cara com uma lembrança de um texto antigo de uma prima que adotei , a Maria Goreth Kling David, que me incentivou a escrever memórias. O marido dela é primo do meu avô espanhol e nosso encontro me mostrou cidades que pretendo descrever por aqui posteriormente. Nesse belo texto, ela contava sobre suas queridas lembranças de sua avó de Petrópolis, do seu delicioso pão com manteiga, biscoitos e um edredom de pena de ganso que aquecia suas visitas.
Casa de vó é mesmo um lugar mágico. Isso quem tem avós conhece bem. Por minha avó materna, Francisca, Lavorato de solteira e Garcia de casada, que era de São Paulo, eu era muito mimada por ser neta única. Como eu morei vizinho à sua casa até quase completar seis anos, lembro de pedir para minha mãe ou meu tio para me passarem pelo muro baixo para que eu pudesse compartilhar da solidão da minha avó.
Ela ficou viúva pouco tempo depois de eu nascer e morava com meu tio. Não era de ter amizade com ninguém, saía de casa apenas para comprar frutas e legumes na feira ali pertinho, não ia nem á igreja. Vivia reclusa, falava sozinha e travava uns diálogos que deviam ser bem engraçados porque ela ria alto nessas conversas e fazia suas orações incompreensíveis alternando com essas conversas solitárias. Nem de televisão e rádio, ela gostava.
Então, quando eu ia pra casa dela era aquela festa. O prato que eu mais gostava eram suas batatinhas fritas, que ela cortava em rodelas e fritava no óleo. Às vezes, queimava um pouco nas bordas, mas ainda assim era bom. Posso sentir o gosto agora mesmo, ainda que tenha passado mais de 30 anos desse tempo. Ela acompanhava essas batatinhas apenas com arroz e feijão. Tudo tão simples. E era tão perfeito.
A vó Chica também mantinha suas tradições de neta de italianos, com as macarronadas aos domingos. A família pequena só era composta por ela, os dois filhos e eu. Meu pai preferia ficar em casa, estudando nos seus cursos do Instituto Universal ou fazendo outras coisas. Meu irmão ainda não tinha nascido.
O molho grosso era bolonhesa, com muito pimentão, cebola. Saboroso como nunca aprendi a fazer, embora faça aqui em casa com as receitas que aprendi na internet. Já a massa era algumas que nem vejo muito por aqui: farfalle, búzio, capeleti. Aqui em casa, sempre compro Penne. Por causa desse tempo, custei a aprender a gostar do macarrão cearense sem molho, que aqui é servido refogado na manteiga, junto com o arroz e feijão de todo dia.
Para mim, sua única neta, ela gostava de conversar sobre suas lembranças do tempo de moça. Ela casou tarde, aos 35, em um tempo que, em geral, as mulheres se casavam antes dos 25. Trabalhou muito, de florista, em fabrica e até na empresa aérea Vasp. A essa altura da vida nem esperava mais se casar. Achava que ficaria mesmo pra titia, até que um espanhol bonito lhe foi apresentado por uma das suas amigas da fábrica. Meu vô Pedro Luiz também era experiente como ela, além de muito trabalhador e ela não resistiu aos seus encantos.
Do Carnaval e das eleições de Jânio Quadros e Getúlio Vargas, ela também sempre falava. Por ela, conheci algumas marchinhas de Carnaval e a sua preferida era a que tinha seu apelido, a Chiquita Bacana. Comigo, ela dançava, abria as velhas caixas de fotos, os álbuns e treinava a tabuada, que era o seu termômetro de memória.
A casa dela era diferente das outras. Os móveis todos antigos, a velha TV Telefunkel de duas portas e muitos botões que não funcionava, mas permanecia como enfeite. Na lavanderia, uma grande e pesada máquina de lavar Brastemp, também sem funcionar, o telefone azul de discar rodando...
Depois de minha ida definitiva para o Ceará, minha avó ficou muito abalada. Seu coração enfraqueceu e ela implantou um marca-passo. Anos depois, levou uma queda que a fez temer sair de novo de casa. Ficou mais esquecida das coisas simples. Ao retornar para sua casa, para visitá-la dois anos depois, já a achei diferente.
E de dois em dois anos, eu vi minha avó Chica cada vez mais se distanciando da realidade e se aproximando do mundo dos sonhos e lembranças bagunçadas. Até que perdemos totalmente o contato por longos 16 anos.
Eu nunca esqueci suas batatinhas fritas e suas canções e, já mãe, bati o pé que queria rever minha avó e apresentar sua bisneta. Consegui o novo endereço e bati lá sem avisar. Foi um encontro emocionante e dali a alguns dias, festejamos todos juntos, eu, minha mãe, minha filha e meu irmão, junto ao meu tio e sua esposa, esse reatar dos laços, em 2011.
Minha vó Chica, aos 84 anos, estava definitivamente no seu mundo particular. Embora estivesse viva, não se recordava de mais ninguém. Todas as mulheres que avistava, para ela se chamavam Luzia, uma antiga vizinha de quem ela nunca gostou e todos os homens eram Edison, que é o nome do meu tio, que cuidou tão bem dela até a sua partida.
Suas conversas se alternavam entre as lembranças de criança e sempre fugia dos seus irmãos mais velhos, todos já mortos, de quem ela tinha medo de apanhar por alguma travessura. E, claro, ela não reconheceu nem a mim, meu irmão ou minha mãe, passados tantos anos.
Nesse dia de julho de 2011, ao me despedir, tentei ver se ela ainda lembrava de sua canção preferida, a marchinha da Chiquita Bacana. Comecei os versinhos que eu lembrava: “Chiquita Bacana/ Lá da Martinica/ Se veste com uma casca de banana nanica... Ela então, de pronto completou o restante com sua vozinha rouca: “Não usa vestido/ Não usa calção/ Se veste com a roupa do seu coração”...
E com essa bela lembrança eu voltei pra casa no Ceará. Menos de um mês depois dessa visita, ela partiu definitivamente pra junto dos seus irmãos mais velhos e do meu avô Luiz. Fiquei com esse presente lindo da despedida, pro resto da vida, que mareja os olhos e aquece o coração. Te amo, vó Chiquinha!
Publicado por Kelly Garcia em 08.07.20
Carta para meu filho de cinco anos
Meu amorzinho, dia 29 de julho você fez cinco anos. Quantas cidades visitamos juntos? Poucas de verdade e muitas imaginárias e invisíveis. Diferente da sua irmã, que com sua idade já tinha viajado de avião seis vezes e outras centenas de vezes para Fortaleza, de trem e de ônibus, além de ir para a casa do seu avô na Jijoca, todos os anos, você conhece apenas o carro e o ônibus e esse último, usado poucas vezes.
Sua vinda me forçou a uma tranqüilidade que eu não estava habituada. Foi difícil acalmar esses meus pés já acostumados aos transportes diários, assim como a minha mente, que era habitada por pelo menos cinco assuntos diferentes mudando a cada dez minutos.
Nessa calmaria, cultivamos juntos - eu, você e sua irmã – um cotidiano simples, entre desenhos, pinturas, livros, comidas feitas em casa e um jardim improvisado. Depois de assistir muitos vídeos toscos de desenhos mal feitos no youtube e na netflix, minha outra ocupação era sempre te impedir de morrer ou ficar sequelado.
Você puxou o fio do ferro de engomar e ele caiu bem perto do seu rosto quando tinha pouco mais de um ano. Consegui livrar de ele queimar os seus olhos ou a bochecha. No ano seguinte, você disse que ia buscar seus lápis e queimou toda a palma da mão ao testar se ele era quente mesmo, enquanto eu te esperava voltar do quarto. Essa travessura não durou três minutos, tenho certeza. Com quatro anos, você subiu na estante e engoliu a tal da bateria de lítio enquanto em tomava um banho de cinco minutos e eu pensei que dessa vez não tinha escapatória e Deus te levaria mesmo. Mas não foi sua hora, você passou seis dias com ela na barriga e mesmo assim não teve nenhuma grande conseqüência, graças a Deus, que teve misericórdia todos nós e ouviu as orações de tanta gente que pediu pela sua saúde.
Além de procurar a morte, você tem uns elogios muito engraçados. Minha barriga saliente, meu queixo duplo, que eu não gosto e tento esconder, você diz serem bonitos e fofinhos. Além de ter descoberto e incentivado o meu dom para lavar o banheiro, que você considera muito especial, não sei porquê.
E agora, você encasquetou que quer visitar os alienígenas! Todo dia me acorda com esse desejo. Não tem quem tire ele da sua cabeça. É o jeito desenhar enquanto o Elon Musk não populariza as viagens espaciais.
Aos cinco anos, com minha experiência de mãe, estou no aguardo de dois ritos de passagem que sei que com você serão diferentes de mim e da sua irmã. Não sei qual dos dois irá acontecer primeiro: se cair o primeiro dente de leite (ainda não amoleceu nenhum) ou ler a primeira palavra sozinho. Sua irmã perdeu o primeiro dente aos quatro anos e leu com quase seis. Vamos aguardar como será com você, João Nuno.
No seu aniversário, que a gente comemora sempre com os de casa mesmo, dessa vez teve letreiro desenhado pelo vovô Herculano e balões pregados na parede com fita gomada. Não teve nenhum personagem, nem lembrancinha. Foi bem simples, o que me fez refletir se você não merecia mais capricho dessa sua mãe que não gosta muito de festa. Mas, vi você correndo e gritando, fazendo sua própria festa com as primas. Acabei achando que você não estava muito preocupado com essas coisas, embora eu sempre me envergonhe do que eu não faço. Quem sabe no ano que vem? Vamos ver...
É bom estar do seu lado, mesmo que você seja grudento e teimoso e quase me enlouqueça com dezenas de chamados por dia, como qualquer filho normal. Você é uma criança e criança dá trabalho. Eu sei. Longe de eu te achar um pequeno príncipe ou coisa assim. Você é apenas um pequeno pecador, como eu, mas em tamanho menor. Mas Deus tem me ensinado tantas coisas com você! Ser mais paciente, observadora e rápida, principalmente, senão você já teria morrido. Que Ele mesmo te atraia, como me atraiu para si. E lhe dê crescimento em estatura e sabedoria e o faça o homem que Ele planejou, não eu.
Vou pegar emprestado as palavras da mestra das crônicas, Clarice Lispector, de quem tenho aprendido lições nesses dias, com aquele texto super conhecido, o das três descobertas. Entretanto, vou fazer um acréscimo importante. Eu também nasci para amar os outros, criar meus filhos e escrever. Mas antes de qualquer uma dessas três vocações, nasci para adorar meu Criador, que me proporcionou essas três dádivas e pode retirá-las quando quiser, porque é soberano e governa sobre todas as coisas, como a vida e a morte. Isso pode impedir a escrita e gerar a amargura que nos impede de amar os outros. Os filhos irão embora um dia, para suas próprias vidas. Também não são eternos e podem morrer. Só o Criador permanece. Para sempre.
Parabéns, João Nuno, pelos seus cinco anos!
Publicado por Kelly Garcia em 01.08.20
Carta para Milton Dias sobre a Praia de Iracema e um Dragão
“Sou outro/em mim,/memória/da cidade/que se sonha/outra vez/na claridade.”
Adriano Espínola - Beira Sol
Caro Milton Dias, andei relendo suas crônicas sobre Fortaleza e dei de olhos com as da Praia de Iracema esses dias, quando procurava inspiração para as minhas. Sem ver o mar há vários meses, presa nessa pandemia e nessa espiral de muito trabalho, só mesmo os livros para me darem alguma idéia.
Você não sabe o que é nada disso, claro. Nasceu em 1919 e morreu no ano em que eu nasci. Computador ainda não era popular e essa história de tudo à distância era coisa do desenho dos Jetsons. Ainda não temos carros voadores, mas o restante deu tudo certo, principalmente com essa pandemia em que um vírus colocou todos para dentro de suas casas.
Escrevo para te agradecer por terem juntado uma parte de todas as suas crônicas em Relembranças, esse livro que soube da existência pela obrigatoriedade em lê-lo para o meu vestibular de 2000, duas décadas atrás. Quando desbravei suas 345 páginas, descobri um amor potente pelas crônicas, principalmente pelas suas, memorialísticas, que mostram uma cidade que morreu, em grande parte.
Interessante que você fala do mar da Praia de Iracema como se nunca tivesse se banhado em praia melhor.
“Ah, o alumbramento maior foi o mar, o verde mar da Praia de Iracema, que me pegou de paixão à primeira vista, ainda agora duradoura com a mesma intensidade. Este dito mar já me afogou, já me devolveu e eu não me cansei, não canso, não cansarei nunca do seu amor, que tem a violência e a grandeza das coisas ternas. Outros mares tenho visto, outras ondas freqüentei, outros sais me banharam o corpo, outras marés me seduziram, outras espumas me chamaram, mas não, nenhum mar é como este nosso, pedaço de verde líquido, agitado, murmurante, cantante, soluçante, o verde mar de Iracema, que eu me acostumei a ver, a amar, a ouvir, que me recebe, me atrai – somos tão pegados, tão amigos, somos como irmãos, mais aproximados do que o pedaço de chão que me viu nascer – verdade seja dita”
Eu mesmo que nunca me banhei por lá, seu Milton. A coragem, eu perdi ao ver uma grande boca de lobo que despeja água da chuva e os esgotos clandestinos. Pra mim, acho bem mais seguro molhar os pés já bem longe de onde poluem o mar e não me arriscar a pegar uma micose ou “pano branco”. Talvez em 1969, quando você escreveu essa crônica, a cidade fosse bem diferente e as praias, certamente, mais limpas. Apesar de não ter coragem de tomar banho na Praia de Iracema, assim como você, sou pegada com essa Fortaleza toda, bem mais do que o pedaço de chão repleto de concreto e asfalto que me viu nascer, São Paulo.
Pois é, seu Milton. Sei que a maior parte dos meus conhecidos que já estão entre os 70 e os 80 foram seus alunos de francês. Eu nunca fiz aulas e nem consigo imaginar muito como eram as suas. Mas, prometi aos leitores que essa crônica seria sobre o Centro Dragão do Mar. Acho que se você fosse vivo, não iria gostar nenhum pouco. Em outra crônica sua, te vi meio escandalizado com os batidões dos anos 1960, em crônica dedicada ao seu velho pai.
“Agora, o mesmo percurso, é cheio de restaurante boate. Ah, sim, boate? É uma sala pequena, escura, cheia de fumaça, com música alta, muito barulhenta, bebida cara e um bando agitado de rapazes e moças cantando e dançando aos pares umas danças novas, por nome iê-iê-iê. É ver um grupo de gente atuada em terreiro de macumba”, você disse.
Se era assim com a Jovem Guarda, o que você diria das nossas músicas eletrônicas no Órbita e naqueles galpões vizinhos, o Armazém 44? E do Nirvana no Domínio Público? Mas, tudo bem, você era um homem de outros tempos. Respeito isso.
No meu Dragão do Mar, que eu jurava ter sido construído no início dos anos 1990, mas de verdade só o foi em 1999, apreciei muito da cultura e arte que ainda hoje me povoam a mente. Na sua praça verde, seu Milton, ao que me parece, construída mesmo em cima da velha casa do Mister Hull, homem importante da construção das ferrovias e cônsul, que mantinha o tradicional hábito do chá da tarde mesmo em Fortaleza, conheci o finado Cordel do Fogo Encantado, comecei a conquistar meu marido, no show da Nana Caymmi e ainda fui com ele e minha filha mais velha na apresentação da Fernanda Takai especial para crianças. No anfiteatro, minha versão mais jovem e rockeira dançou mais que esse povo do ieieie que te causou escândalo, ao som dos Renegados e do Arnaldo Antunes.
Embaixo do Planetário Rubens de Azevedo, nomeado assim por causa do irmão do Nirez (você conheceu?) e único lugar do equipamento cultural que nunca entrei, eu esperei o dia amanhecer algumas vezes para pegar o meu ônibus pra casa. Por lá, também me abriguei da chuva e curti uma pequena ressaca, depois do meu casamento civil.
Nas salas do Cine Unibanco, passei um ano inteiro conferindo tudo que era filme normal e de arte, depois de ganhar meu passe livre por ser jornalista. Nunca tinha me sentido tão importante na vida, embora o único filme que tenha ficado vivo na memória tenha sido o Lavoura Arcaica, com Selton Mello e algumas cenas bem toscas.
Nas exposições do Museu de Arte Cearense, o MAC, eu adentrei trabalhando num domingo, fiquei admirada com tudo e prometi retornar com todos de casa, o que ainda não aconteceu. Nessa mesma tarde de plantão, ainda vi como era legal o Pintando no Dragão, que reunia uma multidão de crianças com guache e folhas nas mãos. Uma coisa linda de ser ver. Nem sei quando irá retornar.
No Café Santa Clara, o mais sofisticado que eu conhecia, deixei muitos 50 reais por dois capuccinos e tapiocas recheadas. Eu acreditava que valia muito à pena apenas por estar naquele ambiente perfumado, decorado e chique. Muitos contos perdidos meus tiveram esse café como cenário imaginário. Hoje, só o que tem é café legal nessa cidade, embora eu continue conhecendo apenas esse. Quantos passeios e fotos têm a ponte vermelha de ferro como cenário? E da Livraria ao Livro Técnico, com seus livros caríssimos de arte e suas instalações ao lado do banheiro que já era bastante malcuidado nesse tempo?
O projeto, como muito do que Fortaleza é hoje, era de Fausto Nilo e Delberg Ponce de Leon. No tempo da normalidade, de antes da pandemia, o abandono estava tomando conta de tudo. Como o abandono pode tomar conta de algo? Ora, é só não ter reforma, os arredores não terem segurança e terem deixado de ser alagados com cultura. Não é segredo pra ninguém que a Praia de Iracema há mais de dez anos, tenta respirar de novo o que foi no passado, sem conseguir. O que temos hoje por lá é muita insegurança e feiras de roupas. A José Avelino foi tomada por boxes e barracas. Os trilhos do bonde permanecem lá e ninguém nem sabe o que são. E nos arredores da antiga Ponte dos Ingleses tem gente usando droga a qualquer hora do dia ou da noite.
Como estarão depois da pandemia esses lugares? Eu ainda não me arrisquei a ver. Se passar por lá, aviso.
Peço desculpas, Milton Dias, por te contar tanta desgraça sobre a tua Praia querida.
Quem sabe algum dia isso mude. Quem sabe?
Publicado por Kelly Garcia em 26.07.20
Os sabores e amores da Praia de Iracema
Conheço pouquíssimas pessoas que não tenham pelo menos uma história de amor com a Praia de Iracema como um dos cenários marcantes. Não é à toa que hoje ela é conhecida como Praia dos Crushes. Eu tinha um velho hábito de apresentar cada um dos meus à Ponte Metálica, a que hoje ainda está em reforma. Ela parecia assentir, aprovar com a espuma dos seus verdes mares bravios, suas ondas de ressaca que já derrubaram tantas bangalôs imponentes e barracos simples, após a construção do Porto do Mucuripe, nos anos 1940. Ainda hoje, suas ondas continuam esse trabalho contínuo, de tentar atravessar a barreira das pedras, de quando em quando substituídas, ali onde era o antigo Restaurante Sobre o Mar de Iracema. Só observar em janeiro e agosto, nos tempos em que suas ondas crescem e tem mais força.
Sei que já foi Praia do Peixe, pelo mau cheiro das vísceras dos pescados dos jangadeiros que ali moravam e já tratavam sua mercadoria na beira do mar. Mudou o nome com a chegada dos primeiros ricos, para construir seus bangalôs de veraneio. Alguns poucos ainda permanecem de pé, como o que pertence à família Jereissati, hoje Boteco, pertinho do espigão da Avenida Rui Barbosa.
O primeiro de todos os bangalôs, dos anos 1920, a Vila Morena, já foi o Estoril, um dos mais longevos bares que reuniam a boemia e, antes, era o cenário dos encontros entre as moças da sociedade e os soldados Norte Americanos, na época da guerra. As cearenses que caíam nos encantos dos americanos e ficavam faladas eram as Coca-Colas, que até viraram cordão de carnaval por puro deboche depois. Apesar de passar em frente nas minhas visitas poucas à Ponte Metálica, que na verdade é a Ponte dos Ingleses, só fui conhecer mesmo já repórter em uma das muitas tardes de sábado, para cobrir um baile de Carnaval infantil e ver um dos entardeceres mais lindos da minha vida, ali de frente pras pedras.
Por aquelas pedras já tinha andado antes, em uma das tentativas de requalificação da Praia de Iracema, tentando tomar ares novos e maresia, grávida de quase oito meses do primeiro filho. Foi curioso ver que até os gatos gostavam de olhar o mar verde esmeralda e comer suas caças ali em frente.
Quando o porto do Mucuripe foi construído, muitas edificações foram levadas pela maré. E o bairro começou a ter mais restaurantes e a se firmar como área de lazer. Em um desses restaurantes, a sociedade marcava ponto - o Lido, que tinha donos franceses. Foi lá que a lagosta passou a ser prato de rico e onde nasceu uma das invenções mais cearenses que conheço: o peixe à delícia.
Conversando com uma das freqüentadoras, Irene Mota, ela se recordou que o dono fazia até mesmo passeios de barco com clientes selecionados. Em um desses, reunindo algumas pessoas da sociedade, muitos não se deram bem com o balanço e passaram mal. Eu também passaria. O mar sempre me embebeda e dá enxaquecas terríveis.
Outro que marcou época foi o Panela, no Edifício San Pedro, gigante que permanece de pé, mesmo sem uso, não sabemos ainda por quantos anos. Nonato Luiz era um dos músicos que por lá faziam suas apresentações. O restaurante famoso fechou suas portas, o prédio ainda funcionou como residência por alguns anos. Já o Lido foi derrubado e construíram um edifício em seu lugar.
Não alcancei o auge de nenhum desses dois, só acompanhei pelas lembranças dos outros, como as que vi no blog Fortaleza Nobre e nas poucas conversas com a dona Irene. No meu tempo, o que havia de mais refinado era mesmo o Sobre o Mar de Iracema. Quantas vezes não sonhei em conhecer suas iguarias, ali de frente para o mar, em tempo de cair por cima daquelas ondas.
Outro que não cheguei a conhecer, mesmo com toda a propaganda das pessoas, foi o Cais Bar. Meus tempos de rebeldia me levaram para lugares menos boêmios. Minha cena era mais underground. Eram os covers do Nirvana, do Guns, do Led e do Queen, ali na José Avelino, onde dantes andou o bonde. Tinha festa pra todos os gostos musicais. Reggae, Rock, Música Eletrônica, samba. Os Sabores eram deliciosos também. Nunca esqueci as sangrias, pizzas e chops de vinho do Amici´s.
Mas o Dragão do Mar e o seu entorno rendem uma crônica só sua. Pode ser semana que vem?
Publicado por Kelly Garcia em 18.07.20
Minha estação João Felipe
É entre lágrimas que escrevo essa crônica. Não sei se pela trilha sonora, do concerto número 2 para piano do Sergei Rachmaninoff ou mesmo da dor que eu reavivei por lembrar que minha Estação João Felipe não existe mais. Não com seu uso de antes. Passei por ela faz uns quinze dias e, cercada de tapumes, ela estava sem o telhado. Senti essa dor fina quando soube que o trem tinha feito sua última viagem até lá, há alguns anos, quando anunciaram que teria outro uso, como um grande equipamento cultural.
Assim como para muitos cearenses, que viriam a ser ilustres ou não, a centenária Estação Ferroviária João Felipe foi minha porta de entrada para Fortaleza. Como já disse aqui, eu sempre morei na Região Metropolitana, no município de Caucaia. Meu destino, por mais de 20 anos, foi a última parada antes do fim da linha na Caucaia, a estação Araturi. Daria para vir pra Fortaleza de ônibus? Sim. Mas não foi essa a escolha da minha turma de amigos. Acredito que até hoje o trem seja bem mais barato que o ônibus. Nos meus tempos de adolescente, o preço chegava a ser três vezes menor. E assim, numa tarde de não sei qual dia da semana, eu viajei sem meus pais de trem para comprar folhagens para os arranjos florais que eu estava aprendendo a fazer. Fui até a também centenária Cadeia Pública de Fortaleza, onde funciona a Encetur, melhor lugar para encontrar esse tipo de produto. Esse belo lugar também fazia parte das minhas idas ao Cine São Luiz, tempos depois, porque a mãe de um dos integrantes da minha turma de amigos trabalhava lá.
Em 1996, os trens não tinham ar condicionado, obviamente. O projeto do Metrofor só seria anunciado no ano seguinte. Os trens tinham vagões ainda dos anos 1970. Muitas portas não fechavam mais. Outras, sequer existiam, o que facilitava a entrada das temidas pedras, arremessadas por crianças e adolescentes que moravam próximos dos trilhos.
Nessa época, uma legião de pessoas usava o trem para garantir o sustento. Pedintes de todas as idades, vendedores de jujubas, pastilhas, bulins e até de pomadas medicinais dividiam espaço com a multidão de usuários do transporte público, além de pregadores do Evangelho de várias denominações e alguns artistas populares. Os principais artistas eram dois deficientes visuais, que atuavam separadamente. Uma mulher que tocava flauta. O outro, um homem que cantava, tocava gaita e pandeiro. Ambos estavam sempre atualizados dos sucessos do momento, mas também utilizavam muito o Roberto Carlos no seu repertório. Depois que esse tipo de show foi proibido nos trens, os dois migraram para os ônibus. Os que eu usava, principalmente. E de certa forma ainda fizeram parte do meu cotidiano por vários anos, como se fosse para que eu não me esquecesse disso.
Nos meus tempos de escola, quando estudei no Colégio 7 de Setembro, só usava o trem para o lazer. O ônibus me dava mais conforto porque me deixava na porta e tinha um intervalo menor entre as viagens, o que evitava atrasos. Já na faculdade e, depois, como repórter, o trem foi o meu principal meio de transporte. Meu primeiro estágio era quase vizinho à antiga estação, na Delegacia do Trabalho. Foram talvez mais de dez anos de viagens diárias.
Eu conseguia enxergar a magia diferente que tinha aquela Estação. Para a maioria das pessoas, o desconforto era o ponto principal. Tenho certeza de que a maioria só escolhia o trem por ser mais barato. Quem andou de trem por aqui certamente não se esquece de ser praticamente vomitado pela multidão para dentro do vagão assim que as portas se abriam e nem da corrida em busca de um lugar nos bancos desbotados, seguida de uns sorrisos moleques de alívio, ao finalmente conseguir sentar, para quem era rápido o suficiente, claro.
Entretanto, nas longas esperas de 40 ou 50 minutos de quando eu perdia o trem pra casa, eu me perdia em mim e nas divagações de como aquilo tudo era 50 anos antes ou mesmo em tempos mais antigos. A Estação foi fundada ainda no Império, em 1880. São 140 anos de histórias passadas naqueles assoalhos vermelhos, que devem ter tido outras cores e desenhos, claro.
Embalada pela MPB das tardes da Rádio Tempo, que era transmitida pelos autofalantes da velha estação, eu percebia que estava sim na atualidade. Mas, bastava olhar ao redor para me transportar para os tempos em que a velha estação recebia os trens do interior. A inspiração vinha ligeira em alguns fins de tarde, bastava olhar ao redor, no rumo de casa ou mesmo para os galpões desativados. Quantos encontros e desencontros aquela estação teria presenciado? E despedidas? Foi por lá que milhares retirantes chegavam nos anos de seca para os Campos de Trabalho. Uma tristeza ter lido isso.
Ao iniciar minha trajetória como repórter, uma das minhas primeiras matérias assinadas foi sobre esse trajeto longo, cheio de personagens pitorescos, entre a Vila das Flores, em Maracanaú e Caucaia, com a Estação João Felipe no centro do percurso. Isso faz mais de 15 anos, mas lembro bem de ficar atenta igual a menino pequeno, olhando pela janela para apreciar cada detalhe das paisagens nunca vistas antes para aqueles lados da cidade. Afinal, eu só conhecia do Centro para Caucaia. Nunca tinha ido para o outro extremo da linha. O fotógrafo que me acompanhou, o Tuno Vieira, muito experiente, registrou tudo e chegou, bem enfadado como eu na redação em pleno sábado, depois de uma manhã inteira andando de trem. O trajeto completo demorava mais de duas horas. Imagine o tempo que seria gasto de ônibus, com tantos engarrafamentos pela cidade?
No sacolejar do trem nessa década de uso, me rendeu muitas leituras. Até hoje, não entendo o porquê da velocidade maior da leitura e menos enjoo ao ler nesse ambiente tão barulhento. Só interrompi minhas viagens ferroviárias ao ser finalmente atingida por uma pedrada, nos anos 2000. Os trens já tinham vagões mais novos, a administração era do Metrofor, mas as portas abertas continuavam permitindo esse tipo de acidente. O impacto da pedra foi na minha aliança, que ficou marcada e o meu dedo anelar, ferido. Isso protegeu minha filha mais velha, de dois anos, que viajava comigo. Livramento que até hoje agradeço a Deus.
Depois que a estação mudou para o espaço vizinho ao Cemitério São João Batista, perdi ainda mais o gosto pelo transporte. Desde esse tempo, estou de luto pelo fim da minha estação. Tem uns seis anos que iniciaram essa obra, que transformará o prédio centenário em um importante equipamento cultural, com museu, biblioteca, pinacoteca e muitas outras novidades, se integrando até mesmo com os prédios do Panorama Artesanal, de onde avistei o meu primeiro Pôr-do-Sol no mar, em 1996. Não creio que uma obra tão grandiosa fique pronta tão cedo. A certeza que eu tenho é que a Estação João Felipe virou mais um trecho das cidades invisíveis. Isso porque por mais que a restaurem, nunca mais o trem chegará apitando por lá, nem se descerá por aquelas rampas ou compraremos seus bilhetes. Passou essa era.
Publicado por Kelly Garcia em 11.07.20
As livrarias da memória
Numa Pandemia dessas, um dos lugares que tenho mais saudades é das livrarias. É meu tipo de passeio e se eu estiver sozinha, aí é que fica ainda mais divertido. Nem precisa ter tanto dinheiro. Uns 30 reais já estaria de bom tamanho.
Minhas cidades invisíveis são cheias desses pequenos refúgios e foi nelas também que conheci alguns lugares únicos, porque eu fazia parte daquele grupo descarado capaz de ler um livro todo na poltrona e não comprar.
É difícil lembrar com exatidão quando visitei o primeiro lugar onde se vendem os livros. Terá sido em uma banca? Não consigo lembrar. Forçando muito a memória, chego até as primeiras experimentações por esse prazer estranho, bem característico de quem gosta de ler: cheirar os livros novos. E me vejo bem menina, 12 anos, na Livraria Paulinas da Rua Major Facundo, no Centro de Fortaleza.
Entardecer. Depois de ir ao Cine São Luís assistir Missão Impossível, uma passadinha na livraria mais próxima dali, em um tempo que os shoppings ainda não ofereciam esse tipo de roteiro. Entre tantos livros religiosos, identifiquei alguns que minha mãe tinha em casa. Mas, a curiosidade precoce me levou aos livros de aconselhamento para jovens, que incluía recomendações de como fugir de momentos, digamos, inapropriados...
Durante os anos em que estudei no Colégio 7 de Setembro, era a livraria que eu mais visitava. Não sei dizer se o que me levava tantas vezes até a livraria das irmãs Paulinas era a minha participação intensa nas missas e em grupos católicos ou só conhecer aquele endereço livreiro. Depois, comecei a perceber a diferença de preços entre ela e a Paulus, um pouco mais adiante, na Praça do Ferreira e a deixei um pouco de lado. Hoje, é uma pálida lembrança no caminho do Museu do Ceará, que não visito não sei se por covardia ou falta de vontade de relembrar aqueles tempos.
Depois, na faculdade, ampliei as andanças e em uma das greves, conheci a Arte & Ciência, do seu Majela, livreiro dos mais conhecidos em Fortaleza, que ficava na Av. Duque de Caxias, perto do antigo Colégio Cearense. Era lá que eu gastava a minha mesada de R$ 50 semanais, ainda na primeira metade dos anos 2000.
Como era bom passar mais de uma hora garimpando edições, caindo aos pedaços, de autores conhecidos, para economizar e levar o máximo de livros possível. Foi assim que eu trouxe para a estante a antologia poética do Vinícius de Moraes; O caso dos dez negrinhos, em capa dura da Agatha Christie; os dois volumes do Asfalto Selvagem e o polêmico O Casamento, com a recomendação de livro para adultos, do Nelson Rodrigues e o Cem Anos de Solidão, do Gabriel García Márquez, editado pelo Rubem Braga, que eu nem conhecia nesse tempo.
Eu era tão assídua por lá que fiz amizade com os atendentes. E um dos familiares do dono se afeiçoou tanto por mim que selecionava as obras para que eu tivesse mais facilidade para achar o que eu queria, mesmo que eu fosse uma estudante com pouquíssimo dinheiro para gastar.
Passadas décadas desse tempo, ainda sou cliente dessa livraria, que não está mais no Centro e nem sob a direção do seu Majela, mas guarda boas surpresas, como uma edição assinada por Milton Dias, que quero crer que tenha pertencido ao cronista que passou muito tempo no Jornal O Povo, que veio ao meu encontro na minha compra mais recente por lá, há uns três anos.
No meu primeiro emprego como jornalista, também passeei pelo sebo Taberna, conhecido por disponibilizar livros raros. Próximo à Praça da Imprensa, esse era mais sisudo e com preços mais salgados. Lá, comprei a minha série O Tempo e o Vento, do Érico Veríssimo, com capa dura vermelha e letras douradas. Um dos muitos que fecharam com a oferta ampliada de livros pela internet.
E o que dizer das tardes “perdidas” na Livraria Ao Livro Técnico? Nos tempos áureos, a rede estava presente em quase todos os shoppings, além das filiais do Centro e da Aldeota. Quantos livros de gosto duvidoso não li na do Shopping Benfica, no intervalo das aulas na Comunicação... Nas lojas do Centro, eram muitas as edições, principalmente da Agatha Christie, vendidas por apenas R$ 5, quando a loja já estava perto de fechar, no fim dos anos 2000.
Consegui a proeza, inclusive, de fazer meu chá de fraldas no café da também saudosa Livraria Lua Nova, no Benfica. Minha Luiza Garcia, hoje com doze anos, diziam as amigas, tinha nome de escritora e deveria ser saudada nesse ambiente. Tudo foi um charme e acho que o meu foi o único evento desse tipo que o estabelecimento teve.
Uma das minhas recentes descobertas foi o maior sebo de todos dessa Fortaleza, o do seu Geraldo. Depois que aprendi o caminho, devo ter ido lá mais de dez vezes nos últimos três anos. E agora que eles têm Instagram, não deixei de comprar nem na quarentena, porque eles estavam fazendo entrega. Por lá, fiz amizade com um felino siamês que tem o péssimo hábito de urinar nas edições. Por causa disso, na última vez que estive no sebo, antes de fechar por conta da epidemia, não consegui comprar os livros do Érico Veríssimo, todos carimbados pelo gato. Será que foi pela cor vermelha que o gato escolheu?
Com a facilidade da compra on-line e dos sebos virtuais, acredito que continuo sendo uma saudosista. Mesmo que não tenha a disponibilidade de tempo de antes, continuo não resistindo ao ser convidada a ir a uma livraria e, principalmente aos sebos que ainda resistem por essa cidade. Vocês também têm esse hábito?
Publicado por Kelly Garcia em 04.07.20
Os caprichos da loura Fortaleza
*Fotos exclusivas cedidas gentilmente pelo Arquivo Nirez*
Em seu livro As Cidades Invisíveis, o italiano Italo Calvino diz que um homem que cavalga longamente consegue sentir o desejo de uma cidade. Fortaleza, essa mulher loura, desposada do Sol, conforme o muito conhecido poema de Paula Nei, deve ter desejado ser outra, mudar seu jeito de ser como metrópole urbana, atraindo para si da longínqua Milão a família Rossi que, com seus integrantes, de uma forma ou de outra, modificariam a cidade de uma forma profunda por muitas décadas.
Primeiro, o grande empresário Plácido de Carvalho, um homem apaixonado, resolveu criar um castelo único para a primeira Rossi a chegar nessas terras alencarinas, em 1917. Maria Pierina ainda aguarda alguns anos para habitá-lo, o que se dá nos anos 1920. Depois, Natale Rossi, irmão dela, viria a construir, entre outros prédios, o Excelsior Hotel, há quase 90 anos de pé, fincado na Praça do Ferreira.
Após a morte de Plácido, surge a parceria de Pierina Rossi com seu novo marido, Emilio Hinko, que modificaria ainda mais a paisagem da cidade, especialmente depois do ingresso do Brasil na Segunda Guerra Mundial. É criado um novo estilo de morar, em que se valoriza a brisa e se tem a praticidade de um banheiro no interior da residência. Ambas as inovações ideias de Hinko, que passam a ser moda na cidade.
Pedro Rossi, sobrinho de Pierina, foi outro a imprimir sua marca na capital cearense, com muitas edificações com linhas retas, exalando modernidade. Sua longa parceria com Sergei de Castro trouxe a arte para o interior das casas de formas únicas, vide o exemplo da casa da família Rossi Jereissati, projetada pela dupla e mostrada recentemente na série documental Morar Dias, da TV Assembleia, coordenado pela jornalista Ângela Gurgel.
Ainda hoje, os descendentes da família Rossi continuam modificando a cidade. São muitos arquitetos e engenheiros já na terceira geração da família, vocacionada a desenhar e apagar novas edificações pela Fortaleza desmemoriada de hoje.
Essa história veio a mim não como memória sentimental da cidade. Sou pessoa nascida nos anos 1980 em São Paulo. Quando cheguei ao mundo, em 1983, o castelo do Plácido há muito já era pó e em seu lugar estava a Central de Artesanato projetada por Pedro Rossi, com madeira de carnaúba e tijolos aparentes, por ideia da primeira-dama Luiza Távora. Só conheci a Avenida Santos Dumont já adulta e repórter, porque sempre habitei Caucaia e nada tinha a resolver para aqueles lados da cidade. Do castelo do Plácido, eu só conheci algo pelo livro velho e amarelado do memorialista Marciano Lopes, que achei esquecido em uma gaveta, nos tempos que escrevia coluna social. A obra em questão, hoje difícil de achar, era o Divinas Damas, em que ele conta a história de 24 importantes senhoras da sociedade cearense, entre elas, dona Pierina Rossi, com foto já grisalha, aparentando mais de 50 anos.
Ao ler o relato, parecia um dos romances da Lucinda Riley que tinha visto recentemente. Pela história tão bem contada em detalhes, fiquei desconfiada. Das duas, uma: ou Marciano teria romanceado o que houve ou então teve acesso a alguma fonte que conhecia tudo muito de perto. Depois de conversar com o arquiteto Gerardo Jereissati, fiquei com a segunda opção. De acordo com Gerardo, a mãe dele, Rosita Rossi Jereissati, sobrinha de Pierina, escreveu de próprio punho o relato para Marciano Lopes, por isso tantos detalhes, como as lembranças da travessia entre Cadiz e Montevidéo, além de outras minúcias, como a amizade de Pierina com a irmã superiora do Colégio Juvenal de Carvalho, também Pierina, ambas milanesas.
Ainda segundo Gerardo, Pierina tinha muito carinho pelos sobrinhos, que tratava como se fossem seus filhos, já que a única filha da italiana, Zaíra, se casara com um dinamarquês e morava no Rio de Janeiro. Eram muitas as viagens em família e ela sempre levava algum dos sobrinhos consigo. Na sua morte, ainda deixou alguns bens em testamento para eles, além de ser muito amiga da cunhada Nadir, especialmente depois da morte de Natale Rossi, que a deixou profundamente abalada. Seu piano também ficou na famíia como memória sentimental da italiana simples, que escolhera Fortaleza para ser sua morada definitiva.
Olhando para a Fortaleza que recebeu Pierina, em 1917, só vejo atraso. Ela vinha de Paris e falava vários idiomas. Que espanto deve ter tido ao chegar em uma cidade tão provinciana quanto Fortaleza, ainda remediando os males da última seca, a de 1915, que deixara a cidade tão cheia de problemas. Os lampiões eram a gás nas ruas e tinha horario para serem desligados. Nas residências, a luz eficiente só chegaria nos anos 1930, quando a Light assume o abastecimento de energia. Os banheiros também continuavam fora das residências. Fico imaginando o estranhamento de Pierina, acostumada às benesses e confortos da Europa, passar por esse tipo de situação, ao tomar um banho ou mesmo ter que se aliviar, antes de se mudar para o castelo do Outeiro, que acredito, deveria ter banheiro. Fora que ela desembarcou na ponte dos ingleses, que não tinha luxos. Teria ela se admirado com algo? Ou sentiu mais foi o alívio de ter escapado dos bombardeios da Primeira Grande Guerra?
O próprio bairro Outeiro, hoje, Aldeota, ainda era despovoado. As grandes casas só iam até a Praça da Escola Normal. Depois, eram poucas residências e muita vegetação. As ruas eram de areia. Era um castelo no meio de muitas casinhas miúdas e chácaras.
Plácido e Pierina teriam se conhecido em 1909, no Café Riche, em Paris, onde ela era guarda-livros. Ela, com 20 anos e ele, com 36. Marciano Lopes diz que sua letra era muito bonita, por conta do ofício e eu fico aqui logo imaginando um baú cheio de cartas dos dois e um diário manuscrito guardado a sete chaves pela família. Tudo na minha imaginação fértil.
Nesses quinze dias que passei mergulhada entre buscas pelo google e alergias de pele por conta dos meus poucos livros de história de Fortaleza, todos velhos e caindo aos pedaços, lamentei não poder visitar presencialmente os arquivos dos jornais antigos, para saber dos registros de Pierina, nas colunas sociais. Dos parentes vivos, também não pude me aproximar tanto, por conta da pandemia. Então, para encerrar esse trio de crônicas trago aqui algumas fotos do acervo do Nirez, que mostram Pierina sozinha no castelo e também com a filha Zaíra e Plácido de Carvalho.
Assim como Pierina, Zaíra também perdeu a visão ao fim da vida, embora tenha vivido bem mais, chegando a quase ser centenária, vivendo o resto dos seus dias em São Paulo. O segundo marido de Pierina, Emílio Hinko, também foi longevo, mas se isolou no Hotel Excelsior, onde morou até o fim dos seus dias, em 2002. Pierina ainda vive nos livros e nas lembranças de quem conviveu com ela.
Como Fortaleza não parece ter apego pelo seu patrimônio, por mais que a loura cidade tenha atraído os Rossi para trazer novidade à paisagem urbana, muito do que se desenhou foi apagado por prédios de apartamentos. Hoje, o desejo da capital é por torres espelhadas. E tem sido satisfeito.
Publicado por Kelly Garcia em 27.06.20
Um amor entre croquis, concreto e castelos
Depois de falar um pouco sobre a história de amor que rendeu um castelo para o Outeiro na Belle Epoque de Fortaleza, vou continuar com a história da italiana Pierina Rossi. Pouco depois da inauguração do primeiro arranha céu de Fortaleza, Plácido de Carvalho, seu marido, adoeceu e, para facilitar o tratamento, já que os hospitais daquele tempo ficavam no Centro, os dois se mudaram para o Hotel Excelsior, no Centro. O Excelsior foi inaugurado no Réveillon de 1931 para 1932, com toda a pompa e circunstância, com convidados ilustres que, certamente, devem ter rendido muitas palavras para os colunistas sociais daquele tempo. Fiquei até curiosa. Acho que irei procurar por elas quando passar a quarentena. O Povo deve ter dado página inteira.
Mas, voltando ao Plácido e à Pierina, ele não conseguiu se recuperar e faleceu em 1935. Aos 46 anos, a italiana herdou um grande patrimônio, que incluía, além do Hotel, uma fábrica de mosaicos, os cinemas e ainda uma série de imóveis espalhados pela cidade, como o sobrado do Pastor, na Praça do Ferreira. Certamente, a viúva deve ter procurado consolo para o luto no trabalho e nas obras sociais. Sabe-se que ela ajudou, com doações, a melhorar as instalações do Colégio Juvenal de Carvalho, das Irmãs Salesianas, na Avenida João Pessoa e ainda construiu uma grande amizade com a irmã superiora, que também se chamava Pierina, pouco tempo depois da morte de Plácido. A presença de seu irmão Natale e da filha Zaira, já morando no Ceará, também devem ter ajudado a aplacar a tristeza.
Três anos depois, ela contrata o engenheiro Emilio Hinko, amigo de seu marido e um dos únicos arquitetos de Fortaleza, para construir outras residências ao redor do Palacete, para aluguel, a fim de ampliar sua fortuna. Talvez com essas obras, os dois tenham ficado mais próximos e perceberam gostos e lembranças em comum. Pierina era de Milão, mesmo lugar onde Emilio participou da construção da Estação Ferroviária e iniciou sua carreira. Quem sabe o primeiro beijo dos dois não tenha acontecido em meio às conversas sobre a terra natal dela? Qual seria a música do casal? Já seria Silvio Caldas, o grande sucesso da época, algum bolero ou eles preferiam outro estilo musical? Nunca saberemos.
O húngaro morava em Fortaleza desde 1929. Antes, passou por Belém e pelo interior do Estado. Em 1938, ele já era bem conhecido por seu trabalho. Em 1933, construiu o Sanatório de Messejana, que eram as primeiras instalações do Hospital do Coração. Com esse primeiro grande trabalho, ganhou fama e fez em seguida algumas residências para médicos na Avenida Santos Dumont, algumas ainda de pé, próximas do Colégio Militar de Fortaleza.
Após a construção dos castelinhos, os dois se casam em uma cerimônia simples, em 1938, em uma das casas construídas por Hinko, na Rua Assunção com Clarindo de Queiroz, pertencente a Rui e Carmelita Guédis, pais de Artamilce Lobo e Alódia Guimarães, com apenas dois casais, o irmão dela com sua esposa e Fernando Alencar Pinto, como testemunhas.
A partir da união dos dois, Hinko expande sua construtora e ganha ainda mais prestígio, com obras maiores e mais trabalhosas. Entre as marcas que não são feitas de tijolos, Hinko deixou algumas no dono do maior acervo de fotos antigas cearenses, fonte fundamental para quem estuda a história de Fortaleza, Miguel Ângelo de Azevedo, o Nirez. Ele nos contou que sua família chegou a morar em um dos castelinhos, o que tem sua frente para a Rua Costa Barros.
Nessa época, seu pai passava muitas dificuldades financeiras porque vivia da venda de seus quadros. Em um momento de necessidade, por conta de estar com o aluguel três meses atrasado, Hinko ajudou o amigo Otacílio, pai de Nirez, cedendo uma das residências para a moradia da família, em troca apenas de ligarem a bomba que garantia o abastecimento de água para o palacete e os outros castelinhos. Foi de Hinko também a ideia de chamar o menino Miguel Ângelo de inglês por conta de sua pele vermelha e de sua loirice. De inglês, ficou Nirez com o tempo e até hoje é assim que o estudioso é conhecido. De Hinko mesmo, Nirez lembra pouco porque era muito criança e apenas o pai mantinha contato com o engenheiro, geralmente de forma rápida, na fábrica de mosaicos.
Mais tarde, em 1949, a irmã de Emilio Hinko, Irma, chegaria com a família em Fortaleza, ocupando os imóveis ainda hoje existentes na Praça Luiza Távora. Ela era mãe do proprietário atual do Hotel Excelsior, Janus Fuzesi Júnior, o único herdeiro do patrimônio de Hinko.
As quase duas décadas que Emilio Hinko e Pierina foram casados, entre 1938 e 1957, quando Pierina morre em decorrência de complicações do diabetes, foram ricas em projetos que marcaram a paisagem urbana de Fortaleza. São exemplos a Base Aerea de Fortaleza, o Náutico Atlético Clube, as igrejas de São Pedro, na Praia de Iracema, das Irmãs Missionárias, na Aldeota e do Coração de Jesus, no Centro, o Jockey Club, a antiga Escola Técnica, hoje IFCE, a Casa do Estudante e muitas casas no Centro, nos arredores da Base Aérea e na própria Avenida João Pessoa, todas marcadas por jardins laterais e áreas livres dentro de casa, para facilitar a circulação do vento, além do banheiro no interior da residência, inovação em Fortaleza a partir da chegada de Hinko.
Depois da morte de Pierina, Emilio Hinko passa a morar no Hotel Excelsior, onde morreu com 101 anos, em 2002.
A única herdeira da beleza e das histórias de Pierina foi mesmo a filha Zaíra, que chegou no Ceará com o tio em 1925, se casou com um dinamarquês e preferia o campo à cidade. Entre as poucas marcas deixadas por ela no Ceará, estão o sítio Arvoredo, em Pacoti, hoje pertencente à familia Jereissati e a Mansão Castelo, hoje da família Dummar, na Messejana. Também foi do marido dela a primeira empresa de ônibus a fazer o trajeto entre Fortaleza e Guaramiranga, informação preciosa colhida com o historiador Levi Jucá, estudioso do plantio do café no Ceará e biógrafo de Luiz Severiano Ribeiro.
Uma de suas sobrinhas, Rosita Fernanda, casou-se com Gerardo Jereissati, jogador de basquete, tio do senador Tasso Jereissati e foi irmã do arquiteto Pedro Natale Rossi, outro a deixar marcas importantes na Fortaleza dos anos 1960 e 1970 e que depois assinaria o projeto da Ceart, nossa central de artesanato, que preencheria o terreno onde antes se erguia o castelo do Plácido, lugar dos amores de sua ancestral italiana. Fortaleza é mesmo feita de ciclos. A cobra mordeu o rabo, como no fim do romance da Dora, de Rachel de Queiroz.
Publicado por Kelly Garcia em 20.06.20
Um castelo para minha principessa
“Rina, meu amor, se você vier morar comigo no Brasil, irei construir um castelo como esse que estamos vendo em Veneza para ser nossa morada de amor. A cidade nunca vai esquecer de nós dois. Não há nada parecido por lá. Você vem comigo?” – Não sei se foram essas palavras que o rico comerciante Plácido de Carvalho usou para convencer a italiana de Milão Maria Pierina Rossi a morar em Fortaleza. Sei que a estratégia que ele usou, funcionou e em 1917, em plena Primeira Guerra Mundial, Pierina seguiria em um navio saindo de Paris para Fortaleza em uma longa viagem com muitas escalas e inspeções, além do medo de bombardeios.
O casal apaixonado se conheceu no Café Riche, em 1909, em Paris, onde Pierina era caixa-livros e Plácido tinha ido se divertir com alguns amigos. Ele trazia artigos finos franceses, como roupas e enxovais para vender em sua loja de Fortaleza, a Casa Plácido, uma das mais chiques da cidade. Orfã de pai e mãe, Rina teve que sobreviver às custas de sua sede por conhecimento, que a fez estudar contabilidade e ainda ser fluente em várias línguas. Com o salário do Café Riche, pagava ainda o internato para sua única filha, Zaíra. Desse primeiro encontro, surgiu um encantamento de Plácido por Rina, essa italiana 15 anos mais jovem, muito inteligente e dona de belos olhos. Não há registros de quando os dois teriam engatado o namoro, mas Rina ficou como representante de Plácido para escolher as peças que estariam nas vitrines da Casa Plácido e assim, por carta, deveriam declarar o seu amor nesse namoro à distância.
Com a guerra, a cada dia ficava mais perigosa a estada de Pierina sozinha em Paris e isso contribuiu para decidir viver na terra do seu amado Plácido. Além de ser importador e comerciante, Plácido era um amante da cultura e aproveitou a vinda de sua amada para o Brasil para inaugurar mais um empreendimento – o Cine Teatro Majestic, imponente prédio com quatro andares, na Praça do Ferrreira, onde funcionariam um teatro e um cinema. A transformista que inaugurou o equipamento cultural, Fátima Miris, teria vindo, inclusive, no mesmo navio que Pierina Rossi para Fortaleza.
Enquanto o castelo era construído no Outeiro, que era o nome mais antigo da Aldeota, o casal residiu no Centro, na Rua Princesa Isabel, próximo à Itapuca Villa, outra mansão importante da cidade, pertencente a Alfredo Salgado, na rua Guilherme Rocha.
O palacete tinha inspiração nos castelos de Veneza e, de fato, nunca houve nenhuma construção parecida até hoje na cidade. Com cinco pavimentos, incluindo a torre e o térreo, ocupava uma quadra enorme da Avenida Santos Dumont, entre as ruas Carlos Vasconcelos e Monsenhor Bruno. Contava ainda com duas fontes e amplos jardins de rosas.
Já com a companhia valiosa da esposa, Plácido de Carvalho amplia seus negócios e inaugura, em 1922, o Cine Moderno, em um palácio de inspiração egípcia. Com o fim da guerra, a enteada Zaíra e o cunhado Natale também firmaram morada em Fortaleza. Como Natale tinha alguma experiência com engenharia, Plácido passa a sonhar em construir um hotel de luxo em Fortaleza, o maior do Norte e Nordeste e que seria o maior edifício da cidade, com nove andares e todo construído em alvenaria. Um verdadeiro feito!
Todo o mobiliário, roupas de cama e mesa, lustres e um piano de cauda, além de telas de arte foram cuidadosamente escolhidos por Pierina. A inauguração do Hotel Excelsior, com toda a pompa e circunstância, se deu no dia 31 de dezembro de 1931.
Com a doença de Plácido, o casal passou a morar no próprio hotel e o grande empresário da Fortaleza Belle Epoque vem a falecer em 1935. Não se sabe porque, talvez lembranças do casal ou pelo alto custo para a manutenção, mas Pierina não quis mais morar em seu castelo e ele foi arrendado para o Governo, que instalou o serviço de combate à malária na época.
Em 1936, a italiana pede para o amigo de seu marido, Emilio Hinko, engenheiro húngaro, que construa outros palacetes parecidos com o seu, para alugar, ao redor do castelo. Hinko é outro que deixou marcas profundas em Fortaleza. São dele os projetos do Náutico, da Base Aérea, do Sanatório de Messejana e de várias casas em estilo europeu, com telhados inclinados, ainda de pé na Avenida João Pessoa e no centro.
Viúva ainda jovem, com 37 anos, se casa em uma cerimônia íntima com Emílio Hinko, na casa dos pais da cerimonialista Alódia Guimarães, Rui e Carmelita Guédis, tendo como padrinhos Nadir e Natale Rossi e Fernando de Alencar Pinto, parente de outra querida pessoa da sociedade, Marilena Campos.
Nunca mais voltaria a morar em seu castelo, passando a fixar residência no Hotel Excelsior, na rua José Vilar e finalmente em uma das casas menores ao redor do palacete. Morre em 1957 e deixa o castelo para sua única filha, Zaíra.
Depois de passar muito tempo abandonado, Zaíra vende o castelo do Plácido para uma rede de supermercados. Sem aviso, o prédio é demolido, mas o supermercado nunca chega a ser construído. Nos anos 1980, essa rede de supermercados cede o terreno ao Governo do Estado, para pagar uma dívida e é construída a Ceart e uma grande praça em seu lugar. Os castelinhos permanecem iguais desde 1936, quando Emílio Hinko os construiu e, talvez, tenha trocado os definitivos olhares para conquistar a viúva Rina Rossi.
De todo o imenso patrimônio de Plácido de Carvalho, só restou o imponente Hotel Excelsior, a Farmácia Oswaldo Cruz e o sobrado do Pastor, hoje ocupado pelo restaurante Lescale, os três na Praça do Ferreira. O restante, como a Casa Plácido, o Cine Majestic e o Cine Moderno e até o Castelo do Plácido, virou cidade invisível.
Publicado por Kelly Garcia em 13.06.20
Os cinemas da memória
Sou filha dos anos 1980. Por isso, ouvir os relatos sobre a pompa e circunstância para assistir um simples filme nos cines São Luiz e Diogo nos anos 1950 e 1960 parece ficção. Entendam: eu já os encontrei em sua fase decadente. O Diogo, já quase para ser vendido e o São Luiz, como uma opção mais barata para quem não queria ir para os cinemas do Iguatemi e do Center Um. Isso já em meados dos anos 1990.
Conheci o Cine São Luiz em uma tarde de domingo, depois de passar a semana inteira perturbando meu pai. Eu tinha feito 12 anos e reclamava que só eu, de todos os meus amigos e primos, nunca tinha ido ao cinema. Sei que fiz todo o drama imaginável para conseguir convencê-lo. Talvez tenha chorado, feito chantagem. Desses detalhes sórdidos, eu não lembro muito bem. Do que lembro mesmo é do Sol quente, da ida ao Centro no Opala Comodoro lá de casa e da não escolha do filme. Sim, porque eu perturbei tanto que assistimos o que estava em cartaz. Qualquer um. Inclusive, nesses tempos de antes da internet acessível de hoje, para saber as sessões e filmes de cada cinema, a gente tinha que ligar pra um telefone e ouvir a programação. Como na minha casa não tinha telefone, nem deu tempo de comprar a ficha e ir no orelhão saber que filme estava em cartaz no São Luiz.
Na minha casa, nunca tivemos tradição de ver tantos filmes. Consumíamos o que passava na TV e, depois de fazer uma ficha na locadora perto de casa, as fitas de lá. Antes de ser dono de mercadinho no interior, meu pai era técnico de eletrônica e consertava vídeo cassete. A fita de teste dele nos aparelhos era o Ghost. Acho que foi o primeiro filme em VHS que eu vi, além de A Bela Adormecida. Não tínhamos videoteca e nem, digamos, uma paixão por cinema.
Chegando no Cine São Luiz, com o centro vazio porque era domingo, fiquei achando tudo lindo e com cara de antigo. Era impressionante. Aqueles espelhos enormes, os lustres de cristal importado da Tchecoslováquia, o mármore de Carrara do chão. Meu pai olhou logo foi pra os preços igualmente impressionantes dos doces, chocolates e da pipoca. “Tem ouro?”, nós rimos e não compramos nem água.
O filme que pegamos já na metade era “Caminhando nas nuvens”, com o Keanu Reeves, que, nesse tempo, em 1995, já era galã. Sorte que a censura era 12 anos, se fosse mais talvez a gente tivesse dado viagem perdida. O filme se passava numa plantação de uvas nos anos 1940. Uma história de amor improvável entre um ex-soldado separado e uma moça grávida de outro, que fingiram ser noivos para evitar um escândalo na família dela, muito tradicional e dona do vinhedo em questão. Achamos arrastado e muito chato. Mas, para mim, tinha valido a pena. Pelo menos, eu fui ao cinema. Finalmente.
Mais de 20 anos depois, achei o DVD nas Americanas e comprei para rever e avaliar se a minha opinião aos 12 anos estava certa sobre esse filme. Como geralmente ocorre, achei maravilhoso. Os cenários, no meio desses vinhedos, eram lindos. A história de amor também. Hoje, os anos 1940 e 1950 são os meus preferidos. Sou meio vintage.
Em 1996 fui de novo no Cine São Luiz. Dessa vez, com minha turma de amigos, para ver Missão Impossível. A escolha também não foi pelo filme, mas pela bagunça. Me deem um desconto porque eu tinha 13 anos. Que maturidade esperar, não é mesmo? Lembro pouco do filme, só do Tom Cruise se pendurando no avião.
Nesse mesmo ano, conheci o Cine Diogo, também com a mesma turma e, de novo, pra ver qualquer coisa. O filme foi Strip Tease, com a Demi Moore. Era censura 14 anos, eu tinha 13, mas deu pra engabelar na entrada porque eu não tinha carteira de estudante pra comprovar a idade. E a maioria dos meus amigos tinha 14. A fila estar grande e a gente ter chegado em cima da hora também ajudou nesse processo. Ir ao cinema sem os pais era quase um acontecimento. A ida de trem. A volta. As risadas. Era rebeldia das melhores e às vezes ainda tinha dinheiro pro lanche no Dudda's Burguer, porque no McDonalds era muito caro.
Antes de ir nesse, me falaram pra tomar muito cuidado porque podia ser perigoso ir ao banheiro sozinha. Falavam em raptos. Não sei se era verdade ou lenda urbana. O cinema também estava mal cuidado. Faltavam cadeiras. Era sombrio. Depois desse filme, passaram alguns meses e ele foi desativado e transformado em shopping.
Ainda fui no Cine São Luiz umas poucas vezes porque abriram uns cinemas no North Shopping. Como era mais perto de casa, ficou mais fácil. Era mais legal ir no do shopping por causa da praça de alimentação e das Americanas, para o lanche de antes e depois. Ir no São Luiz ficou parecendo programa ultrapassado. Ainda voltei lá para ver o Titanic com meu pai e, pouco antes de ele ser desativado como sala comercial, para ver uma das sequências do Exterminador do Futuro.
Foi triste ver toda aquela imponência e luxo se desfazendo. Assim como no Diogo de 1996, o São Luís agonizava, com um ar condicionado com defeito, paredes descascando, infiltrações, cadeiras retiradas e cheiro de mofo. Pouco tempo depois, ele foi desativado de vez e a Secretaria de Cultura do Estado passou a cuidar de sua programação. Também houve um restauro. Nessa nova fase, conferi dois ótimos shows, do blueseiro Kenny Brown, uma das atrações do Festival de Jazz e Blues de Guaramiranga de 2006 e, nesse mesmo ano, o do gaitista Jefferson Gonçalves, comemorando meu casamento civil, que tinha sido de tarde.
Nunca mais pisei naquele mármore de Carrara. Meus filhos ainda não o conhecem.
Para ver filmes que me interessavam de verdade, só estive várias vezes no do Dragão do Mar. Ganhei o cartão de acesso grátis nos tempos que virei jornalista de um grande veículo e um dos mais marcantes que vi por lá foi o Lavoura Arcaica, com o Selton Mello e a Simone Spoladore. Nessa sala, eu ia até sozinha em horários toscos, só pelo que estava em cartaz.
Como as coisas mudam. Hoje, minha resistência para ver filmes anda tão pouca que só assisto alguma coisa de manhã. Eu durmo. Não sei se é o avançar dos anos ou a concentração ruim por conta do uso excessivo do smartphone. No cinema então, minhas idas continuam pelo evento em si, muitas vezes com as crianças. Algumas outras, para ver algum blockbuster bem acompanhada do marido. Tenho também uma modesta coleção de DVDs para ver quando os filmes saem do catálogo da Netflix. Não faltam opções, embora eu seja bem ignorante em clássicos. Só tenho os meus preferidos, E o vento levou..., Mary Poppins e A Noviça Rebelde. E vocês, tem alguma história com os cinemas do centro de Fortaleza? Conta aí...
Publicado por Kelly Garcia em 06.06.20
Entre cinemas, igrejas e jardins
Essa semana, o texto do grande jornalista, cinéfilo, escritor e também coladorador, como eu, do site Salete em Sociedade, José Augusto Lopes, me deu um insight para esta crônica. Na segunda, José Augusto contou um pouco sobre a intrepidez do promotor cultural Tarcísio Tavares, ao fundar um cinema de arte no Cine Familiar do Otávio Bonfim, ao lado da paróquia de Nossa Senhora das Dores, bairro de classe média de Fortaleza, um pouco distante do Centro e da Aldeota, onde moravam as pessoas de posses, no fim dos anos 1960. Foi ali que o colunista de Cinema e Arte conheceu alguns dos filmes clássicos que o fizeram ter paixão pela Sétima Arte.
Mexendo na caixa das minhas lembranças recentes, me veio à mente que passei a maior parte da minha vida passando em frente a essa igreja, duas vezes por dia, na ida e na volta dos meus percursos. Primeiro, no caminho da escola, no tempo que comecei a estudar do Colégio 7 de Setembro, no Centro, em 1997. Depois, na ida à faculdade, em 2001 e também durante os 12 anos que trabalhei fora de casa. Para quem mora em Caucaia, o caminho mais convencional para o Centro e a Aldeota passa pela Avenida Bezerra de Menezes. Por isso, tantas e tantas vezes estive ao lado dessa praça que circunda a igreja, nos ônibus da vida.
Pensando em quem mais poderia ter lembranças boas dessa pracinha, me recordei de uma amiga de escola, a Nataly, que me falou, há muito tempo, que os seus pais, Maria Nilma Cisne e Luiz Peixoto, se conheceram em frente à Igreja de Nossa Senhora das Dores. Na sexta-feira, falei com ela de novo e ela me confirmou que não só os pais tinham se conhecido por lá, em 1967, como tinham ido nesse cinema para namorar, assim como no Cine São Luís, onde o Luiz Peixoto era tipógrafo, e só não se casaram nessa igreja por não encontrarem vaga, em 1972. Foi o jeito então marcarem as bodas para a igrejinha dos Navegantes, em frente à Escola de Aprendizes Marinheiros, na Jacarecanga.
O Cine Familiar era um dos cinemas das proximidades da Avenida Bezerra de Menezes. Além dele, também tinha o Cine Nazaré, do seu Vavá, na rua Padre Graça, que fica logo depois do trilho da antiga estação do Otávio Bonfim, hoje desativada e faz esquina com a avenida. Mais adiante, segundo me informou o médico e ex-governador Lúcio Alcântara, no tempo em que fiz uma matéria sobre a história dessa via, em 2014, ainda funcionava outro cinema dentro do CPOR, hoje a sede da Secretaria de Segurança Pública do Estado. Dr. Lúcio morava, desde bebê, no quarteirão seguinte ao da CPOR da Bezerra de Menezes. Passou toda a infância e juventude nesse cenário, que era bem diferente do de hoje, com cadeiras nas calçadas e totalmente tranquilo.
Outro morador ilustre do Otávio Bonfim foi o capitão João Batista Fujita, juntamente com seus cinco irmãos e os pais, Jusaku Francisco Guilherme Fujita e Cosma. A família tinha um jardim com venda de flores e coroas fúnebres, o Jardim São José, onde hoje é o Assaí Atacadista. Em 1944, o jardim e outros estabelecimentos comerciais de propriedade de empresários do Eixo, como a Casa A Pernambucana e a sapataria Casa Veneza, foram alvo de ataques. No jardim São José, tudo foi destruído e incendiaram as duas casas comerciais no Centro. Era a revolta sem sentido contra os estrangeiros que moravam em Fortaleza que vinham da Itália, Alemanha e Japão, aliados dos nazistas. Mas esses empresários nada tinham a ver com a ideologia nazista. Foram atacados só por serem desses países, num episódio xenófobo e triste. Em 2011, foi inaugurado o Jardim Japonês na Avenida Beira-Mar, uma homenagem aos 100 anos da imigração nipônica e também ao dono do jardim São José e pai do capitão Fujita, primeiro imigrante japonês a chegar ao Ceará, em 1923. Infelizmente, o capitão foi mais uma das vítimas da Covid-19 e faleceu em abril, aos 84 anos.
Nas memórias de Zenilo Almada, no livro Fortaleza Inesquecível, tive acesso a outros vendedores de flores que costumeiramente passavam pela Avenida Bezerra de Menezes, o burrinho Jasmim e seus donos, dona Florzinha e o Chico das Hortas. Eles percorriam o longo caminho desde o North Shopping até o Mercado São Sebastião. Moravam no Coqueirinho, onde cultivavam suas plantas, que era um antigo nome da Parquelândia.
A igreja de Nossa Senhora das Dores foi construída em 1930. Como os bondes circularam do fim do século XIX até 1947, uma das linhas mais longas e importantes também passava em frente a essa igreja. Segundo o Marciano Lopes, no livro Royal Briar, essa facilidade de transporte se dava por João Tibúrcio Albano, filho do Barão de Aratanha, morar onde hoje é a Secretaria de Agricultura do Estado, em um vasto terreno que ia até a beira da praia. Nessa chácara, aconteciam muitas festas glamourosas, nos tempos da Belle Époque, com mobiliário francês, cristais da Bohemia e porcelana inglesa. O terreno foi vendido em 1933 para o Estado e, claro, a chácara foi demolida. Ali perto, nos anos 1950, também foi construída outra igreja, a de São Gerardo Majella, no lugar da capela dedicada ao santo, construída em 1925. A edificação mais antiga da via é a capela de São Francisco de Paula, construída em 1865, de que eu já falei antes.
O fim da linha do bonde era no Colégio Santa Isabel, que chegou lá em 1938 e era também o fim da zona urbana de Fortaleza, porque a partir dali já era o bairro Barro Vermelho, hoje Antônio Bezerra, do qual aprendi um pouco pelas cidades invisíveis do Seridião Montenegro, presidente da Academia Fortalezense de Letras, que estudou no seminário de São Vicente de Paula, na fronteira com Caucaia, hoje uma faculdade particular.
Eu, que sou filha dos anos 1980, só alcancei mesmo os cines São Luís, Diogo e Fortaleza, no Centro, já em sua fase decadente e os dos Shoppings. Esses tempos de pompa e circunstância só tive acesso nos livros e nas memórias de quem entrevistei. Assim como esse tempo em que a Avenida Bezerra de Menezes era tranqüila, cheia de chácaras, jardins e até burrinhos com flores à venda na cangalha. Obrigada por recordar esses outros tempos do Cine Familiar, José Augusto. É muito bom ter acesso a essas cidades invisíveis dos outros.
E você, leitor? Guarda alguma boa lembrança do Otávio Bonfim com seus cinemas, igrejas e jardins ou da Avenida Bezerra de Menezes? Eu tenho as minhas e descrevi algumas aqui. Falando em cinema, não vejo a hora de abrirem para eu juntar minha turminha de casa e assistir algum filme. Desenhos da Pixar são os favoritos porque tenho duas crianças. Que essa pandemia sossegue e se vá logo, pra gente sair de casa, não é mesmo?
Publicado por Kelly Garcia em 30.05.20
A Inglaterra e a Noruega de Lucinda Riley
As cidades de Lucinda Riley
Na semana passada, contei um pouco sobre as cidades que conheci no primeiro livro da saga As Sete Irmãs – A história de Maia, da escritora irlandesa Lucinda Riley, que se passa no Rio de Janeiro e em Paris. No Rio, a trama se passa em Cosme Velho, bairro com casas antigas do Rio, no interior, em uma Fazenda de Café e ainda, nos dias de hoje, na Lapa, em Ipanema e no morro. Já em Paris, a zona boêmia da cidade em Montmartre, com seus muitos pintores e escultores. Entretanto, mesmo fazendo esse tipo de turismo incompleto, mas barato e sem inconvenientes, as minhas referências continuavam sendo Fortaleza, com alguns casarões ainda de pé e outros, que só vivem nas fotos e no imaginário de quem conheceu.
Como gostei muito do primeiro livro, mas não tinha muita esperança de poder comprar sete livros sobre um mesmo assunto, dei pra uma amiga. Hoje, essa amiga é quem compra e me empresta os outros volumes da saga. Li o segundo e o terceiro e ela vai me emprestar o quarto. Como o seu noivo é norueguês, ela vai pra Europa todo ano e já me presenteou com muitas fotos dos cenários verdadeiros dos livros. Essa é uma amizade muito preciosa.
Meu turismo de pobre no segundo livro foi exatamente para a Noruega, com A irmã da Tempestade – A história de Ally. Desse país, tudo o que eu sabia era que extremamente frio, que tinha aurora boreal por causa da proximidade com o polo norte e algumas paisagens dos fiordes, por conta do que vi na série Os vikings e também algumas referências do autor do O Mundo de Sofia e O castelo dos Pirineus, o Jostein Gaarder, de quem li essas duas obras. Devo ter visto alguma coisa também no Globo Repórter. Isso é muito pouco.
Em A irmã da Tempestade, a protagonista irmã é velejadora e seus ancestrais são músicos eruditos. A mais antiga é uma cantora lírica que cantava para as vacas e é descoberta por um olheiro para ser a voz falsa de uma cantora real, a Thora Hansson. Nessa parte do livro, que se passa ainda no século XIX, os pontos importantes são a parte antiga de Oslo, que nesse tempo ainda era Christiana. Na Alemanha, em Leipzig, conhecemos o conservatório, um dos mais antigos da Europa. Voltando à Noruega, em Bergen, já nos anos 1940, conheci uma face amarga da história porque, como em toda a Europa, muitos judeus foram mortos e a Noruega foi um dos países invadidos pelos alemães.
Nesse livro, não consegui fazer muitas associações com Fortaleza por motivos óbvios, mas fiquei pensativa sobre como seria o impacto das cantoras e atrizes na cidade com a inauguração do Theatro José de Alencar em 1910. Já vi alguns poucos relatos, mas preciso ler mais. Deve ter muita história boa pra contar. O melhor desse segundo livro da Lucinda foi a playlist, com muita música clássica, de músicos que eu, na minha ignorância, nunca tinha ouvido falar, como Edvard Grieg, Igor Stravinkski e Sergei Rachmaninoff.
Já no terceiro livro, A irmã da sombra – A história de Estrela, o cenário a ser explorado é muito mais vasto. A irmã tem ascendência inglesa e uma das paisagens mais lindas de todo o Reino Unido é descrita em detalhes, o Lake District Nacional Park, que é o mais visitado do Reino Unido, com 3.100 km de trilhas, lagos, o castelo de Muncaster. Boa parte desse parque se originou das terras da escritora Beatrix Potter, autora de livros infantis no fim do século XIX e inicio do século XX. Um dos seus mais conhecidos é o Pedro Coelho. Fiquei absolutamente encantada com o que é descrito, até porque eu já conhecia a escritora de uma cinebiografia excelente, estrelada pela Renee Zellweger em 2006. O tempo da parente da protagonista é o início do século XX, mais precisamente a partir de 1911 e também são contados vários bailes da alta sociedade e uma das histórias por trás da monarquia, com a personagem real Alice Keppel, uma das amantes do rei Eduardo, avô da rainha Elizabeth e tia avó da atual esposa do príncipe Charles. As flores e os belos jardins de Londres são um capítulo à parte, assim como a bela livraria de livros raros, que teria pertencido à Beatrix Potter.
Sei que me senti em casa, em meio a condados com casas de mais de cem anos, castelos, bangalôs, jardins secretos. Fiquei pensando depois em quais cearenses famosos teriam visitado esses cenários no tempo do começo do livro. Pelo pouco que conheço dos outros tempos de Fortaleza, tivemos alguns ingleses ilustres compondo nossa história, como o engenheiro Francis Hull, o mister Hull, que construiu a estrada de ferro. A estrutura de muitos prédios importantes, como o Mercado dos Pinhões, a capela do Pequeno Grande e mesmo do Theatro José de Alencar veio da Escócia.
O próximo livro da saga de Lucinda – A irmã da Pérola – a história de Ceci, andei pesquisando, fala da Austrália e da Tailândia. Desses dois lugares, sei pouquíssimo também, como o que vi na história real da P.L. Travers, autora da Mary Poppins e alguns documentários sobre a vida selvagem. Estou ansiosa para fazer esse meu turismo barato de novo.
E você, leitor, qual viagens tem feito nessa quarentena? Iguais às minhas ou apenas revisitando os álbuns com os registros dos muitos lugares reais conhecidos? Ler pode ser uma ótima forma de fazer turismo e elaborar os próximos roteiros de verdade. Recomendo.
Publicado por Kelly Garcia em 23.05.20
Não sou uma pessoa que tenha viajado muito, infelizmente. Já falei isso aqui. Quando tinha muito tempo e disposição, o medo de arriscar e a falta de dinheiro me fizeram ficar no mesmo lugar. Já quando o medo diminuiu um pouco, o trabalho ficou mais intenso e depois a vida mesmo tratou de me amarrar mais e mais ao lugar que cresci. Eu me deixei amarrar, na verdade. Por isso, faço muito turismo através dos livros. É uma forma segura de viajar. Com eles, não preciso me despedir, dar explicações, posso demorar mais ou menos nos destinos, de acordo com o ritmo que me imponho. Posso abandonar essa viagem sem nenhum prejuízo. Fora que não vai acontecer nenhum acidente nem na ida, nem na volta ou extravio de bagagem. E ainda posso criar na minha mente um roteiro para uma viagem de verdade no futuro, quando estiver melhor das pernas, em relação a recursos, tempo e obrigações.
Desses universos paralelos, vou me ater a um dos mais recentes em que estive. Terminei recentemente o terceiro livro de uma saga de sete, As Sete Irmãs, da escritora irlandesa Lucinda Riley. Apesar de ela ser bem famosa e eu trabalhar com livros há alguns anos, eu nunca tinha ouvido falar nela. Minhas leituras favoritas são os livros nacionais, geralmente de escritores já falecidos. Só comecei a conhecer alguns autores fora desse nicho quando me dispus a resenhar os lançamentos do mercado literário, ainda na época que trabalhava no jornal.
A Lucinda foi uma das autoras best-sellers que chegou junto com as dezenas de caixas que uma editora mandava sempre pra mais de dez jornalistas diferentes, até os que não trabalhavam com livros. Dessa editora, fiquei com muita coisa, mas como o volume de lançamentos era muito grande, acabei me desfazendo de mais da metade dos livros, a maioria romances açucarados e fantasia. Um dos poucos que restaram na minha estante foi o primeiro livro desssa saga, que contava a história de Maia, uma moça brasileira que tinha sido criada por um suíço rico e tinha cinco irmãs adotadas, todas vindas de vários lugares do mundo.
Além do livro, a editora ainda tinha feito um pequeno filme sobre a história do Cristo Redentor, que permeava a obra, já que a ancestral de Maia era uma das moças da alta sociedade carioca que participaram da inauguração do monumento. Em cada um dos livros, com a morte do pai delas, ele deixa uma pista da origem de cada irmã e sempre tem alguma personagem histórica real, com um souvenir para que ela possa pesquisar sua história e suas raízes. Entre esse livro chegar na estante e eu ler, demoraram alguns anos. Foi uma leitura coletiva com amigas de outros Estados e eu gostei tanto do livro que dei continuidade à saga. Li o segundo, que se passa na Noruega e o terceiro, na Inglaterra.
Mas, como não conheço o Rio de Janeiro, minhas referências de lugares ficaram aqui por Fortaleza mesmo. Engraçado que quando a Maia vai procurar a senhora que é filha da moça da alta sociedade carioca em um bairro aristocrático do Rio em decadência, eu associei logo aos casarões daqui e fiquei imaginando ela chegando para conhecer a dona do Castelo do Plácido, nos anos 1970 ou da Casa do Barão de Camocim. Depois, quando ela visita o morro ou a Lapa, fica mais fácil pescar os lugares na internet ou lembrar do que a gente vê nas novelas. Essa parte achei um pouco artificial. Os estrangeiros nos veem como muito sensuais e dançantes. Isso às vezes é meio caricato e falso.
Nas próximas crônicas, conto do que vi nos outros dois volumes e trago algumas fotos. Vocês também são como eu e espelham suas referências de cidades invisíveis nos lugares que visitam e nas leituras? Já conheciam a Lucinda Riley? Vou adorar saber.
Publicado por Kelly Garcia em 16.05.20
A trilha sonora das cidades invisíveis da minha mãe
As Cidades Invisíveis, quando se tratam da minha mãe, precisam de som. Sua presença forte contém trilhas sonoras inesquecíveis. Se for pra lembrar da casa antiga da Rua Pero Neto, em São Paulo, a trilha se alterna entre o disco completo das Frenéticas, o I'm sailing, de Rod Stewart e o Do you wanna dance, do Johnny Rivers. Ou o tilintar das moedas em Money, do Dark side of the Moon, do Pink Floyd, que tocava no meu tio, que morava vizinho a nós, em alguns domingos.
Depois, com a mudança para Caucaia, os discos vieram conosco. Por aqui, Roberto Carlos, com sua vasta cabeleira e fundo verde do disco de 1973, cantava El dia que me quieras e ela lembrava do gosto musical do pai dela, meu avô espanhol. Os Bee Gees e sua discoteca Night Fever nos colocavam para dançar e balançar na rede até quase virar. Mais tarde, na minha adolescência, o tipo de mídia se modernizou e eram as fitas cassetes, em vez dos discos de vinil. Então, Leandro e Leonardo, Raça Negra, Clara Nunes e John Lennon passaram a se alternar todos os dias, às 7h30 da manhã, para animar a limpeza da casa e me acordar, assim como toda a vizinhança. Quantas vezes o Luiz Carlos, cantor do grupo Raça Negra, entrou no meu sonho fazendo um show só pra mim e depois acordei e percebi que na verdade era minha mãe que já estava trabalhando em casa?
Com a separação de todos, o silêncio se tornou tão pesado que eu quase conseguia tocar. Pra evitar isso, ligava logo a tv assim que chegava em casa. Nesse período separadas por quase três mil quilômetros, por sete anos, as ligações eram poucas. Uma ou duas por ano. Nos natais, aniversário e dia das mães o correio entregava nossos mimos. Santos, perfumes, maquiagens, esmaltes, cds. Passado esse período longe, vi que ela guardava tudo quase como relíquia, sem uso. Nem os cds tinham sido abertos. Mas, como tudo passa, esse tempo longe também passou.
Hoje, sua jovialidade acompanha as paradas do sucesso. Se eu for na sua casa sem avisar, lá da esquina vou ouvir sua animação com palmas e danças ouvindo o cabaré do Eduardo Costa ou algum hit do Luan Santana. Ainda bem que é assim. Ela continua bem e a música continua impulsionando a vida dela. Depois dessa pandemia passar, a gente remarca aquela lasanha de lei do Dia das Mães, viu , mãe. Deus há de permitir esse reencontro.
Publicado por Kelly Garcia em 09.05.20
A falta que ela me faz
Com a pandemia, além da saudade dos amigos e entes queridos, tem muita gente sentindo falta de outra companhia: a da secretária do lar. Antes dessa doença parar a vida frenética que era comum a todos, para quem tinha condições de pagar, era essa trabalhadora quem mantinha a comida prontinha na mesa e a casa organizada, enquanto as pessoas corriam de um lado para o outro, desesperadas para ganharem a vida.
Estive pensando nisso porque muitos capítulos de quem sou hoje, devo a essas profissionais, a quem homenageio nesse dia seguinte ao Dia do Trabalhador. As Cidades Invisíveis não teriam tantas cores e paisagens se eu mesma não tivesse saído de casa para ser repórter e contado com a ajuda valiosa delas, apesar de nunca ter tido condições de ter alguém fixo. No máximo, uma pessoa para fazer uma faxina esporádica ou lavar as roupas de casa quando eu fiquei sem máquina de lavar. Também precisei de ajuda quando meus filhos nasceram e quando voltei da licença maternidade do mais novo. Mas nunca pude ter alguém por mais de três meses.
O título dessa crônica, inclusive, peguei emprestado do Fernando Sabino. Ele tem um livro com esse nome, que é uma coletânea. Conheço bem a que dá título à obra e se puderem, vocês deveriam dar uma lida, porque também homenageia essa pessoa tão necessária e importante na vida das pessoas que, por algum motivo, preferem pagar alguém para fazer esse serviço.
Entretanto, durante o tempo em que morei com meus pais, não tivemos esse tipo de ajuda. Minha mãe nunca trabalhou fora de casa e dava conta de todos os afazeres domésticos. Nem nós tínhamos esse tipo de ajuda e nem a maioria dos vizinhos. Pelo contrário, uma parcela feminina da família trabalhava com isso, oferecendo seus serviços. Principalmente, as que vinham do interior e não tinham muito estudo.
As mulheres da minha geração, as que nasceram depois dos anos 1980, em geral, se dedicaram mais a aprender uma profissão que as remunerassse bem do que as coisas de casa. Caíram na ilusão de que caso ganhassem muito dinheiro, jamais teriam que fritar um ovo que fosse. Ledo engano.
Pelo menos comigo, foi cedo que chegou a necessidade de aprender a fazer o que comer e organizar o básico, como lavar as próprias roupas. Mas, como caí nesse engano de que poderia estudar muito e ganhar bem para pagar, de certa forma, nunca consegui desenvolver de forma plena essas habilidades.
Assim, quando estava na faculdade, sonhava com o momento de poder chamar uma amiga que trabalhava com isso, mas tinha sido contratada por alguém que trocou o serviço de babá e empregada doméstica apenas pela comida e dormida e uma remuneração que talvez fosse o equivalente a uns 200 reais de hoje. Eu até já tinha prometido que assim que começasse a trabalhar, mesmo que ganhasse só um salário, dividiria com essa amiga, para que ela saísse dessa situação difícil e me ajudasse com o que eu não dava conta. Mas, para a minha alegria, ela arranjou um emprego bem melhor em outro Estado e foi embora.
Quando me casei, passei a trabalhar mais ainda e, nesse tempo, vi que realmente precisava de alguém para fazer pelo menos uma faxina de vez em quando. Aí, contratei outra pessoa próxima, que me conhecia desde criança. Com essa, a conversa corria solta e eu a sentia como se fosse uma espécie de mãe postiça. A sensação que eu tinha era que ela era uma fada madrinha da arrumação da casa e ficava emocionada ao chegar de um dia de trabalho depois que ela passava por lá, porque ficava tudo impecável. Ela me ensinou a fazer meu primeiro bolo, minha receita mais querida até hoje e cuidou também de cada peça de roupa e enxoval da minha filha mais velha, além de ter cozinhado pra mim nos primeiros dias de resguardo. Como sou grata por tudo que ela fez por mim! Também tinha e tenho muita admiração por sua força de vontade em estudar à noite, mesmo depois de tanto trabalho braçal durante o dia, além de cuidar da própria casa e ter um filho deficiente intelectual, que ficava aos seus cuidados.
Anos depois, a sua filha, em revezamento com uma prima e uma tia dela, cuidaram do meu caçula, quando voltei da minha licença maternidade, porque ela tinha conseguido um emprego fixo com um ótimo salário. O amor que elas tinham a mim e ao meu filho era bem maior que o que eu pagava. Mas, tentei fazer o possível para nunca barganhar preço. Sabia que era um serviço valioso e pagava a mesma diária que recebia. Para minha sorte, eu também revezava esse cuidado com meu marido, quando ele estava de folga e com a minha sogra, o que fazia com que não precisasse pagar todos os dias. Se não, nem teria sentido continuar trabalhando. E foi um dos motivos que me fez parar de ter essa rotina corrida para trabalhar em casa e finalmente aprender como organizar tudo, o que tenho feito hoje, sem ajuda profissional, mas apenas com todos em casa colaborando com as tarefas e tem dado certo.
Como ontem foi o Dia do Trabalhador, fica a minha homenagem a essas trabalhadoras tão preciosas e que tem feito falta a tanta gente. Guardo com muito carinho todas as que me ajudaram e agradeço cada receita passada e cada dica de organização. Feliz Dia do Trabalhador e que logo as coisas possam voltar ao que eram, porque sei que muitas estão sem receber e outras, sem poder ver a família, para manter o trabalho. Fica minha homenagem e o meu carinho por vocês.
Publicado por Kelly Garcia em 02.05.20
Os habitantes (quase) invisíveis das cidades
Nem sempre as cidades invisíveis estão nas lembranças ou nos livros. Elas podem estar nos matagais, naqueles terrenos baldios, murados ou não ou na beira dos rios que as grandes cidades insistem em aterrar ou estrangular. Ali, existem pequenas civilizações praticamente invisíveis para a maioria das pessoas. Entretanto, para as crianças e os que têm um jeito diferente de enxergar as coisas, esses habitantes escondidos podem ser um tesouro bem precioso. Faço parte do segundo grupo, o dos que vêem e tenho grande contato com o primeiro, porque tenho dois filhos, um deles ainda não fez cinco anos.
Desde que me mudei, eu reparava na festança de toda manhã nos dois terrenos baldios próximos à minha casa. Era sempre uma profusão de asas coloridas, amarelas, laranja, brancas, creme, verde limão. Aos montes. Como esses terrenos são murados, eu só via o que aparecia por cima dele. E ficava imaginando como seria entrar lá para ver de perto toda aquela folia.
No ano passado, tentei fazer ensino domiciliar com meu caçula. Para saber os conteúdos que deveria ministrar, passei a seguir alguns perfis no instagram que trabalham com materiais lúdicos para a idade dele. Uma das atividades que mais vi foi acompanhar a metamorfose da borboleta. Era simples. Só criar uma lagarta como se fosse um bicho de estimação. Dando comida, limpando os dejetos. Tudo dentro de um espaço fechado, mas claro e bem ventilado, que podia ser uma caixa de sapato forrada com tule, para acompanhar as transformações.
Fiquei com muita vontade de fazer, não só para explicar pro meu filho, mas pra eu mesma ver. Nunca acompanhei esse processo de perto. Lagartas, eu vi bem poucas na vida. E os casulos de verdade, só conheci depois dos 25, na minha igreja. Tinha muitos na parte de dentro. Interessante acontecer isso dentro de uma igreja. É assim também quando nos tornamos cristãos. É uma transformação de verdade.
O maior obstáculo era capturar uma lagarta. Não tinha coragem de, depois de adulta, ficar procurando lagarta na rua e no jardim dos outros. Imaginava comigo a cena insólita:
- Minha senhora, boa tarde. Vi que você tem um belo jardim, mas suas plantas estão furadas. Será que a senhora não viu uma lagarta por aí? Se achar, poderia colocar num vidro e me dar?
Certamente, ela ia pensar que eu era doida. Também não achava seguro me embrenhar nos matos dos terrenos sem muro, pra ver onde tinha. Então, deixei esse desejo pra lá, meu filho hoje está na escola e segui com a vida.
Depois que começou o isolamento social, passei a ficar mais ainda em casa. Isso me sufocou um pouco. Para me distrair e contemplar o belo, passei a descer para o jardim do condomínio na hora mais quente, por volta das 12 e 13 horas, para fotografar as borboletas que apareciam. Era curioso porque quando eu não ia até elas, sempre aparecia alguma na escada, perto da minha porta ou então alguma mariposa perdida dentro de casa. Até libélula apareceu. Depois de uns quinze dias, esmoreci e não desci mais. Só fui sair de casa novamente na Sexta- Feira Santa, para comprar o peixe do almoço. Vindo para casa, o pequeno milagre aconteceu: caiu uma lagarta do céu. Bem, não era bem do céu, mas de um coqueiro. Caiu bem do meu lado, em um carro que estava estacionado.
Logo se passou um filme na minha cabeça, agradeci a Deus que sabia desse meu desejo e tive que interromper rapidamente meus devaneios antes que ela fugisse. Peguei uma folha qualquer mais comprida e saí quase correndo para casa com ela na folha em uma mão e na outra, a sacola do peixe.
O meu medo era duplo, tanto alguém ver e pensar que eu não tinha juízo, como ela cair no chão. Consegui chegar em casa rápido e fui atrás da única caixa de sapatos que tinha guardado. Não tinha tule em casa. Não dava para fazer o experimento do jeito que eu tinha visto. Improvisei então em um vidro vazio, daqueles de palmito. Pedi pra minha filha grande forrar com papel toalha e cobrir com papel filme furado. Como não tinha um suporte para a lagarta se pendurar quando chegasse a hora de virar crisálida, fui atrás de um galho e também de umas folhas pra ela comer. Trouxe uns oito tipos.
No outro dia, ela não tinha comido nada e estava pendurada em uma teia que ela mesmo fez. Parecia morta. Estava imóvel. Deixei quieta em cima de uma prateleira alta. No dia seguinte, ela estava casulo, totalmente diferente. Fiquei bestinha como eu não vi essa transformação. Aguardamos 12 dias e já estávamos desconfiando que tinha morrido. O casulo tinha quase a mesma cor marrom. Era bem diferente dos que a gente tinha visto.
Uma bela manhã de quarta-feira, fui acordada pelo marido avisando que ela tinha nascido. Estava lá no vidro. Enorme, pendurada de cabeça pra baixo, com as asas marrons ainda molhadas. De estampa, só uns olhos miúdos e umas manchas discretas. Uns olhos listrados também. Voou bem depressa pra janela, quando tentei ver como eram as asas abertas.
Com essa experiência, tive mais uma prova de que a vida é bem mais do que essa correria louca em que estávamos imersos. Nem sempre o mais belo está nas viagens que você faz pra fora. O belo pode estar escondido naquele terreno baldio que você passa em frente todo dia e nunca percebeu. Esteja sempre atento aos pequenos sinais. Deus fala por eles.
Publicado por Kelly Garcia em 25.04.20
31 anos de paixão
Até quase agora, estava matutando porque a cidade de Fortaleza é assim tão importante para mim, se nela não habito, se nela não nasci, nem meus pais. Daqui, de nativos, só meus dois filhos. E só nasceram nela por não haver hospital conveniado ao plano de saúde onde moro, em Caucaia, na Região Metropolitana. Se eu puxar por esse lado, não faz sentido nenhum esse amor todo por essa cidade que completou 294 anos em 13 de abril. Que elos ela tem comigo?
Entretanto, a paixão não é algo que siga alguma lógica ou tenha razão de ser. Isso já foi cantado e repetido muitas vezes, desde que o mundo é mundo.
Nosso relacionamento começou em 1989, quando fui apresentada a essa lourinha de doer na vista ao descer do avião no Aeroporto Pinto Martins, que era na Vila União ainda. Eu tinha só cinco anos, mas lembro bem das minhas bochechas afogueadas pelo calor. Em São Paulo, minha cidade natal, fazia dez graus e minha mãe me agasalhou bem para seguir a viagem só de ida, porque iríamos morar no Ceará. Eu estava com três blusas e duas calças e minha mãe logo me deixou só com uma peça de cada para o meu conforto, porque era quase meio dia, e com certeza passavam dos trinta graus.
De lá, seguimos já para Caucaia, onde meu pai logo comprou um apartamento naqueles conjuntos habitacionais dormitório, todos muito iguais na entrega das chaves e que depois se transformam em monstros esquisitos, porque não há regra de reforma. Por lá, fiquei até o ano passado e mesmo assim continuo sem morar em Fortaleza, embora agora me baste apenas uma pequena caminhada para cruzar a fronteira.
Em vez de pontos históricos ou turísticos, o meu primeiro ponto de visitas frequentes para conhecer melhor essa loura desposada do Sol foi o Bom Jardim, bairro de periferia, hoje muito violento. No meu tempo de infância, era raro ter fim de semana em que não fossemos lá, onde moram meus tios paternos. Foi no BJ que aprendi a descer ladeira de bicicleta cargueiro, a fazer roupas de boneca com os retalhos das lingeries que sobravam das peças que meu pai fabricava com meus tios e a apreciar o cheiro de plástico e essência alimentícia, que inunda qualquer mercearia fechada nos domingos de tarde. Esse meu tio, além de ser sócio do meu pai na confecção, também era comerciante muito conhecido. Hoje, meu pai também faz o mesmo na Jijoca de Jeri, mas isso é outra história. Também tentei dormir sem sucesso muitas noites, atormentada pela zoada e as picadas das muriçocas e dei graças a Deus por meu pai não ter construído no terreno que comprou por lá.
Já o mar, conheci primeiro o da Barra do Ceará. Antes da Ponte do Rio. No tempo em que atravessávamos de barco. Presenciei muitos entardeceres de perder o fôlego, peguei bicho de pé e comi muito peixe assado com farofa porque meu pai montou uma barraca de praia por lá, em sociedade com outro tio. Deve ter durado uns três anos, porque o mar levou ela em uma das ressacas fortes dos anos 1990.
O Centro, minha parte preferida dessa lourinha, comecei a conhecer a partir das idas anuais com meu pai para a rua Solon Pinheiro, onde ele trabalhava. Eu, míope desde os seis anos, todo ano ia comprar meu óculos novo e de bônus ia trabalhar com meu pai na autorizada da Panasonic, onde ela era técnico em eletrônica especialista em vídeo cassete. Na hora do almoço, a gente caminhava até a Pedro Pereira, a rua das óticas e escolhia a melhor oferta, sempre gracejando com as atendentes, o que garantia bons descontos. Antes, almoçava em algum restaurante qualquer, que meu pai sempre gostou de encher o bucho e não de apreciar comida gourmet.
Mais tarde, já estudante do Colégio Sete de Setembro, percorria os quarteirões da Rua Antônio Pompeu, entre a Avenida do Imperador e a Solon Pinheiro, para o mesmo fim, de comprar meus óculos. Mas, já com meus 13 anos, ia prestando atenção a cada detalhe, para não me perder e depois, tentar descobrir o que eram alguns casarões, como o da Loja Maçonica, que ficava no meio do percurso. O meu pai também me ensinou a me guiar pelos nomes das ruas. Até hoje, sigo seu conselho.
Sem sua companhia, segui os caminhos de antigamente, vinda da Estação João Felipe, como vieram os retirantes da seca e quem resolvia tentar a vida na capital. Na velha estação, me dei conta da poesia, das leituras no sacolejar dos vagões e da minha veia jornalística. Ali, ao lado, na Emcetur, tentei combinar as flores em arranjos enjambrados e aprendi os caminhos do artesanato, porque tinha uma amiga que vendia jogos americanos bordados para um dos boxes. Todo mês ela vinha algumas vezes com uma leva de caixas com eles, encomendadas. Eu não entendia o sentido de se colocar um pano branco e bordado embaixo do prato e que certamente iria sujar, mas hoje entendo. Nesse tempo, comprei as primeiras peças de decoração pra minha casa, três pequenos círculos de renda de bilro e prometi voltar com muito dinheiro para comprar tudo o que achasse lindo. Ainda estou à espera desse dia.
Na Praia de Iracema, sonhei com um amor eterno que durou menos de um ano. Como apreciei muito a vista da Ponte Metálica, passei a levar cada uma das tentativas de amores eternos lá, para que os estrados daquele ponto turístico abençoassem em definitivo. Não deu certo e o amor definitivo não foi firmado naquele cenário. Embora tenhamos ido lá depois de as alianças terem sido trocadas.
Já jornalista, Fortaleza me mostrou suas vergonhas, suas pérolas escondidas, seus mananciais e ali me entreguei de vez aos seus encantos e defeitos. Como não dá para explicar o porquê exato de uma paixão e nem mais me interesso por essas justificativas, sigo encantada por ela e devo ainda contar as cores de cada uma das tatuagens que ela gravou em mim, nesse velho álbum de fotografias das Cidades Invisíveis, das quais ela ocupa metade de tudo. Parabéns, lourinha, tudo de bom pra ti.
Publicada por Kelly Garcia em 18.04.20
As melancias salobras da Páscoa
Para vocês, leitores, talvez Semana Santa tenha sabor só de chocolate e de peixe. Se você for cearense, quem sabe acrescente o sabor do pão de coco. Mas na minha, o sabor mais forte não é bem esse.
Na casa do meu avô Doca Ribeiro, lá no Córrego do Urubu, em Jijoca de Jeri, a gente comia umas melancias plantadas no terreiro de casa na Sexta-Feira Santa. Eu, que sempre amei melancia, quando soube que ia comer essa fruta fiquei toda animada. Até porque lá a gente só comia mesmo as frutas do quintal. Quando meu avô abriu e eu vi que ela era branca por dentro e não vermelha, achei esquisito, mas ainda tinha esperança que fosse docinha como as do supermercado. Ele então partiu e deu um pedaço pra todos de casa, como fez Jesus na última ceia e ainda distribuiu as inteiras pra todos os filhos que moravam perto. Ao dar a primeira mordida, percebi que a melancia não era doce, mas aguada e sem sabor. Reclamei e o meu avô disse que era uma espécie de penitência comer aquilo no dia da Paixão. Que aquele era um dia de refletir e não de comer só o que se gosta. Fiquei com aquilo na mente e até hoje quando penso no que tenho de mais forte de sabor dessa data, associo logo a essa melancia.
Semana Santa, pra mim, também tem outros sabores que dão saudade. Ainda abraços que não são mais possíveis, seja pela distância, ou mesmo pela morte e agora, com essa pandemia, os que tenho condição de dar ainda foram adiados. Isso dói. Deu até vontade de tentar burlar as barreiras entre as cidades pra poder ir até lá. Mas não. Isso seria muita loucura e egoísmo. Fui em lotéricas e supermercado essa semana. Posso até estar com o corona sem ter sintomas. Nunca se sabe.
Voltemos às lembranças. Foi em outra Sexta-Feira da Paixão, por exemplo, que conheci Jeri pela primeira vez embaixo de chuva. E comi punhados de areia ao correr de um cachorro, e cair bolando, da Duna do Por do Sol. Quando caí, meus primos ficaram muito preocupados pra saber se eu tinha morrido. Em 1995, a duna era mais alta. Há estudos sobre isso.
Na D-20 do meu tio Zé Doca, que nos levou até lá, estavam o pai, a mãe, meu irmão, meus tios Lino e Terezinha e mais uns sete primos, todos crianças. Recordo bem a volta contra o vento, sentindo os pingos da chuva fortes na cara, no ombro, quase ferindo a gente. E eu só tinha onze anos.
Fomos advertidos antes de ir que poderíamos não voltar. Era um pecado sério ir se divertir na Sexta-Feira Santa. Mas, meu pai e meus tios, que não eram tão devotos assim, não ligaram pra isso. Eu até fiquei meio com medo. Mas estou aqui para contar a história, registrada também na primeira agenda diário, ainda com a letra redonda, guardada no meu cesto de vime das recordações.
Antes desse dia e até os 13 ou 14 anos, era sagrado passar esse feriado por lá. O meu avô Doca Ribeiro completava ano em março e às vezes coincidia a Semana Santa com o seu aniversário. Eram quatro dias de chuva, na maioria das vezes, olhando para as telhas velhas e adivinhando desenhos, jogando cartas apostando bombons e feijões, subindo nas árvores, bebendo água de pote e virando cururu na Lagoa.
Lá, era perto da Lagoa do Paraíso, aquela famosinha das redes. Mas, pelo menos no nosso pedaço, não tinha turista. O que tinha era cerca, um caminho bem estreito, lotado de planta, que podia ser seca e arranhar as pernas da gente e um pé de azeitona roxa e mangueiras pra gente merendar fruta, na hora das brincadeiras. Para atrapalhar, chegavam, às vezes, os cavalos do Mané Nego, que ele trazia pra tomar banho e a gente tinha medo e muita raiva porque eles faziam as necessidades dentro da lagoa e estragavam a nossa festa.
Também tinha muita galinha caipira e tapioca. E coco, que a mãe pedia aos meus primos pra buscarem lá em cima dos coqueiros. Nada de banho de chuveiro, tinha que pegar água na cacimba, no braço, que ninguém tinha bomba. E nada de tomar banho dentro do tanque. "Deixe de estragar água, menino", a vó Maria dizia. Também era ela que dizia: "deixa de correr atrás dos pintos, a galinha vai te bicar". E bicou mesmo, perto do meu olho. E botava os dois caçulas, que eram meu pai e o tio Lino no colo, os dois nenéns crescidos dela.
Já o vô ficava lá no tucum dele, de corda, lendo a Bíblia pra preparar as pregações da celebração dos três dias no prédio, que era uma pequena capelinha perto da casa dele. Nem lembro o padroeiro, mas acho que o terreno era cedido por ele, assim como acredito que deve ter mandado construir também. Na quinta, o lava pés, na sexta, a via sacra às três da tarde e no domingo mesmo, a páscoa.
A Bíblia dele era bem gasta, com uma capa de couro preta. Deixava as alpargatas igualmente gastas e de couro ali do lado e ficava mascando fumo e estudando. Vez por outra dava uma cusparada escura no chão de tijolos brancos, muito ruim de varrer e que ficava encardido ali perto da rede.
Na sala, tinha duas redes, dois longos bancos de madeira e umas cadeiras com assento de couro de boi e um lampião a gás, isso antes de chegar a energia elétrica. Depois que a luz chegou, em 1993, meu avô nunca permitiu ter televisão em casa. Dizia que só deixava as pessoas mais preguiçosas e ensinava o que não presta. Então, a sala só tinha esse mobiliário pouco e rústico, que favorecia o descanso e as conversas. Os bancos sempre estavam com muita gente quando íamos pra lá. As portas tinham tramela pra fechar e chave. E eram de duas partes. As paredes muito grossas denunciavam a idade da casa, baixa a partir dos próximos cômodos.
Em julho, faz 20 anos que ele morreu. Depois disso, fui poucas vezes nessa casa de novo porque foi vendida. Entretanto, tenho ela guardada no meu telefone e nos álbuns de família. Posso percorrer inteira na minha mente. Minhas memórias das cidades invisíveis incluem esse pedaço da Jeri, bem longe da badalação da praia e um pouco distante do Alchimist das fotos das blogueiras. Esse pedaço é só meu e de quem viveu ali comigo. Só existe na nossa cabeça. Virou cidade invisível.
Publicado por Kelly Garcia em 11.04.20
Montese e a costura das cidades invisíveis
Março acabou. Mas fiquei com a homenagem às mulheres da sociedade cearense bem viva na minha memória e me lembrei de outra mulher, essa anônima, também forte e sábia, que deve ser lembrada talvez só pela família, amigos e vizinhos, porém merecia mais que apenas essas lembranças poucas.
Com ela, conheci uma parte de um dos bairros mais populosos de Fortaleza, o Montese, apenas pelas suas lembranças de moradora ainda nos anos 1950, 1960 e 1970. Depois, a vida se encarregou de completar essa pintura de uma Fortaleza que não mais existe.
Essa mulher, Maria Silva, foi minha professora de catecismo. Quando a conheci era uma senhorinha de sessenta e poucos anos, assumida da idade com seus cabelos grisalhos, cortados à moda chanel. No tempo em que ela morou nesse bairro, me disse que tinha uma casa muito espaçosa. O marido, seu Roque, mantinha tudo sozinho, como era o costume nesses tempos e era um homem muito bom, por isso Deus o levou cedo para si, perto dos 40 anos, deixando a Maria sozinha para criar os cinco filhos. O mais novo, ainda ia completar dois anos. Antes de ficar viúva, ela se dedicava somente à casa e às crianças e fazia questão de sempre deixar os filhos bem arrumados, passando com todo cuidado as roupinhas de cada um com o grude, para deixar sem uma rusga que fosse, principalmente o uniforme da única filha mulher, a Socorro, que estudava em um colégio de freiras muito tradicional e que hoje não existe mais.
Depois da morte do seu Roque, ela passou a trabalhar fora de casa e os mais velhos se encarregaram de cuidar dos mais novos. Teve que se reinventar e por muitos anos trabalhou na cozinha do Sesc. Era muito dedicada e organizada nas finanças. Lembro bem da sua letra bonita, redonda, com que fazia os balancetes financeiros do Apostolado da Oração. Talvez tenha aprendido a ser organizada pela vida mesmo. Devia ser um malabarismo grande sustentar cinco crianças sozinha.
Sei que hoje, nessa pós modernidade, tem muitos cursos e até profissões voltadas para ensinar as mulheres a se arrumar em casa e na rua. O tal do personal stylist, as cartelas de cores para garantir a harmonia das roupas com o tom de pele. Não sei se era próprio das mulheres daquela geração, mas nunca a vi desarrumada. Mesmo em casa, cozinhando para os netos, ela usava sua calça comprida, uma camisa e um sapatinho só para os ambientes domésticos. Uma lady. Perfumada, ela variava entre os clássicos Charisma e Toque de Amor e sempre com um discreto batom daqueles 24 horas, verdes, made in China, que fica transparente na boca.
Com os alunos do catecismo, ela era paciente e nunca rude, mas sabia manter o dominio da sala de aula. Os mais inquietos ela colocava perto de si para que não atrapalhassem os outros. Eu era uma das falantes e ela investiu em mim. Ia me buscar e deixar em casa, porque minha mãe não gostava muito que eu fosse pras programações todas. Mas ela fazia questão. Dois anos depois, eu mesma tinha a minha turminha. Eu ficava com os pequenos, de sete e oito anos. E eu tinha 11 anos apenas.
Ficava impressionada com a dedicação dela, como senhora com mais de 60 anos, que nos dias de chuva ia deixar cada criança em sua casa depois dos ensaios das apresentações de música. Arregaçava a calça comprida, e só nessas horas usava a chinela havaiana e colocava um saco plástico grande, como aqueles de colchão para abrigar quatro crianças, duas de cada lado e enfrentar a chuva. Ela chamava de guarda chuva das Europas, brincando.
Pois bem. Mais tarde, já jornalista, tive que voltar ao Montese, dessa vez de verdade, por dois motivos distintos. A primeira vez, para escolher as roupas do meu casamento e me arrumar para o grande dia e, depois de muitos anos, para entrevistar, às cegas, alguém que tivesse uma casa antiga na Avenida Gomes de Matos, a mais movimentada do bairro. A ideia era minha. Era uma série de reportagens sobre a história das ruas de Fortaleza. Só que eu mesma tinha que encontrar meus personagens. Era jornal impresso.
Nesse dia eu dei sorte e consegui encontrar assim que desci do carro uma árvore enorme com cara de muito antiga e bati no portão de alumínio para ver quem morava lá. Era um senhor de 92 anos, jornalista, cirurgião-dentista, ex-combatente da Força Expedicionária Brasileira, Raimundo Nonato Ximenes e com uma história incrível. Pesquisador do bairro, ele comprou a casa ainda nos anos 1940, quando Montese ainda era Pirocaia. Lá, depois que a guerra acabou, constituiu família, aprendeu a ler aos 26 anos, se tornou motorista de ônibus, fez Odontologia e viu crescer os filhos, netos e bisnetos.
Nesse tempo, fiquei me perguntando se eles teriam se conhecido. Teriam trombado em algum mercadinho nos 20 anos que ela morou no bairro? Ela era uns cinco anos mais nova que ele. Até hoje eu não sei.
Nesse dia que entrevistei o R. Ximenes, percebi que as minhas Cidades Invisíveis são cheias dessas costuras, entre as minhas lembranças e as lembranças dos outros. Especialmente, nas coisas que parecem obra do acaso, como eu ter encontrado logo de cara esse personagem tão interessante. Nossa memória é um patchwork dessas lembranças coletivas, agora tão em risco por conta dessa pandemia. Os dois velhinhos contam mais de 90 anos, tomara que sobrevivam. Você tem conversado com os seus idosos? Como você os tem protegido? Talvez uma ligação possa te ajudar a saber mais sobre a sua própria história e conhecer suas Cidades Invisíveis com mais cores. Pra eles, cada dia pode ser o último, de uma forma mais forte do que para cada um de nós, mais jovens.
Publicado por Kelly Garcia em 04.04.20
As palavras voláteis no meio da rotina da quarentena
Pode parecer reclamação besta, mas bem que eu queria ter um lugar especial na minha vida para que a inspiração me visitasse. Um notebook moderno, branco, em cima de uma escrivaninha daquelas inglesas, de antiquário, com uma cadeira de design arrojado e bem confortável. Lá, eu teria uma pilha de moleskines lindos da Cícero, com muitas ideias manuscritas, ao lado de vários organizadores cheios de canetas e marca textos da stabilo. Na minha frente, uns três quadrinhos com aquarelas e mensagens inspiradoras em lettering. De um lado, uma enorme estante projetada com os meus livros e do outro, um janelão de varanda aberta para um descampado. Nesse lugar lindo, com passarinhos cantando, teria temperatura amena sempre, sem precisar de ar condicionado, eu escreveria sobre tudo e sem nenhum esforço aparente.
Mas, a vida real não é assim. Muitas vezes, escrevo em meio à muita zoada, por entre as migalhas de tempo que me sobram. Geralmente, escrevo primeiro aos garranchos no meu caderno das Lojas Americanas, sentada no sofá mesmo ou na mesa da cozinha. Depois, ligo meu velho notebook e tento passar a limpo o mais rápido possível e salvar a cada cinco minutos, pra que ele não trave e eu perca o que escrevi.
Eu sei que se não tenho uma hora só minha para escrever, muitas vezes, é por desorganização mesmo. Eu poderia fazer que nem a galera que acorda todo dia 5 da manhã, seguindo as dicas daquele livro famosinho, O Milagre da Manhã ou mesmo é obrigada a acordar nesse horário por trabalhar longe de casa. Já tive essa rotina por esse mesmo motivo. Mas dormindo uma da manhã fica difícil não parecer um zumbi acordando antes do Sol. A criatividade fica meio prejudicada com aquele zumbido do cansaço nos ouvidos. Comigo, pelo menos, não funciono desse jeito.
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.Por isso, saiba, caro leitor: as minhas Cidades Invisíveis são reveladas às vezes na hora de dormir, com os olhos já fechados. Outras, entre um café e a louça do almoço. Já tive ideias de textos enquanto tomava banho. Infelizmente, nem sempre alcanço o papel antes que elas fujam.
Palavra é coisa volátil, como o álcool hidratado, o normal líquido, que tenho passado do celular e nas chaves quando volto da rua nesses tempos de pandemia. Evapora. Como muita gente, eu também não consegui comprar álcool em gel. Estou me virando com esse mesmo e quando fui no supermercado nem esse tinha mais, tamanha a procura.
Essa crônica foi escrita logo depois do almoço, enquanto uma das minhas crianças fazia sua tarefa da escola e a outra chorava com raiva por não ter conseguido fazer também. É o meu mais novo, que precisa de ajuda por estar aprendendo ainda a riscar suas primeiras palavras, ainda tortas e sem forma definida. Só tem quatro anos. É para perto dele que eu vou, pra ajudar, porque nesses dias de quarentena escolar ainda não me organizei para fazer nenhuma atividade pedagógica com ele. Por isso, até o próximo sábado, gente!
Publicado por Kelly Garcia em 28.03.20
Em busca das próprias cidades invisíveis
Em um tempo desses, com as pessoas se isolando em seus próprios núcleos familiares, nas suas casas e alguns muitos confinados nos seus próprios quartos, talvez fosse divertido procurarem suas próprias cidades invisíveis. Cavar aquelas recordações que todo mundo tem e quem sabe fazer um blog ou publicar no instagram alguma coisa. Tem gente que tem uma veia escritora e talvez não saiba. O momento para experimentar é esse.
Eu, bem que gostaria de experimentar mais dessa criatividade, mas meu trabalho aumentou bastante depois que as aulas foram suspensas.São quatro bocas para alimentar com comidas caseiras, que o ifood está pela hora da morte e o tempo é de economias. Fora a bagunça que todos juntos fazem, inclusive eu. Graças a Deus, um dos meus trabalhos não foi cancelado, logo tenho um home office de tempo integral também. Mas, antes de terem sido suspensas as aulas, eu já tinha feito um estágio pesado com todos doentes em casa no Carnaval. De confinamento eu entendo, podem ter certeza.
Pra manter minha própria sanidade, a escrita sempre foi uma espécie de remédio. Quem sabe pra vocês também não seja?
Sobre essas doenças letais que o mundo tinha dado uma pausa em ter com grandes contágios, eu só entendo as dos livros de ficção que li e da história do Ceará. Os filmes mesmo, eu nunca fui de me impressionar. De doenças, eu lembro do surto de cólera por aqui, em 1994 e da meningite. Da H1N1, que tive algumas amigas com parentes que ficaram na UTI. Mas nada dessa proporção. O ebola, eu tive medo que chegasse aqui, mas ele ficou só na África e das moscas tsé-tsé, também de lá, que eu vi nos livros da minha mãe e deixavam as pessoas como zumbis, com a doença do sono. Mas tudo reduzido às regiões.
Quando recebi um áudio dizendo que seria um caos quando chegasse ao Brasil e ao Ceará, pensei que fosse fake news. Mas, infelizmente, parece que daqui a pouco a Itália vai registrar os números recordes de mortos que Fortaleza já teve nos tempos da varíola. É, o Ceará já viveu um caos como o da Itália. Em 28 de novembro de 1868 morreram mil pessoas em um só dia, inclusive a mulher do presidente da Província. A data ficou conhecida como o Dia dos Mil Mortos e fez com que fossem abertas valas comuns para sepultamento em massa. Essas valas foram descobertas por acaso na Jacarecanga, quando operários faziam as obras do Sanear. Vi na ficção no livro A Normalista, do Adolfo Caminha.
Se o mundo todo está passando por isso, quem somos nós para sermos imunes?
Dessas histórias de fé nesses tempos difíceis, ainda tem um registro resistente na Avenida Bezerra de Menezes. Descobri isso ao fazer uma das reportagens sobre as ruas de Fortaleza, em 2014, uma das invenções para eu escrever sobre o que eu gostava, nos tempos do jornal. A capela de São Francisco de Paula fica na própria avenida, logo depois do North Shopping, vizinho do Bradesco. É a edificação mais antiga da via, de 1865. Foi erguida a pedido de Antônio Francisco Góes e sua esposa, Angelina, cumprindo uma promessa por nenhum membro daquela família ter morrido com o cólera. Essa família hoje é dona do Sítio São Luís, em Pacoti. Um dos lugares mais lindos da serra, com uma fazenda de café com mais de 100 anos. Conversei nesse tempo com a Cláudia de Góes, que me contou essa história.
A fé salvou essa família porque Deus teve misericórdia. É tempo de clamar a Deus para que ele tenha essa misericórdia de novo. De reatar os laços com os de casa. Buscar conversar com os idosos pela tecnologia mesmo, whatssapp, skype, que estão tão sozinhos. Se encontrar com você mesmo. Quanto de entretenimento tem entupido nossos dias e bloqueado nossa criatividade? Não desperdice sua quarentena. É tempo de se reinventar.
Publicado por Kelly Garcia em 20.03.20
Visitando as cidades invisíveis dos outros
Por ter sido repórter de coluna social por alguns anos, tive o privilégio de conhecer várias mulheres ditas importantes. Em uma das muitas ligações que fiz atrás de notícias para as colunas, que geralmente são sobre as viagens e aniversários dessas pessoas da sociedade, tive oportunidade de conversar com uma das dez mulheres mais elegantes do Brasil segundo o colunista carioca Ibrahim Sued, a dona Beatriz Philomeno Gomes, hoje, com 96 anos.
Como eu estava com tempo nesse dia, aproveitei para matar minha curiosidade sobre vários aspectos que eu sabia mais ou menos como eram com as minhas avós, mas não com uma pessoa de posses como ela e ainda esposa de alguém tão importante, como o industrial Francisco Philomeno Gomes, que era dono de boa parte da Jacarecanga, um dos bairros ditos elegantes da capital, antes da debandada geral para a Aldeota.
Dona Beatriz, por sua vez, pertencia à elite do outro bairro nobre da Fortaleza de então, o Benfica, com seus muitos bangalôs elegantes. Ela era do clã Gentil, família do dono da hoje reitoria da Universidade Federal do Ceará e um dos primeiros banqueiros da capital cearense.
Em uma época em que as mulheres se dedicavam mais à familia do que às carreiras profissionais, nem sempre o ensino era valorizado. Mas dona Beatriz, por pertencer a uma família tradicional, foi enviada a Petrópolis para o tradicional Collège Notre Dame de Sion, internato católico feminino procurado pela maioria das famílias abastadas desse tempo.
Nesse tempo em que eu a entrevistei, pensei com meus botões para quê uma moça precisaria estudar tanto se o destino era se casar e ter muitos filhos? Pensamento bem medíocre o meu. Mais tarde eu tive a prova de que só é possível motivar de verdade para os estudos se você mesma for um exemplo. E dona Beatriz era. Ela se casou aos 17, mas era fluente em inglês e francês, considerava a música bastante importante e sabe tocar piano, violão e acordeon! Teve oito filhos, Pedro Philomeno Neto, Roberto Frederico, Francisco Philomeno Júnior, João Vicente, Carlos Alexandre, Júlia, Tida e Sarinha. Imagine a trabalheira, mesmo com funcionários para ajudar!
Ao conversar com uma das filhas dela, a Júlia, que também é jornalista, ela me contou que mesmo com todas as atividades sociais, ela era muito presente. "Mamãe sempre foi muito presente, não só na minha vida como na de seus oito filhos. Mesmo quando estive interna por cinco anos no Sacré-Coeur do Rio de Janeiro, ela se fazia presente desde a arrumação do nosso quarto, decorando todo bonitinho às cartas frequentes cheias de aconselhamento. Nas férias, sempre tínhamos tios e primos como hóspedes e a programação era intensa, sempre capitaneada por ela", lembra.
O que eu também me perguntava era como ela tinha conseguido se manter tão elegante dando a luz a tantos filhos. Eu, com apenas dois, ainda não estou na minha melhor forma.
Quando perguntei a ela qual era a sua prioridade no tempo em que os filhos eram jovens, ela me disse que era investir em um ambiente que os deixasse próximo a ela. Na ampla casa da Jacarecanga, eram três pavimentos, além de quadra de esportes, campo de futebol e piscina, tudo para que os filhos trouxessem os amigos e assim ficassem protegidos dos muitos perigos, que naquele tempo já rondavam os adolescentes. Mesma preocupação de todas as mães.
Eu sei que fiquei tentando localizar essa casa na Jacarecanga e não consegui. Claro, ela foi demolida. A fábrica São José, das famosas redes Filomeno, um dos empreendimentos da família, hoje é o Centro Fashion. Já estive por lá pra conferir as promoções, inclusive.
Interessante que esse foi o tema principal da minha última leitura, O Caminho para Casa, de Kristin Hannah. A protagonista também usou todas as formas possíveis para que os filhos adolescentes ficassem sob suas vistas, mas no caso do livro, mesmo todo esse cuidado não foi suficiente. Ainda bem que com dona Beatriz, deu tudo certo. Os oito filhos se formaram e hoje todos são bem sucedidos em seus caminhos. Quase todos são empresários.
Outra dama importante da sociedade fortalezense que entrevistei foi dona Cybele Pontes, mãe de um dos mais bem sucedidos empresários da cidade, o José Carlos Pontes, dono da Marquise, do hotel Gran Marquise e do Shopping Parangaba, entre outros empreendimentos.
Fui conhecê-la pessoalmente ainda muito jovem, no meu primeiro trabalho como repórter, já para coluna social. A lembrança mais forte foi a amplidão da sala daquele apartamento na Beira-Mar, que sozinha era capaz de ser maior que meu apartamento todinho, da Cohab. E aquela vista incrível, em pleno por-do-sol. A minha sorte é que eu só tinha ido mesmo era acompanhar o fotógrafo. Fiquei sem palavras.
Mais tarde, uns bons anos depois, entrevistei-a novamente pelo telefone. Dessa vez, era pra perguntar o que ela estava lendo, porque era presidente de uma das mais tradicionais entidades de fomento à leitura, a Sociedade das Amigas do Livro. Para minha surpresa, ela me disse que estava lendo o terceiro livro de uma saga do moderno escritor Ken Follet. Guardei a indicação, mas ainda não me atrevi a comprar porque é muito extenso. Ficção histórica da melhor qualidade. Fiquei impressionada como alguém já depois dos 80 anos conseguia ler algo com tantas páginas e com tanta voracidade. Cada um dos calhamaços tinha mais de 800 páginas. Fiquei chocada.
Publicado por Kelly Garcia em 14.03.20
Praça da Bandeira
Eu vivia procurando qual era a Bandeira dessa praça. Será que era por causa do Obelisco em frente à Faculdade de Direito da UFC? Nunca soube mesmo o porquê. Sei que essa era a praça mais próxima da minha escola e só o que tinha eram alunos que iam pra lá pra namorar depois da aula ou mesmo para gasear.
Minha melhor amiga, a Analice, era uma dessas. Namorava um rapazinho que tinha acabado de nascer o bigode, o Marquinhos. Os dois tinham 15 anos. Ele estudava na nossa escola no ano anterior, mas tinha passado no exame da Escola Técnica e tinha saído pra fazer o Ensino Médio por lá. Os dois se encontravam duas vezes por mês depois da aula na praça porque moravam muito longe e os pais dela não sabiam de nada.
Pois bem. Como eu era muito amiga da Analice, aproveitava pra ir com ela e segurar vela, como se diz. A mãe dela confiava em mim e a gente sempre voltava juntas da escola, era uma forma de ela não desconfiar de nada. Levava um livro e ficava lá naqueles bancos de praça, bem desgastados. Eles ficavam em frente à uma grande igreja Assembleia de Deus, vizinho da Casa do Barão de Camocim. Eu ficava no banco seguinte, esperando eles se despedirem. Já nesse tempo, eu achava meio esquisito e antigo a gente estar fazendo isso nesses bancos de praça e ficava me perguntando quantos adolescentes como nós teriam lembranças de lá.
Nesse tempo, já tinha os cinemas nos shoppings e era bem mais popular e bacana fugir da escola pra esses lugares do que uma praça derrubada daquelas, em pleno Centro. Mas, certamente muita gente fez isso. Afinal, aquela é uma área cheia de escolas e ainda tem a Faculdade de Direito, ali vizinho.
A Analice nunca vai esquecer daquela praça, tenho certeza. Não só porque o Marquinhos foi o primeiro namorado dela, mas também porque ele era um adolescente muito diferente dos outros. Mesmo nos anos 1990, ele gostava muito de música brega e Roberto Carlos e terminou com ela cantando uma das músicas do autor do “Esse cara sou eu”. Eu fiquei doida pra rir porque assisti essa cena tosca. Mas ela tava malzona e tive que me segurar pra consolar. Ele cantando de frente pra ela, morrendo de chorar, os versos da música De Tanto Amor:
“Vou te olhar mais uma vez/Na hora de dizer adeus/Vou chorar mais uma vez/ Quando olhar nos olhos seus, nos olhos seus...
Ele saiu sem olhar pra trás, como se fosse o ultimo capítulo da novela e depois ela me disse que ele tinha terminado porque eles se viam muito pouco e ele achava que ela merecia um namorado mais presente. Eu achei que foi um livramento, porque um cara daqueles não era muito normal. Depois, ele abandonou o curso técnico e voltou pra escola. Eles até ficaram amigos, mas não voltaram a namorar. Nunca mais tive notícias dele.
Hoje, quando passo em frente à praça, fico segurando o riso lembrando daquela situação. Virou um trecho das minhas cidades invisíveis. Será que tem mais algum leitor que teve a praça como testemunha de um louco amor juvenil? Aguardando as respostas.
Publicado por Kelly Garcia em 07.03.20
Sons que não queria ter ouvido
Você consegue ouvir os sons de Fortaleza? Se seu ouvido for bem apurado e for cedo da manhã, você poderá identificar até mesmo os pássaros. Serão rolinhas ou pardais? Um sibite?
Sou de um tempo em que os fones de ouvido já tinham sua popularidade. Os walkmans já estavam na cintura ou na bolsa dos adolescentes. Mas hoje, vejo que passaram de populares para quase unanimidade nos ouvidos de quem passa. Tudo bem que você escutar sertanejo , funk ou um forrozão bem alto em cada esquina não é assim tão agradável. A não ser que você goste dos estilos. Mas se você está sempre com fone, não vai perceber as nuances dos lugares. Nem as conversas paralelas tão inspiradoras, que podem bem render um texto ou mesmo umas boas risadas, especialmente dentro do ônibus.
Aqui, acolá, nas muitas viagens de ônibus e trens que fiz entre a Caucaia e Fortaleza, eu usava meus fones. Mas, algumas vezes ele estava quebrado e foi numa dessas que uma mulher conversadora puxou papo comigo. Era perto de oito da manhã e ela estava atrasada para o serviço. Era doméstica em um daqueles apartamentos chiques da Beira-Mar. Estávamos no Circular 1. Nesse tempo, eu já trabalhava com coluna social e imaginei que ela poderia trabalhar na casa de alguém que eu conhecesse. Preferia não ter sabido daquela história.
Ela, com uma voz bem alvoroçada, me disse que não aguentava mais aquele serviço. E não era por ser pesado, mas pelos assédios do patrão. Eu perguntei pela idade do sujeito e ela me disse que ele já tinha mais de 80, mas era forte. Queria passar a mão em todas as empregadas, ela tinha sido avisada pela mais antiga da casa. Eram três, uma para passar roupas, uma pra cozinhar e a da faxina. Essa era a passadeira, a que avisou.
Quando isso acontecesse, ela disse que reagiria, e sairia sem dar explicação, mas não foi bem o que houve. Ela ficou paralisada de vergonha , mas precisava do dinheiro. Chegou a contar para a patroa, esposa do velho nojento há mais de 50 anos e não deu em nada. A coitada da velha vivia chorando pelos cantos porque ele também abusava dela e gastava muito do dinheiro que eles tinham com prostitutas. Sei que chegou a hora de ela descer e antes disso, eu perguntei o nome dele. Infelizmente, eu conhecia ele sim das colunas sociais. Mas nunca tinha visto na vida.
Anos depois, pra ver como é o destino, um pregador de peças, eu tive de entrevistá-lo. Quase fiquei sozinha com aquele velho. Aquela desgraça era dona de um monte de imóveis históricos, era gente importante mesmo, mas tinha passagem na polícia com homicídio também. Me deu um frio na espinha, mas foi o jeito. Quando vi a secretária dele, que tinha mais de 40 anos de serviço, fiquei pensando que talvez ele tivesse assediado ela também. Que medo e nojo eu senti naquele dia.
Uma pena que essas histórias tristes me sigam por onde eu vou. Essas eu tenho vontade de tornar visíveis pra que acabe a impunidade. Mas a vida não é assim. Talvez, esse abusador só pare quando morrer. E isso ainda não aconteceu.
Publicado por Kelly Garcia em 29.02.20
Uma carta para minha filha de 12 anos
Querida filha,
Hoje é o segundo dia dos seus doze anos de vida. Queria lhe fazer uma homenagem, mesmo que você fique com vergonha. Isso porque, aos 12 anos, já se é adolescente e nesse período da vida, a gente acha que tudo é passar vergonha. E nós, os pais, somos os melhores nesse ramo de fazer os filhos passarem vergonha.
Como o nome dessa coluna aqui é Cidades Invisíveis, eu andei pensando que nesses últimos doze anos, o que mais fiz foi tentar mostrar essas cidades pra ti. Essas que guardei aqui dentro nos meus quase 37 de vida. Foi contigo que desde os dois anos teus que eu atravessava a cidade pra ir trabalhar e te deixar na creche Giramundo, que se mudou e deixou em seu lugar um estacionamento, tão parecido com os outros muitos prédios e casas históricas que deixaram de existir para terem o mesmo destino.
Como o trajeto era longo, duas horas na ida e duas na volta, eu ficava arranjando distrações para que você não ficasse entediada e imaginava um mundo de coisas nas paisagens que via pela janela do ônibus.
O Paço Municipal, onde está uma parte do Rio Pajeú, ali pertinho do Mercado Central, se transformava na Floresta em que o Lobo Mau e a Chapeuzinho se encontravam. Ali, tenho certeza que é praticamente invisível para a maioria das pessoas, mas o Circular passava do lado. Os viadutos se transformavam em montanhas russas. Eram assim as nossas viagens diárias entre o Araturi e o Dionísio Torres.
Quando você fez três anos, a gente viajou juntas para São Paulo. E lá eu te mostrei também os lugares das minhas lembranças. Entretanto, diferente daqui, o Ibirapuera e o Zoológico pareciam muito com os de 20 anos atrás. Notei poucas diferenças. Por lá, te levei pra ver os muros da casa em que eu nasci, na Praça da Árvore, porque ela estava à venda e já tinha caído uma parte. Conhecemos alguns lugares novos também, como o Aquário, o Museu Catavento e o da Língua Portuguesa.
Por aqui, fiz questão de te mostrar o Farol do Mucuripe, aquele que falei na crônica da semana passada, pensando que algum dia ainda poderia te levar lá. Você até fez um desenho. Mas, de lá para cá, a situação piorou mais ainda. Não sei se poderemos ir juntas lá. Pode ser que caia antes ou que você não sinta nenhuma vontade de ir.
Assim como muita coisa mudou nesse doze anos que você tem de vida, tem coisas que morreram na sua memória. Desses passeios muitos que fizemos antes dos seus cinco anos, você quase não se recorda de nada. Hoje, seus interesses são outros. Sua personalidade é tão diferente da minha. Até tentei te levar outro dia para os passeios que fiz com você pequena, mas foi diferente, você não viu mais tanta graça. Tudo mudou. As pessoas, os seus gostos, a cidade. Eu mudei também.
Hoje, nem tenho mais tanta vergonha de escrever essas coisas e mostrar pro mundo. E a vergonha que eu sentia quando minha mãe queria me beijar em público também passou. Quem sabe em um futuro próximo a gente tenha os gostos urbanos parecidos de novo? Por enquanto, os filmes, as séries, os lápis e as canetas continuam nos unindo e nos fazendo sorrir como agora.
Parabéns
Publicado por Kelly Garcia em 22.02.20
O Velho Farol do Mucuripe
Qual a serventia de um farol? Não seria para orientar os marinheiros sobre a posição da costa?
Eu conheço um que se tornou praticamente invisível depois que se tornou obsoleto, o Farol Velho do Mucuripe, em Fortaleza. Hoje, ele não passa de um monte de ruínas em que dormem muitas lembranças de namorados que aproveitaram a sua vista para fazer juras de amor, acredito eu. Nas suas paredes, uma pichação diz que é um motel.
Estive por lá em 2012, logo quando comecei a ser repórter de rua pela segunda vez. Sonhava em ver de perto aquele prédio. Mesmo sabendo que estava bem deteriorado, até porque era uma matéria de denúncia. Mesmo sabendo que era extremamente perigoso. Eu sabia que aquela era uma oportunidade única. Talvez nunca mais pisasse naquela área da cidade.
Quando fui lá, fiquei tão impressionada com a estrutura que cheguei em casa ainda matutando. Um prédio de 1846 viu toda aquela região ficar totalmente outra. Talvez fosse só areia e coqueiros ao redor daquele Farol por muito tempo. Na inauguração, era a época ainda do império. Passou boa parte do segundo reinado, atravessou muitos mandatos de presidentes e funcionou até 1957, quando foi construído outro, mais moderno, em uma região mais alta. Em 2017, esse outro deixou de ser usado e construíram um ainda maior. O sexto maior do mundo. Um colosso.
Naquele 2012, eu ainda sonhava que poderia levar minha filha para se admirar com aquela vista e aquela arquitetura. Cheguei toda empolgada pra mostrar uma foto e ela, desenhou um parecido . Tinha só 4 anos. O desenho deixei no meu facebook.
Cá estou eu, oito anos depois sem nenhuma esperança de ver de novo o farol velho. Se naquele tempo que ainda não existiam as facções, tivemos que ir com a polícia, que dirá agora. Fora que ele pode cair em breve, porque faz tempo que não há qualquer tipo de reparo.
A foto do Google denuncia que não tarde isso. Virou cidade invisível. Ainda bem que há fotos. Pinturas. E que pude guardar aqui dentro sua vista. Uma pena.
Publicado por Kelly Garcia - em 15.02.20