Era por volta de 22h30. Em mais uma das noites iguais, eu pedia para o meu filho caçula de três anos agilizar o fim do banho porque eu mesma queria tomar o meu e ir dormir. A noite anterior tinha sido agitada. O meu bloco se transformara em rota de fuga. Ao longe, a zoada de tiros que eu tinha aprendido a distinguir dos fogos de artifício. Toda madrugada. Estava virando uma rotina dos infernos.
De repente, escutamos um estampido alto. Era tiro, com toda certeza. Um, dois, três, quatro, cinco, seis. Meu filho, molhado ainda, sem roupa, deitado no chão, pensou que era uma nova brincadeira. O terror nos nossos olhos. O alívio, ao perceber que todos nós estávamos bem. Não era na nossa casa.
No bloco de trás, um grito de mãe desesperada. Logo, chegam mais pessoas. Da janela, perguntamos o que tinha acontecido. Deram seis tiros em uma adolescente de 14 anos. Eram novos vizinhos que moravam lá há menos de um ano. Depois, soubemos que a moça era faccionada e tinha “rasgado a camisa”. No colégio da esquina, a pichação da facção rival rasurada. Tinha sido ela, em um rompante de coragem, talvez pela idade…
Assim, a ficha caiu e percebemos que estávamos no meio de uma guerra por território. Dessa vez, os tiros foram perto demais. Essa guerra não era nossa, mas poderia sobrar pra gente. E se fossemos atingidos por uma bala perdida? Os tiroteios eram praticamente diários. Não tinha jeito, teríamos que nos mudar.
Dali a dois dias, encontramos outro lugar para morar. Não importava se teríamos que pagar aluguel e abandonar a casa própria, minha moradia por 30 anos. Depois, a gente aluga, vê o que pode ser feito. O que não dá é para conviver com esse inferno. Isso não é lugar pra criar os filhos. Não tinha como discordar.
O dinheiro do décimo foi o caução do aluguel do novo endereço. E mudei de casa tão rápido que trouxe tudo em sacolas pretas. Até o lixo da casa antiga, porque não havia tempo para triagens.
Tem seis anos que isso aconteceu e até hoje os tiros ecoam na minha mente. Se eu ouço fogos, eu me confundo e sinto arrepios. Esse episódio deixou sequelas, como não poderia deixar de ser.
Então, ao ver uma operação como a que ocorreu no Rio de Janeiro, eu me aperreio e penso nas pessoas que moram por lá. Parece que vivo tudo de novo. Sei bem como é difícil estar no meio do fogo cruzado. Eu pude me mudar para um bairro mais tranquilo. Mas e quem não pode? A vida normal se mistura com esse caos. Deitar no chão vira rotina. Assim como procurar um abrigo ao ouvir qualquer barulho suspeito.
Outra particularidade que infelizmente conheci foi a sensação horrível de ver conhecidos, pessoas que eram da nossa rotina, morrerem devido ao envolvimento com o tráfico.
A última vítima que me lembro era o filho único da antiga vizinha da esquina. O menino, de 18 anos, era filho adotivo do casal. Estudou em escola particular, tinha acesso a tudo de melhor que o pai, mecânico e a mãe, crocheteira, podiam dar. Na adolescência se tornou rebelde e passou a dar ouvido às novas amizades. Depois, já mais velho e decidido a sair desse meio, arranjou um trabalho. No primeiro dia, foi assassinado na porta do supermercado em que foi contratado como empacotador.
Na violência urbana, são muitas as faces, as vítimas, os algozes e as complexidades. As lembranças voltam quando vejo o noticiário e me trazem temor porque sou mãe de um adolescente e de um pré-adolescente. Seria maravilhoso se houvesse uma forma fácil de trazer paz ao mundo e acabar com todos esses problemas em um estalar de dedos. Por enquanto, a gente, para seguir com a vida, muda o pensamento para outro tema. Ou é isso, ou a vida paralisa e o medo invade a rotina. Esse é o caminho mais rápido para adoecer e eu escolho não seguir por ele.




































































































































































































































































































































































































































































































































































































































































































