Crônicas por Kelly Garcia
As máscaras de oxigênio da maternidade
A vida e as outras mulheres cobram muito das mães. Elas devem ser guerreiras, exigentes, disciplinadas, atenciosas. Os filhos devem estar em primeiro lugar absoluto. As roupas melhores, o lazer, os estudos. Tudo deles deve ser o melhor e, se possível, a única coisa na qual se deve investir.
Na cabeça de muitas mulheres, especialmente as mais velhas e também na dos homens, a mãe que ousa fazer algo por ela mesma não passa de uma egoísta. Uma pessoa fútil.
Como assim uma mãe querer sair para dançar? Fazer academia? Um curso? Ter um hobby? Quem nunca encontrou alguém em um evento e teve que encarar como primeira pergunta aquela clássica e chata: mas você deixou seu filho com quem?
Acreditando nessa premissa de que você precisa se anular o máximo possível para ser uma boa mãe, especialmente se você cuida deles sozinha, muitas mulheres vão murchando. A energia para viver vai diminuindo e a gente passa a ficar no automático. No tempo que sobra, dormimos e quem a gente era e o que gostava de fazer vai ficando pra depois.
Assim passam semanas, meses, anos e, para algumas, décadas. Quem passa mais tempo desse jeito, muitas vezes, passa a transbordar amargura e culpa os filhos, quando adultos, por todo esse sacrifício.
Outras adquirem algum problema de saúde crônico ou adoecem de algo grave e algumas partem dessa vida. E mesmo assim, as pessoas ainda encontram uma forma de culpar essas mulheres. "Tá vendo? Fulaninha não se cuidou, por isso tá doente/faleceu".
Eu acredito em um maternar mais leve. Em que haja escuta, doçura e espaço para eu fazer minhas vontades também. Não dou conta de ser guerreira o tempo todo. Na verdade, nem de guerra eu gosto.
Aprendi de uma forma bem difícil que se eu não me priorizar, especialmente nos cuidados com a saúde, eu não vou conseguir cuidar de ninguém.
Então, se é para ser julgada, prefiro encarar a sociedade com o rosto corado de sol da praia e a mente repleta das ideias e histórias dos livros que eu li no horário do almoço ou quando eu fechei a porta para ter meus momentos sozinha em casa.
Fico triste porque, infelizmente, muitas mães continuam nessa guerra perdida de buscar agradar a um mundo que não vai tomar nosso lugar e cuidar dos nossos filhos quando a gente tombar de exaustão.
A gente precisa encontrar nem que seja 15 minutos do dia para fazer algo por nós mesmas. Pode ser comer um chocolate, dar uma volta no quarteirão, olhar o pôr-do-sol. Escrever uma página desabafando. Chorar um pouco pra aliviar, conversar com uma amiga, ir na academia, assistir tv.
Momentos como esses podem salvar uma vida. Literalmente.
Das alegrias bestas do cotidiano
Depois de uma semana super caótica, finalmente, uns dias de paz. Não que a vida tenha parado de aperrear. Longe disso. Do nada, vi de novo as cores das nuvens. Me alegrei com o cheiro gostoso do café do Léo, com o pão de queijo no ponto que eu gosto, logo de frente para o portão do meu condomínio.
Para continuar essa alegria, era só colocar Yamandu Costa nos fones de ouvido e seguir para deixar o caçula na escola. Em frente à escola, permanece, como sempre, o pé da minha flor preferida, o jasmim amarelo. No chão, um tapete de flores caídas. O perfume marcante no ar.
Ao atravessar a passarela por cima da BR, a esperança era encontrar os cajueiros carregadinhos de flor, com galhos entrando pelas grades. As flores do caju, culpadas do nariz entupido do João e de meio mundo de alérgicos que moram nos arredores. Porém, são tão simples e bonitas, assim como o cheiro de mato que sobe toda vez que eu desço a rampa para pegar o meu ônibus para o trabalho.
Na rua padre Mororó, o canto dos pássaros nos dois pés de ficus benjamim da parada de ônibus dão um ar mais poético aos dias, assim como o belo casarão dos anos 1930, do outro lado da pista.
Em um hospital, fotografei com o celular e o olhar, há dois meses, o chão tingido de rosa pelas flores de jambo. Dessa vez, eram os frutos caídos, assim como pássaros cantando, as copas das árvores cinquentenárias. O tempo e as estações seguem passando. Não podemos impedir a passagem dos meses e o encadear dos acontecimentos. O fluxo da natureza é implacável. Não há como apressar ou retardar o florescer e o amadurecer dos frutos nas árvores. Todas têm as suas épocas.
Enquanto o meu olhar consegue, colho motivos miúdos para seguir sorrindo. São migalhas do divino, que me alimentam e colocam para seguir em frente. Cada um tem as suas próprias motivações para continuar. Eu me apego com essas, porque são mais fáceis de achar nos caminhos. Meu olho é apurado.
Isso só não me garante companhia para a contemplação e, um dia desses, meus filhos reclamaram que, por eu ter ensinado esses segredos para eles, é difícil fazer amizades. As pessoas estranham, não compreendem bem.
Um dia, talvez eles entendam que isso é dom. Escutar o que quase ninguém ouve. Enxergar o escondido. E que salva a gente em muitas horas. Já me salvou mais de uma vez.
As floradas de Fortaleza
A primavera chegará, mesmo que ninguém mais saiba seu nome, nem acredite no calendário, nem possua jardim para recebê-la. (…) É certo que a primavera chega. É certo que a vida não se esquece, e a terra maternalmente se enfeita para as festas da sua perpetuação”. Cecília Meireles
Aprendi com a cronista Erilene Firmino a observar a primavera e a florada dos Ipês amarelos em Fortaleza. Por algum acaso da vida, meu caminho durante todo o tempo em que trabalhei no veículo de comunicação em que nos conhecemos, era a Avenida Domingos Olímpio. Essa movimentada via da cidade tem uma ciclovia inteira dedicada aos “pés de cuscuz”, como muita gente apelida as árvores quando estão com as flores todas ocupando as suas copas.
Por conta do meu trabalho como repórter e as crônicas dessa amiga em um tempo em que eu ainda nem sabia que podia ser lida para além das notícias e reportagens, eu passei a reparar na primavera em Fortaleza.
Na capital cearense, só temos o período de seca e de chuvas. Aqui, só inverno e verão. Vivendo pertinho do Equador, temos poucas variações nas estações do ano.
No entanto, se você prestar bem atenção, temos tempos que se seguem ordenados para que as ruas se pintem de diversos tons vibrantes. Tem o tempo do flamboyant, com sua flor vermelha com laranja e que cria uns tapetes vermelhos lindos nos meio fios, especialmente no fim da Avenida Bezerra de Menezes, pertinho do Colégio Santa Isabel, perto do mês de junho. Tem umas árvores apressadas nesse ano, quem puder, dê uma olhada na descida da Igreja da Prainha, ali do lado do Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura. O chão tá vermelho de flor.
Os pés de jambo também são bem exibidos com suas flores pink. Não sei o tempo certo delas, mas sei que os jambeiros que vi por esses dias já estavam com frutos. Há dois meses, era o tempo dessas flores.
Fim de julho e inicio de agosto, é a vez dos cajueiros encherem a cidade de pólen. Com isso, é só esperar pelo aumento nos casos de rinite alérgica. Umas florezinhas miúdas, cor de rosa, capazes de tanto estrago e tanto perfume.
Em agosto e setembro, os ipês rosa e amarelo explodem pela cidade toda. Eu gosto de associar os ipês ao renascimento e à primavera discreta que a Erilene me apontou em um tempo que eu não notava esse tipo de detalhe. Setembro, para mim, é tempo de lembrar que é possível mudar de rota, seja por acontecimentos importantes ou mesmo por ser o mês que antecede o do meu aniversário.
Entretanto, ano passado, só me dei conta da florada dos ipês uns quinze dias antes, ao avistar um ipê rosa florido enorme na praça da Igreja Nossa Senhora das Dores, na Avenida Bezerra de Menezes.
O ipê amarelo se tornou um dos símbolos da cidade de Fortaleza. Não acho que mereça esse título porque essas árvores não são tão presentes assim por aqui. Pelo menos, ainda não. Bem que eu queria que fossem.
Aqui, a população parece ter o mesmo apego pouco às arvores como têm ao patrimônio histórico. São raras as pessoas que sabem o nome das flores, das árvores. Tanto faz. Qualquer coisa é só plantar um pé de Nim que tem sombra. Eu acho tão estranho.
Que tal prestar mais atenção? Esse olhar aguçado me ajuda a perceber que Deus gosta de presentes inesperados. Quem mais poderia me dar flores naturais que nascem em árvores nos meus caminhos nos dias difíceis? Só Ele mesmo é capaz.
Carta para José Augusto Lopes
A gente não sabe quando vai ser a última vez que vai abraçar alguém. Nem quando será a última festa de aniversário. Será que se soubéssemos, aproveitariamos melhor os momentos? Ou chorariamos a saudade antecipada?
Olho para as nossas fotos no seu aniversário de 2023, Zé e lembro bem do quanto eu fiz questão de estar contigo. O teu abraço apertado, teu carinho, tua gaitada... Eu não poderia perder esse momento.
Fecho os olhos e volto no tempo um pouco mais. Bastava você entrar na redação que logo uma rodinha se formava, todo mundo disputando seu abraço cheiroso, seu afeto. Parecia um monte de beija-flor. Tua presença era doce, engraçada.
Naquele tempo, mesmo sem te conhecer, eu me admirei com o tanto que você era querido. Queria chegar perto para entender quem era aquela pessoa "famosa", que todo mundo queria abraçar.
Muitos anos depois, quando a gente se aproximou por trabalhar no portal da Salete, eu entendi plenamente a razão de você atrair tanta gente. Eram as conversas sempre agradáveis, com um toque de humor e ironia. Contigo, soube mais da história de Fortaleza nos anos 1960 e de antes também, porque você estudou no finado e tradicional Colégio São João, era filho único de desembargador e neto de um português dono de um casarão na praça da Lagoinha.
Como cinéfilo e amante da literatura, era uma biblioteca ambulante. Uma fonte incessante de saber. Eu gostava de beber do teu conhecimento. Poderia ter me embriagado mais. Pena que o tempo é tão curto.
E das fofocas da high society fortalezense? Essas eram as conversas mais divertidas. As traições, as mentiras, as picuinhas... Demos tantas risadas naquele Del Paseo lembrando dos anos da discoteca.
Aí do outro lado, você estará bem acompanhado, tem o Gilmar, o Oswald, a dona Regina, o Anderson Sandes. De certa forma, pelo menos aí, não terá mais as limitações do seu corpo, que já não estava acompanhando sua energia boa.
Ah, Zé!... Tu já tá fazendo tanta falta... Espero que alguém apareça com uma biografia tua, à altura de tudo que você desbravou e viveu. Daqui desse lado, eu te mando um abraço cheio de saudades e prometo que vou viver o mais intensamente que eu puder. Ravi mandou um beijão pra você, viu. Te amamos!
Agora, é brincar de viver!
Como cronista, vivo atenta. Eu sei que tudo pode render um texto. Sou como aquele que procura por moedas no chão pelo caminho e refaz o trajeto para ver se encontra.
Toda segunda é assim. Eu fico procurando um motivo para escrever cascaviando na memória curta o que ocorreu durante a semana. Nesta, decidi que escreveria sobre as sensações ao ouvir Brincar de Viver, ao vivo, pela segunda vez.
Em abril, a escutei na voz do compositor Guilherme Arantes, no Teatro RioMar. Conversador e em recuperação de uma cirurgia recente, o cantor contou no palco vários bastidores de suas composições. Essa em específico, eu não lembro.
Ao pesquisar na internet, encontrei pouca coisa, mas já algumas coincidências, como o fato de ter sido escrita no ano em que nasci. Foi para um musical infantil que passou na televisão. Essa canção encerrava o programa e foi interpretada por Maria Bethânia. Ao saber da notícia de que ela topou cantar sua música, Guilherme Arantes chorou, emocionado.
No recente show de Caetano e Bethânia na Arena Castelão, essa foi a única música que me fez chorar. Eu, geralmente, saio desidratada de chorar dos shows que vou, seja qual for o artista. Me emociono só de ter a oportunidade de ir, porque essa é uma conquista nova e muito desejada. Toda vez, me sinto um pouquinho mais rebelde e ousada. Um ato tão simples para tantos. Para mim, não.
Desde novinha, a luta era grande. Eu brigava até conseguir que meu pai deixasse. Mais tarde, as brigas deram lugar à apatia, porque eu sabia que não ia adiantar lutar por isso. Eram outros tempos. Passaram.
Chorei ouvindo Bethânia cantar porque prestei atenção na letra e me dei conta de que a diversão na minha vida começou há pouco. Eu ando brincando de viver, mas devido ao pouco costume, eu ainda tendo a ser mais séria. Acho estranha essa liberdade. Sou tal qual um passarinho novo que encontrou a gaiola aberta.
Aprendi que ninguém é o centro do universo, nem eu mesma. A história não tem fim. Consigo sorrir, em meio às lágrimas, quando o mundo me diz não. E ele tem me falado não para muitas coisas nos últimos meses.
Mas eu quero, sim, amar a todos os que eu encontrar pelo caminho. E, se tenho buscado a felicidade tanto e tanto, eu quero ver feliz quem andar comigo. Mesmo que essa felicidade seja para se afastar de mim, para perseguir outros sonhos e outros amores. Não sou gaiola.
Para reaprender a sonhar, enfrento o medo do desconhecido todo tempo. Tem dias que o medo me paralisa e me sinto em uma armadilha. O choro vem e eu me liberto e volto para os afazeres.
Estou redescobrindo meu lugar no mundo, me ajeitando no ninho novo que construí para mim e meus filhos. Tenho tentado fazer um caminho novo. Seguir sempre, mesmo que tenhamos desvios, por conta dos nãos que a vida dá.
Fechei os olhos ao terminar de escrever e eles estavam molhados de novo. A música tem esse poder.
Sobre ser romântico
nos tempos do amor líquido
Uma das frases mais icônicas e compartilhadas do escritor Ariano Suassuna é a que ele assume que se lascou porque era romântico e não sabia não ser isso. Compartilho dessa lamentação do escritor. Se ser romântico já era uma coisa meio esquisita nos anos 2000, quando eu fui solteira a última vez, que dirá agora, Ariano…
Nesses tempos líquidos, o povo só paquera por aplicativo. Encontros quase às cegas, já com coração em brasa de tanta conversa pelo WhatsApp. Mas essas brasas geralmente apagam rápido, mesmo queimando tudo o que puder ser queimado. Tem que ser tudo para ontem. Se os vídeos do TikTok são ligeiros, assim como os reels do Instagram, para quê aguardar? Cuida que a fila precisa andar, meu povo!
No meu caso, os lapsos de memória por conta do cansaço físico e mental retardaram bastante a criação de um perfil nos aplicativos de relacionamento. Fiquei às voltas um tempão tentando lembrar qual era a senha do meu Facebook, do meu email. Nesse tempo, deu logo foi uma crise de ansiedade, porque meu celular já estava nos últimos suspiros e eu imaginava que quando ele morresse de vez, talvez eu perdesse o acesso a todas as minhas redes sociais, porque não lembrava de senha nenhuma. O meu antigo número da Oi também foi desativado e não recebe SMS. E a preguiça de ajeitar tudo isso? O sono chegava de novo e eu deixava para depois.
Impensável paquerar na rua, depois daquela sessão de cinema, no restaurante, na festinha. O povo olha rápido para o outro lado, ou para baixo, no celular. Ninguém se vê. Meus pais se conheceram em uma festinha de criança. Hoje, ninguém tem mais tempo de papear nos eventos. Todos nos seus mundos fechados. Cadê aquele sorriso, aquele brilho no olho diferente, o olhar 43?
Quando finalmente eu me atrevi a criar as contas, a experiência não foi muito satisfatória. Medrosa, eu sempre chamava as pessoas para o Instagram e, na maioria das vezes, eu percebia o descompasso. Ou a conversa morria de vez, ou, então, começava a ganhar outras nuances. As fotos mostravam os gostos pessoais e isso, às vezes, era um balde de água fria. Tanta gente querendo opinar sobre tudo. Outras vezes, era perceptível que a pessoa apenas copiava as mensagens e mandava a mesma coisa para a lista de transmissão dos “contatinhos”.
Se a conversa gerasse um encontro, era raro a conexão se manter depois. Dois encontros eram o limite. Quando eu era adolescente, não imaginava que seria tão diferente o mundo dos relacionamentos entre os adultos na quarta década de vida. Naquela época, parecia ser tudo mais verdadeiro, olho no olho, não tinha essa história enrolada que hoje é comum entre as pessoas de meia-idade. Tenho pelo menos três amigas que tiveram que voltar para a terapia após terminarem com os ficantes. Dizem que a dor de um quase é pior do que a de algo que realmente tenha rendido. Parece que a história não fecha. Vira um relacionamento fantasma.
Outra coisa que percebi foi que a maioria, homens e mulheres, está traumatizada. Tudo bem que um divórcio é um processo doloroso, é o fim de um sonho de uma vida juntos. E nessa altura da vida, aos 40, quem não se juntou e tem filhos, pelo menos viveu um relacionamento longo. Mas será que o amor é algo tão ruim assim?
É, Ariano, eu me lasquei valendo. Tô fora do tempo. Ainda penso em olhar as cores do entardecer, escrever carta, compartilhar playlist, olhar o pôr-do-sol, a lua, as estrelas, o mar. Não me fechei, como eu deveria ter feito.
Eu geralmente penso: vai que ainda existe alguém como eu no mundo…
A esperança às vezes fala um pouco mais alto. Em outras, a vontade é cauterizar esse coração de gente besta e transformar em inspiração e “sangue nos olhos” para escrever livro novo, passar em um concurso público e malhar pesado para ficar mais padrão. Colocar uma pedra no lugar do coração e enterrar de vez essa esperança.
Então, o sono vem, amanhece outro dia e a gente esquece. E, depois, esse buraco no coração lateja de novo. Vou é lembrar dos prazos para os planos que fiz para mim. Focando neles, eu ganho mais.
Sobre esperança e as reformas recentes
do patrimônio histórico
*Ilustração é de autoria do artista visual cearense Vando Figueiredo
Ando esperançosa com as notícias de reformas. Mas, nem sempre fui desse jeito. Durante todo o processo de construção do livro Cidades Invisíveis, toda vez que eu via notícias de que algum lugar histórico seria fechado para reformas, eu já me decepcionava por antecipação. Imaginava que nunca mais veria o prédio em funcionamento. Das duas, uma: ou a reforma não seria concluída ou modificaria o imóvel de uma maneira irreversível, a ponto de deixar tudo desinteressante ou estragado.
No entanto, depois de ver como ficou linda a nova Estação das Artes, com tantos espaços culturais bem aproveitados, eu passei a ter esperança.
Há dez anos, a maior parte de todo aquele complexo era formada por galpões fechados em ruínas, praticamente. Tenho certeza, inclusive, que a maioria dos usuários do transporte ferroviário nem prestava atenção na beleza do prédio. Também, pudera. Ali era só uma estação central, muitas vezes, suja e lotada. Os espaços eram escuros.
Hoje, ao percorrer o Kuya – centro de design, a Estação das Artes, com tantas programações bacanas, o Museu Ferroviário e a Pinacoteca, só tenho muito é orgulho de terem transformado a minha velha estação João Felipe naquela lindeza. Valeu muito a pena.
A mesma impressão eu tenho da Ponte dos Ingleses. Se ocuparem bem os quiosques e tudo permanecer seguro e conservado, temos um mirante ainda melhor que o anterior. Isso porque o piso está mais seguro pra gente passear e põe ser de cimento, vai permanecer assim por muito mais tempo.
Além disso, a escultura La Femme Bateau, de Sérvulo Esmeraldo, lá no fim da parte inconclusa, quando anoitece, fica ainda mais charmosa iluminada.
Então, se anunciaram uma grande reforma para o Farol do Mucuripe, eu já quero começar a comemorar. Porque talvez assim eu possa mostrar aquela vista para os meus filhos.
Com aquela vista linda e uma revitalização, ali poderia ser até mesmo um polo gastronômico. Tem outros lugares do grande Mucuripe que já são, inclusive. Vide o exemplo do morro de Santa Terezinha, que tem uma muqueca de arraia deliciosa, dizem.
O Farol transformado em museu, com um mirante acessível e um polo gastronômico? Será se eu posso sonhar com isso? Ou é uma quimera? O tempo vai dizer.
Eu quero uma casa no campo
Quando criança, sonhava em ter uma casa com um quintal na parte da frente e roseiras. Em São Paulo, geralmente, os jardins tinham rosas, muro baixo e grades. Eu passava no caminho do metrô e ficava olhando, tentando decorar para desenhar e colocar na minha redação da volta das aulas, porque, a cada dois anos, passava as férias naquela cidade.
Por lá, nem na casa em que eu morei, nem nas que fiquei hospedada havia jardins, embora existisse espaço. A área da frente sempre era ampla, com chão de caquinhos, colocados pelo meu avô, mas empoeirada e suja. Nada de plantas. Era tudo sem cor e triste.
Em Caucaia, sempre morei em apartamento. No primeiro, em que vivi por 30 anos, minha mãe tinha algumas plantas na escada, assim como a minha vizinha. Depois que minha mãe foi embora, a vizinha cuidava do nosso pequeno jardim. Eu nunca tinha tempo, nem paciência, porque, desde que me formei, trabalhava em dois empregos. Nos fins de semana de folga, eu dormia o máximo que podia. Na semana, saía bem cedo e pouco olhava para as plantas porque geralmente não floriam. Eram folhagens, como espada-de-São-Jorge/comigo-ninguém-pode.
No meu período de sete anos sem trabalhar fora de casa, eu passei a comprar plantas com flores. Nunca sabia o nome das espécies, mas enchi a janela com elas, esperando as borboletas e os beija-flores. Mesmo com roseiras de várias cores, gérberas e cravos, nunca apareceu nada de insetos bonitos na minha janela. Só mesmo as cores e a alegria que eu cultivava devagarinho. Em vez de me preocupar com o futuro, que, para mim, não parecia existir, eu observava as flores e guardava os novos botões dentro dos livros. Me alegrava com a nova roseira amarela, as flores branquinhas do pé de manjericão. E fotografava meus livros entre elas.
A falta de sol do novo apartamento matou todas as roseiras. Tentei cultivar cactos e eles mofaram. Para compensar, o condomínio tinha um jardim lindo. As borboletas, assim como as mariposas e vários insetos diferentes sempre apareciam para me visitar, mesmo eu não tendo plantas e morando no quarto andar.
Recentemente, eu pedi para a minha mãe algumas mudas para tentar um novo jardim na janela. Todas morreram e eu desisti por um tempo.
Vai ficar para quando eu tiver a minha casa dos sonhos no campo, muito provavelmente, na zona rural de Jijoca de Jericoacoara, terra dos meus parentes do lado paterno. Por lá, talvez eu encontre uma nova profissão, possa cultivar flores de outros tipos, fruteiras para atrair os passarinhos.
Poderia ser pequena, com alpendre e varanda, para armar uma rede. Com poucos móveis, muitos livros, uns artesanatos para deixar tudo com o meu jeitinho. Uma mesa que tenha uma vista para a lagoa ou um dos rios que banham aquele lugar privilegiado. De prioridades, apenas um notebook, um caderno e um jeito de escutar música.
Uma casa no campo, onde eu possa criar minhas histórias e para onde eu possa voltar dos meus passeios, um pouso acolhedor e seguro. Olhando para esse horizonte, eu consigo prosseguir nessa rotina caótica de hoje. Ainda não esqueci do versículo bíblico: Quero trazer à memória aquilo que me dá esperança.
Obra é de autoria do artista plástico autodidata cearense Demeilson Ferreira. Desenhista e pintor, tem obras em vários estados brasileiros e países como França, Portugal, Canadá e Estados Unidos.
A minha estação João Felipe
É entre lágrimas que escrevo essa crônica. Não sei se pela trilha sonora, do concerto número 2 para piano do Sergei Rachmaninoff ou mesmo da dor que eu reavivei por lembrar que minha Estação João Felipe não existe mais. Não com seu uso de antes.
Passei por ela faz uns quinze dias e, cercada de tapumes, ela estava sem o telhado. Senti essa dor fina quando soube que o trem tinha feito sua última viagem até lá, há alguns anos, quando anunciaram que teria outro uso, como um grande equipamento cultural.
Assim como para muitos cearenses, que viriam a ser ilustres ou não, a centenária Estação Ferroviária João Felipe foi minha porta de entrada para Fortaleza. Como já disse aqui, eu sempre morei na Região Metropolitana, no município de Caucaia. Meu destino, por mais de 20 anos, foi a última parada antes do fim da linha na Caucaia, a estação Araturi.
Daria para vir pra Fortaleza de ônibus? Sim. Mas não foi essa a escolha da minha turma de amigos. Acredito que até hoje o trem seja bem mais barato que o ônibus. Nos meus tempos de adolescente, o preço chegava a ser três vezes menor. E assim, numa tarde de não sei qual dia da semana, eu viajei sem meus pais de trem para comprar folhagens para os arranjos florais que eu estava aprendendo a fazer. Fui até a também centenária Cadeia Pública de Fortaleza, onde funciona a Encetur, melhor lugar para encontrar esse tipo de produto. Esse belo lugar também fazia parte das minhas idas ao Cine São Luiz, tempos depois, porque a mãe de um dos integrantes da minha turma de amigos trabalhava lá.
Em 1996, os trens não tinham ar condicionado, obviamente. O projeto do Metrofor só seria anunciado no ano seguinte. Os trens tinham vagões ainda dos anos 1970. Muitas portas não fechavam mais. Outras, sequer existiam, o que facilitava a entrada das temidas pedras, arremessadas por crianças e adolescentes que moravam próximos dos trilhos.
Nessa época, uma legião de pessoas usava o trem para garantir o sustento. Pedintes de todas as idades, vendedores de jujubas, pastilhas, bulins e até de pomadas medicinais dividiam espaço com a multidão de usuários do transporte público, além de pregadores do Evangelho de várias denominações e alguns artistas populares.
Os principais artistas eram dois deficientes visuais, que atuavam separadamente. Uma mulher que tocava flauta. O outro, um homem que cantava, tocava gaita e pandeiro. Ambos estavam sempre atualizados dos sucessos do momento, mas também utilizavam muito o Roberto Carlos no seu repertório. Depois que esse tipo de show foi proibido nos trens, os dois migraram para os ônibus. Os que eu usava, principalmente. E de certa forma ainda fizeram parte do meu cotidiano por vários anos, como se fosse para que eu não me esquecesse disso.
Nos meus tempos de escola, quando estudei no Colégio 7 de Setembro, só usava o trem para o lazer. O ônibus me dava mais conforto porque me deixava na porta e tinha um intervalo menor entre as viagens, o que evitava atrasos. Já na faculdade e, depois, como repórter, o trem foi o meu principal meio de transporte. Meu primeiro estágio era quase vizinho à antiga estação, na Delegacia do Trabalho. Foram talvez mais de dez anos de viagens diárias.
Eu conseguia enxergar a magia diferente que tinha aquela Estação. Para a maioria das pessoas, o desconforto era o ponto principal. Tenho certeza de que a maioria só escolhia o trem por ser mais barato. Quem andou de trem por aqui certamente não se esquece de ser praticamente vomitado pela multidão para dentro do vagão assim que as portas se abriam e nem da corrida em busca de um lugar nos bancos desbotados, seguida de uns sorrisos moleques de alívio, ao finalmente conseguir sentar, para quem era rápido o suficiente, claro.
Entretanto, nas longas esperas de 40 ou 50 minutos de quando eu perdia o trem pra casa, eu me perdia em mim e nas divagações de como aquilo tudo era 50 anos antes ou mesmo em tempos mais antigos. A Estação foi fundada ainda no Império, em 1880. São 140 anos de histórias passadas naqueles assoalhos vermelhos, que devem ter tido outras cores e desenhos, claro.
Embalada pela MPB das tardes da Rádio Tempo, que era transmitida pelos autofalantes da velha estação, eu percebia que estava sim na atualidade. Mas, bastava olhar ao redor para me transportar para os tempos em que a velha estação recebia os trens do interior. A inspiração vinha ligeira em alguns fins de tarde, bastava olhar ao redor, no rumo de casa ou mesmo para os galpões desativados. Quantos encontros e desencontros aquela estação teria presenciado? E despedidas? Foi por lá que milhares retirantes chegavam nos anos de seca para os Campos de Trabalho. Uma tristeza ter lido isso.
Ao iniciar minha trajetória como repórter, uma das minhas primeiras matérias assinadas foi sobre esse trajeto longo, cheio de personagens pitorescos, entre a Vila das Flores, em Maracanaú e Caucaia, com a Estação João Felipe no centro do percurso. Isso faz mais de 15 anos, mas lembro bem de ficar atenta igual a menino pequeno, olhando pela janela para apreciar cada detalhe das paisagens nunca vistas antes para aqueles lados da cidade. Afinal, eu só conhecia do Centro para Caucaia. Nunca tinha ido para o outro extremo da linha. O fotógrafo que me acompanhou, o Tuno Vieira, muito experiente, registrou tudo e chegou, bem enfadado como eu na redação em pleno sábado, depois de uma manhã inteira andando de trem. O trajeto completo demorava mais de duas horas. Imagine o tempo que seria gasto de ônibus, com tantos engarrafamentos pela cidade?
No sacolejar do trem nessa década de uso, me rendeu muitas leituras. Até hoje, não entendo o porquê da velocidade maior da leitura e menos enjoo ao ler nesse ambiente tão barulhento. Só interrompi minhas viagens ferroviárias ao ser finalmente atingida por uma pedrada, nos anos 2000. Os trens já tinham vagões mais novos, a administração era do Metrofor, mas as portas abertas continuavam permitindo esse tipo de acidente. O impacto da pedra foi na minha aliança, que ficou marcada e o meu dedo anelar, ferido. Isso protegeu minha filha mais velha, de dois anos, que viajava comigo. Livramento que até hoje agradeço a Deus.
Depois que a estação mudou para o espaço vizinho ao Cemitério São João Batista, perdi ainda mais o gosto pelo transporte. Desde esse tempo, estou de luto pelo fim da minha estação. Tem uns seis anos que iniciaram essa obra, que transformará o prédio centenário em um importante equipamento cultural, com museu, biblioteca, pinacoteca e muitas outras novidades, se integrando até mesmo com os prédios do Panorama Artesanal, de onde avistei o meu primeiro Pôr-do-Sol no mar, em 1996. Não creio que uma obra tão grandiosa fique pronta tão cedo. A certeza que eu tenho é que a Estação João Felipe virou mais um trecho das cidades invisíveis. Isso porque por mais que a restaurem, nunca mais o trem chegará apitando por lá, nem se descerá por aquelas rampas ou compraremos seus bilhetes. Passou essa era.
*A Estação das Artes foi inaugurada em 30 de março de 2022, quase um ano depois da publicação desse livro.
A beleza do amanhecer
*A gravura em monotipia “Janela ao Espaço” é de autoria do artista plástico autodidata cearense João Paulo José da Silva. Historiador, trabalha com as linguagens artísticas da xilogravura, monotipia, pintura e escultura em madeira. No Instagram, publica no perfil @jp.artesubjetiva
Quantas vezes eu pude contemplar o nascer do Sol? Como foram poucas, consigo lembrar da maioria. Não costumo acordar de madrugada. Quando posso, desperto tarde mesmo. Amo dormir. Então, não é algo costumeiro, mas especial.
Fechando os olhos, eu me recordo da época em que o amanhecer pintava o céu de roxo com vermelho escuro e parecia que o mundo estava se acabando. Eram os tempos do confinamento da pandemia e eu chamava meu caçula para ver aquela belezura comigo. Pena que era só a poluição que mudava as cores.
Mais de uma década antes, eu via o sol nascendo já chegando no bairro Antônio Bezerra, quando o horário de verão era aplicado aqui no Ceará. Isso aconteceu pouquíssimas vezes. Nessa época, aprendi a acordar ainda de noite. Eu era adolescente e só Deus sabe o sacrifício que eu fazia para me manter de pé. Um banho bem gelado era indispensável para isso. No entanto, bastava eu encostar no ombro do meu pai dentro do ônibus da Empresa Vitória indo para a escola, que logo eu dormia de novo.
Em São Paulo, poucos dias depois da virada do milênio, passei uma madrugada inteira conversando com o vizinho da minha prima sobre todo tipo de assunto. Era a véspera de eu voltar pra casa de uma viagem de dois meses. Essa longa conversa, temperada com alguns beijos, mudou tudo o que eu tinha decidido para a volta e atrasou por mais de um ano que eu reatasse com um dos meus amores mais duradouros. Nunca mais soube dessa criatura. Como teria sido a minha vida se em vez de eu conversar com ele, eu tivesse virado a cara? Não tenho ideia.
Com outro, porque eu estranhei a casa diferente, eu vi o sol nascer três vezes. A janela daquele quarto ficava de frente para o sol e não tinha cortina. Tentei dormir de rede e o sol esquentou o meu rosto. Ele acordava antes dos passarinhos e vinha me chamar com um monte de cheiro no cangote para tomar café. Por causa disso, via todas as cores das nuvens, sempre diferentes. Acordava suspirando, cheia de arrepios. O sorriso largo.
Com meus meninos recém-nascidos, o meu cansaço era tão grande que, quando o sol aparecia antes de eles finalmente dormirem, eu não conseguia ter paciência para contemplar nada. Às vezes, a vontade era correr doida. O zumbido no ouvido era um dos sinais mais pesados dessa exaustão.
No entanto, o meu amanhecer mais marcante ainda continua sendo o do dia mais feliz que eu tive até hoje, quando vi o sol nascendo por trás da finada duna do por-do-sol, em Jeri, enquanto a lua se punha no mar.
Quantas auroras eu ainda terei para contemplar? Eu continuo dividida entre acordar cedo e dormir até cansar. Mas vamos com calma. Ainda tenho uma lista de coisas legais para fazer pela primeira vez. Amanhecer de novo de frente para o mar, hospedada ou acampando, é uma delas. E vamos em frente.
O consolo das borboletas
*A arte é de autoria da ilustradora autodidata cearense Luciana Braga. Professora, pesquisadora, escritora e desenhista. Autora e ilustradora do livro Escrita Infinita. Suas páginas no instagram são @luciana_braga7 e @escrita.infinita
Tenho dormido pouco. Comemoro quando consigo adormecer por mais de cinco horas seguidas. A sensação ao abrir os olhos não é de energia, nem de disposição. Parece que fui atropelada por um caminhão. Não, eu não tenho insônia.
Olho o celular ao lado, que me acordou, checo o horário. Sento na cama, olho para o meu filho mais novo que dorme comigo. Tenho 20 minutos para me arrumar e colocar ele para ir para a escola. Amarro o cabelo, chamo o menino. Cada um vai se ajeitando em um quarto.
Começo aquele check-list: escovou os dentes? penteou o cabelo? passou perfume? calçou o sapato? colocou a roupa e o lanche na bolsa?
Olhamos para a janela, as plantas estão murchando. Pena que eu não tenho a mão boa para a jardinagem que nem minha mãe. No apartamento em frente, uma gata siamesa exibe a barriga sedutora no meio das roupas penduradas na grade. A gente se pergunta: será se o gato da vizinha de baixo já notou essa possível namorada?
Saímos correndo, tomamos café no caminho. Ao deixar meu filho mais novo na escola, eu me pergunto se essa escuridão vai ter fim. Parece que estou no meio de uma tempestade de novo. As calmarias são raras.
Me afogo em lágrimas, a raiva me toma. Bebo água na escola em que ele estuda, me acalmo, sigo para a passarela imunda, atravesso a rodovia. Nos fones, Gal Costa me diz que a pele do futuro, cicatrizada, será imune ao corte e à lâmina do tempo. Aguardo isso há meses. Parece que essa ferida não sara. Continuo em carne viva.
Sigo tentando me acalmar enquanto um rio corre pelos meus olhos. Chego no Centro. Mais um ônibus me leva para o destino final. Talvez os passageiros tenham se assustado com meu rosto vermelho e molhado. Lembro dos olhos assustados que cruzaram com os meus enquanto eu atravessava o vão para a porta do transporte.
Desço e noto a mesma borboleta monarca de ontem de manhã que, tranquila, beijava as flores do flamboyant do discreto jardim da repartição. Ela também estava por aqui na tarde de ontem. Outra borboleta dessas atravessou a rodovia comigo outro dia e mais uma descansava na tela da passarela, enquanto eu andava rápido, perdida em pensamentos.
Se eu não tivesse acompanhado a metamorfose de cinco borboletas dessas na minha casa, talvez isso passasse despercebido. Vou interpretar como mais um consolo nesse caminho dolorido dos últimos tempos.
Antes de voarem, elas ficam no casulo escuro por mais de uma semana. Para saírem do casulo, sangram. Então, um dia, isso passa. Tudo é vário, temporário, efêmero, como disse Chico Buarque. Não há dor que dure para sempre.
Os atropelos e descompassos dos namorados
para além do mês de junho
*A xilogravura é de autoria do artista plástico autodidata cearense João Paulo José da Silva. Historiador, trabalha com as linguagens artísticas da xilogravura, monotipia, pintura e escultura em madeira. No Instagram, publica no perfil @jp.artesubjetiva
Junho sempre foi um mês que trouxe muitos eventos. Além das festas juninas, eram dois aniversários para comemorar, o da minha mãe e o do meu irmão. O Dia dos Namorados também era uma espécie de acontecimento dos grandes. Especialmente na adolescência, quando as comparações e os hormônios deixam tudo mais dramático.
Quando eu mudei de escola para uma maior, nesse dia era uma profusão de buquês de flores, chocolates e presentes entregues no horário da aula. Uma vez, tinha até um trio de violinos esperando na porta do colégio. O povo caprichava mesmo para surpreender as namoradas.
Por essa época, eu praticamente só namorei uma pessoa e compartilhávamos a liseira e o fato de não sermos herdeiros. Então, a simplicidade era a nossa marca. Eram cartas manuscritas, poesias, desenhos, flores arrancadas dos jardins dos outros e bijuteiras minimalistas. Eu achava fofo.
Depois, ainda tive uma ida ao cinema escondido, com direito a gazear aula, porque meu pai não me deixava namorar. (Eita, agora ele ficou sabendo…). A árvore na frente da escola era nosso local de encontro, antes da aula. Além do porteiro da escola, todos os motoristas e passageiros dos ônibus que passavam na movimentada Avenida do Imperador, no Centro, no horário do almoço, eram nossas testemunhas. Não sei como não recebi uma advertência e nem meu pai chegou a descobrir.
Aos quinze anos, a curiosidade para saber quando eu iria me casar fez com que eu copiasse as mocinhas de outros tempos e arrancasse um fio de cabelo, pegasse uma aliança emprestada e testasse a simpatia de vidência numa fogueira de São João. Compartilhamos a experiência, eu e a minha melhor amiga.
Era só amarrar o fio de cabelo de uma moça em uma aliança benta e colocar em um copo com dois dedos de água em cima da fogueira de São João. Quantas vezes a aliança batesse na borda eram os anos que faltavam para o casamento.
Arrancamos um fio de cabelo nosso, pedimos a aliança da avó dela emprestada e seguimos para a fogueira. Descobrimos quantos anos faltava e deixamos pra lá. E, para nossa surpresa, tudo saiu conforme São João tinha revelado.
Mais adiante, não no mês de junho, eu levei uma queda e caí na lama por pegar uma carona na bike do namorado até a parada do ônibus. Era domingo e as pessoas saíram das suas casas para ajudar a gente a levantar e perguntar se tínhamos nos machucado. Nunca esqueci essa vergonha.
Outra peculiaridade eram os nossos locais de encontro. Aos poucos, deixaram de capinar o mato ao redor da calçada e, ao atravessar para o abraço cotidiano antes de ir para casa, sempre levava comigo nas barras das calças da farda um monte de carrapichos.
Transcorridos tantos anos, essas lembranças me arrancam alguns sorrisos. Parece que tem coisas que a gente vivencia para poder ter o que contar ou mesmo para rir nos momentos tristes. Eu ainda acredito que o amor continua belo, leve e divertido, não importa quanto tempo passe.
Memórias prévias de um cobrador pensante
ou o primeiro livro que eu ganhei de presente
O ano era 1998. Há dois anos, eu era aluna de um dos cinco colégios que mais aprovava no Vestibular. Era muito sozinha. Na hora do recreio, em vez de papear com os amigos, eu preferia ficar na biblioteca da escola, até porque não podíamos levar os livros do acervo para casa. Eu não tinha ficha em biblioteca nenhuma e os livros da minha casa eram enciclopédias. Ler era uma das minhas poucas diversões.
Sobre Machado de Assis, eu já tinha ouvido falar. Muita gente dizia que era difícil, arrastado. O primeiro livro paradidático daquele ano era dele, Helena. Eu achei super chato, a protagonista insossa. Naquela época, já gostava mais dos naturalistas. Amava o Cortiço, por exemplo. E gostava muito do Paulo Coelho, o queridinho dos meus amigos de outras escolas.
Desde o início do ano, por causa do horário, eu sempre pegava o mesmo ônibus na ida e na volta para a escola. Na ida, no expresso das 6h10, eu passava a viagem dormindo no ombro do meu pai. Na volta, umas 12h30, sempre era a mesma turma esfomeada de adolescentes. Eu, Wellington e Raphael éramos colegas na escola anterior. Estávamos sempre juntos, embora eu estudasse em uma escola e eles dois, em outra. O cobrador fez amizade com a gente. O nome dele era Luís Antônio.
Apesar de trabalhar há muitos anos como cobrador da Empresa Vitória, Luís queria ter feito Letras. No entanto, quando tentou o vestibular a primeira vez, não passou e desistiu. Teve que começar a trabalhar e o sonho ficou esquecido. No entanto, sempre tentava ler em casa e tinha ficha na Biblioteca Pública.
Aos quase 30 anos, amava Machado de Assis e vários outros autores clássicos, como José de Alencar e Eça de Queiroz. O realismo era o seu período preferido na Literatura. Como só eu gostava de ler, ele falava mais desses assuntos comigo.
Comendo uma pipoca de isopor, a gente discutia sobre os livros preferidos, no percurso entre o Centro de Fortaleza e o Araturi, em Caucaia. Eu gostava de A viuvinha e Cinco Minutos, do José de Alencar, que li por conta própria e do Guarani, que a escola mandou ler. Já conhecia Dom Casmurro, que pedi emprestado a um amigo.
Ao falar isso para ele, ele logo falou: já sei o que eu vou te dar de presente de 15 anos! Um livro ainda melhor, que é o meu preferido dele: Memórias Póstumas de Brás Cubas. Você vai gostar muito. Não desanime se você achar alguma coisa difícil nele, apenas continue.
Então, numa noite de sábado, o Luís Antônio me entregou o Memórias Póstumas de Brás Cubas embalado num papel de presente. Foi o primeiro livro que eu ganhei de um amigo. Antes desse, eu tinha recebido uns paradidáticos de uns primos distantes de São Paulo.
A edição simples, talvez de sebo, da Editora Ática, com uma capa nada a ver, trazia estampada um cara morto de barba grande e derretendo em cores. A maioria dos clássicos paradidáticos daquele tempo tinha umas capas bem ruins.
Lembro que, com o meu repertório fraco daquela época, eu precisei reler para entender. Depois de mais de 20 anos, só lembro que das muitas conversas com o leitor, o que é uma característica do autor que eu amo, ironia e a frase que abre o livro.
O Luís Antônio, nunca mais eu vi, embora tenha me acompanhado ainda o Ensino Médio inteiro e o início da faculdade, no mesmo horário de ônibus. Além das conversas sobre Literatura, a gente também falava sobre religião. Eu, muito católica e ele, sem religião definida, sempre questionava minhas crenças. Em alguns dias, eu ficava com raiva. Em outros, ele me colocava para pensar.
O livro, eu devo ter emprestado para alguém e nunca mais voltou. Esse tipo de erro eu aprendi a não cometer mais.
Nesse mês, uma moça americana disse que esse livro do Machado era o melhor já escrito. Isso fez com que a obra disparasse nas vendas em toda a América e também no Brasil. Só tem entrega para meados de junho, eu conferi. Isso me fez recordar que eu tinha prometido reler, que nem fiz com o Dom Casmurro e Helena, dois dos livros mais fantásticos que já reli na vida depois dos 30 anos.
Vou tratar de colocar no meu kindle. Também fiquei curiosa em saber como está o Luís Antônio. Sua casinha na Jurema continua no mesmo lugar. No entanto, nem tem mais cobrador nos ônibus. Tomara que ele esteja bem e ainda goste de ler. Qualquer dia, eu bato no portão dele e agradeço pelo livro de novo.
O Velho Farol do Mucuripe
*Esse texto faz parte do livro Cidades Invisíveis, publicado pela autora em 2021 e que permanece à venda por meio do instagram @eukellygarcia. Ilustração foi feita especialmente para a obra pelo artista plástico cearense Vando Figueiredo.
Qual a serventia de um farol? Não seria para orientar os marinheiros sobre a posição da costa? Eu conheço um que se tornou praticamente invisível depois que se tornou obsoleto, o Farol Velho do Mucuripe, em Fortaleza. Hoje, ele não passa de um monte de ruínas em que dormem muitas lembranças de namorados que aproveitaram a sua vista para fazer juras de amor, acredito eu. Depois de ter sido condenado pela Defesa Civil e ter desmoronado a sua cúpula, a Secretaria de Turismo do Estado prometeu um restauro para breve. Foi feito um escoramento e a comunidade que ali reside também não deverá mais sair dali. Haviam planejado uma desapropriação, mas desistiram, para alegria de quem mora ali, com uma das vistas mais lindas da cidade.
Esses dias, fui pesquisar mais sobre os chamados “olhos do mar”, na visão poética do cantor Ednardo e descobri que temos algo em comum, assim como ocorreu com o navio Mara Hope. Em 1983, quando nasci, ocorreu o seu tombamento histórico. O Farol Velho é a segunda edificação mais antiga da cidade ainda de pé. Perde apenas para a Igreja do Rosário.
Estive por lá em 2012, logo quando comecei a ser repórter de rua pela segunda vez. Sonhava em ver de perto aquele prédio. Mesmo sabendo que estava bem deteriorado, até porque era uma matéria de denúncia. Mesmo sabendo que era extremamente perigoso. Eu sabia que aquela era uma oportunidade única. Talvez nunca mais pisasse naquela área da cidade.
Quando fui lá, fiquei tão impressionada com a estrutura que cheguei em casa ainda matutando. Um prédio de 1846 viu toda aquela região ficar totalmente outra. Possivelmente, fosse só areia e coqueiros ao redor daquele Farol por muito tempo. Na inauguração, era a época ainda do império. Passou boa parte do Segundo Reinado, atravessou muitos mandatos de presidentes e funcionou até 1957, quando foi construído outro, mais moderno, em uma região mais alta.
Em 2017, esse outro deixou de ser usado e construíram um ainda maior. O sexto maior do mundo. Um colosso.
Naquele 2012, eu ainda sonhava que poderia levar meu filho para se admirar com aquela vista e aquela arquitetura. Cheguei toda empolgada pra mostrar uma foto e ele desenhou um parecido. Tinha só 4 anos. O desenho deixei no meu Facebook.
Cá estou eu, muitos anos depois sem nenhuma esperança de ver de novo o farol velho. Naquele tempo, ainda não existiam as facções e tivemos que ir com a polícia. Há alguns anos, ele perdeu a cúpula e algumas partes desmoronaram, por conta da ação do tempo. Implacável. O afeto que a população do Titanzinho tem por aquele lugar fez com que guardassem o que o tempo tombou, assim como as lembranças de antigas brincadeiras, de amores e segredos.
Para mim, virou cidade invisível. Ainda bem que há fotos. Pinturas. E que pude guardar, aqui dentro, sua vista.
Mais um casarão
que irá ruir
A ilustração é de autoria do artista plástico autodidata cearense Raony Rodrigues Bernardo. Arquiteto e Urbanista, aquarelista, integrante do grupo Urban Sketchers Fortaleza, amante da vida e de tudo o que a ponta do seu lápis consegue desenhar. Suas páginas no instagram são @raony_rb e @bernardoatelie
Quando eu lancei o financiamento coletivo do livro Cidades Invisíveis, há pouco mais de três anos, eu intuía que Fortaleza poderia ter mais perdas em seu patrimônio histórico entre eu concluir o livro e ele ser publicado. Aqui, não se valoriza a história. Fato. No entanto, não imaginava que teria tanto a ser atualizado, inclusive com os locais que eu falei nas crônicas.
Estamos na terceira tiragem e o Mara Hope teve um pedaço afundado, o Edifício São Pedro está em plena demolição. A Ponte Velha quase foi botada abaixo e caiu uma pedra dela em cima da cabeça de um motoqueiro que quase o matou.
Do Farol Velho do Mucuripe, caiu a parte de cima e os vizinhos levaram pra casa para guardar melhor o pedaço do patrimônio histórico. A Ponte dos Ingleses nem sinal de conclusão da reforma. Já tem sete anos que teve início.
Esses locais estão no meu livro. Mas tem outros que não entraram e eu poderia fazer outra edição contando deles. O Casarão das Pianistas Gondim, na rua General Sampaio, edificação dos anos 1920, mesmo em processo de tombamento, foi demolido e virou terreno para ampliar o estacionamento que já existia.
O bangalô dos Jereissati sumiu e no seu lugar está sendo construído o maior prédio de Fortaleza, onde os carros poderão subir de elevador, que luxo! Eu acho muito é brega, vou nem mentir… Isso até que outro mais alto se erga, porque agora é só pagar uma taxa que em Fortaleza se pode construir do tamanho que quiser.
Tem locais que permanecem fechados e sem uso, sabe-se lá até quando. A Associação dos Merceeiros, o Hotel Excelsior, o antigo restaurante L’Escale. O sobrado que abrigava o Chopp do Bixiga, pertinho do Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura, foi fechado de tijolos e deve ser derrubado em breve. Será que os vizinhos também? Nas ruas do entorno, outros sobrados também seguem desocupados. Muitos edifícios novos estão sendo construídos. Dá para ter vista pro mar. Quantos resistirão nos próximos dez anos nessa região da Praia de Iracema?
Anunciaram que não dá mais para restaurar o Casarão da Santa Casa, na praça do Liceu. Um dos primeiros bangalôs construídos por Emilio Hinko. Está escorado, com tapumes. Várias plantas nasceram nas brechas. Ali, com seu design hoje ultrapassado, ideia do arquiteto que mais modificou a capital cearense, resiste há quase cem anos. Ninguém sabe quando foi construído. Talvez nos anos 1930, que o Hinko chegou em Fortaleza em 1929. Dizem que foi uma das primeiras obras assinadas por ele.
Quantas famílias moraram ali? Quantos casos de amor e desamor se desenrolaram no tempo que o Bar do Fabiano ocupava o térreo? E as amizades dos tempos da escola, as fugas do Liceu, os copos de bebida. Quantos adolescentes terão tomado seus primeiros goles escondidos ali naquele lugar? Será que alguém se agarrou no andar de cima? Terá funcionado alguma pensão alegre? Mas se era da Santa Casa, devia ser lugar de família… Porém, alguém deve ter beijado na boca dentro e fora daquele bar. Suas paredes devem ter algumas boas histórias a serem contadas.
Como ninguém que tenha poder suficiente se importa com patrimônio histórico, logo, logo, vira poeira e entulho. E em seu lugar nascerá, muito provavelmente, algum prédio de apartamentos. Quadrado, sem nada demais. Aquela área nem é tão valorizada. Foi-se o tempo da Jacarecanga e não é de hoje. Fica só a dor e a lembrança de quem gostava daquele lugar.