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Vó Francisca

Casa de vó é um lugar mágico, seja pela personalidade da dona da casa ou mesmo pelas invenções dos netos. É um lugar tão incrível que geralmente não sai da memória da gente depois que o lugar físico deixa de existir, como ocorre para muitas famílias que optam por vender os imóveis e dividir o dinheiro da herança.

Minha avó materna, Francisca, Lavorato de solteira e Garcia de casada, morava em São Paulo e me mimava muito. Eu era a única neta, tinha muitos privilégios.

Como eu morei vizinho à sua casa até quase completar seis anos, lembro de pedir à minha mãe ou ao meu tio para me passarem por cima do muro baixo para que eu pudesse compartilhar da solidão da minha avó.

Ela ficou viúva pouco tempo depois de eu nascer e morava com meu tio. Não era de ter amizade com ninguém, saía de casa apenas para comprar frutas e legumes na feira ali pertinho, não ia nem á igreja. Vivia reclusa, falava sozinha e travava uns diálogos que deviam ser bem engraçados porque ela ria alto nessas conversas, assim como também fazia suas orações incompreensíveis alternando com essas conversas solitárias. Nem de televisão e rádio, ela gostava.

Então, quando eu ia para casa dela era aquela festa. O prato que eu mais gostava eram suas batatinhas fritas, que ela cortava em rodelas e fritava no óleo. Às vezes, queimava um pouco nas bordas, mas ainda assim era bom. Posso sentir o gosto agora mesmo, ainda que tenha passado mais de 30 anos desse tempo. Ela acompanhava essas batatinhas apenas com arroz e feijão. Tudo tão simples. E era tão perfeito.

A vó Chica também mantinha suas tradições de neta de italianos, com as macarronadas aos domingos. A família pequena era composta por ela, os dois filhos e eu. Meu pai preferia ficar em casa, estudando nos seus cursos do Instituto Universal ou fazendo outras coisas. Meu irmão ainda não tinha nascido.

O molho grosso era à bolonhesa, com muito pimentão e cebola. Saboroso como nunca aprendi a fazer, embora faça outros molhos para macarrão com as receitas que aprendi na internet. Já as massa eram algumas que nem vejo muito por aqui: farfalle, búzio, capeleti. Normalmente, compro penne. Por causa desse tempo, custei a aprender a gostar do macarrão cearense sem molho, que aqui é servido refogado na manteiga, junto com o arroz e feijão de todo dia.

Para mim, sua única neta, ela gostava de conversar sobre suas lembranças do tempo de moça. Casou tarde, aos 35, em um tempo que, em geral, as mulheres se casavam antes dos 25. Trabalhou muito, de florista, em fabrica e até na empresa aérea Vasp. A essa altura da vida nem esperava mais se casar. Achava que ficaria mesmo pra titia, até que um espanhol bonito dos olhos verdes lhe foi apresentado por uma das suas amigas da fábrica. Meu vô, Pedro Luiz, também era experiente como ela, além de muito trabalhador. Não resistiu aos seus encantos.

Do Carnaval e das eleições de Jânio Quadros e Getúlio Vargas, ela também sempre falava. Por ela, conheci algumas marchinhas de Carnaval. A sua preferida era a que tinha seu apelido, a Chiquita Bacana. Comigo, ela dançava, abria as velhas caixas de fotos, os álbuns e treinava a tabuada, que era o seu termômetro de memória.

A casa dela era diferente das outras. Os móveis, todos antigos, a velha TV Telefunkel de duas portas e muitos botões, que não funcionava, mas permanecia como enfeite. Na lavanderia, uma grande e pesada máquina de lavar Brastemp, também sem funcionar, o telefone azul de discar rodando…

Depois de minha ida definitiva para o Ceará, minha avó ficou muito abalada. Seu coração enfraqueceu e ela implantou um marca-passo. Anos depois, levou uma queda que a fez temer sair de novo de casa. Ficou mais esquecida das coisas simples. Ao retornar para sua casa, para visitá-la dois anos depois, já a achei diferente. E, de dois em dois anos, eu vi minha avó Chica cada vez mais se distanciando da realidade e se aproximando do mundo dos sonhos e lembranças bagunçadas. Até que perdemos totalmente o contato por longos 16 anos.

Eu nunca esqueci suas batatinhas fritas e suas canções e, já mãe, bati o pé que queria rever minha avó e apresentar sua bisneta. Consegui o novo endereço e bati lá sem avisar. Foi um encontro emocionante e dali a alguns dias, festejamos todos juntos, eu, minha mãe, minha filha e meu irmão, junto ao meu tio e sua esposa, esse reatar dos laços, em 2011.

Minha vó Chica, aos 84 anos, estava definitivamente no seu mundo particular. Embora estivesse viva, não se recordava de mais ninguém.

Todas as mulheres que avistava, para ela se chamavam Luzia, uma antiga vizinha de quem ela nunca gostou e todos os homens eram Edison, que é o nome do meu tio, que cuidou tão bem dela até a sua partida.

Suas conversas se alternavam entre as lembranças de criança e sempre fugia dos seus irmãos mais velhos, todos já mortos, de quem ela tinha medo de apanhar por alguma travessura. E, claro, ela não reconheceu nem a mim, meu irmão ou minha mãe, passados tantos anos. Nesse dia de julho de 2011, ao me despedir, tentei ver se ela ainda lembrava de sua canção preferida, a marchinha da Chiquita Bacana.

Comecei os versinhos que eu lembrava: “Chiquita Bacana/ Lá da Martinica/ Se veste com uma casca de banana nanica… Ela então, de pronto, completou o restante com sua vozinha rouca: “Não usa vestido/ Não usa calção/ Se veste com a roupa do seu coração”…

E com essa bela lembrança, eu voltei pra casa no Ceará. Menos de um mês depois dessa visita, ela partiu definitivamente pra junto dos seus irmãos mais velhos e do meu avô Luiz. Fiquei com esse presente lindo da despedida, para o resto da vida, que mareja os olhos e aquece o coração. Te amo, vó Chiquinha!

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Por minha vasta convivência profissional durante anos com a sociedade de Fortaleza, aprendi a captar notícias em suas mais preciosas e seguras fontes. Por perceber que no contato com esses registros sociais estava a fonte de minha vocação, resolvi criar meu próprio espaço na mídia virtual, reunindo uma equipe capaz e competente.

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