A terça-feira (25) marcou um daqueles momentos que ficam gravados na memória política do país: o início do cumprimento de pena pelo ex-presidente Jair Bolsonaro e pelo chamado “núcleo crucial” da trama golpista. Em meio à repercussão intensa e às leituras jurídicas sobre o caso, uma possibilidade menos barulhenta, porém profundamente simbólica, ganha destaque, o uso da literatura como instrumento de remição de pena. É a lembrança de que, mesmo quando o país atravessa tensões profundas, a palavra escrita segue capaz de abrir caminhos inesperados.
Para ter acesso ao benefício, Bolsonaro e outros condenados precisam solicitar autorização do ministro Alexandre de Moraes, relator do processo no Supremo Tribunal Federal. A medida não é inédita: ainda em setembro, o ministro permitiu que o ex-deputado Daniel Silveira tivesse 113 dias de pena abatidos por meio da leitura, do estudo e do trabalho, reforçando o entendimento de que o aprendizado e a reflexão também fazem parte do processo de responsabilização.
Entre os livros autorizados, três obras surgem com destaque, cada uma à sua maneira, carregada de simbolismo e potência transformadora. “Ainda estou aqui”, de Marcelo Rubens Paiva, revisita memórias íntimas marcadas pela violência política da ditadura militar e alcança camadas profundas de dor, pertencimento e resistência. “Democracia”, de Philip Bunting, é um convite acessível e sensível à compreensão da vida pública, abordando cidadania, informação e participação desde os primeiros anos da formação humana. E “Crime e castigo”, de Fiódor Dostoiévski, mergulha nas sombras da consciência e explora o peso moral de quem se coloca acima das leis, um clássico que atravessa gerações justamente por iluminar conflitos éticos universais.
Para que valham na remição, as obras precisam constar na lista oficial elaborada pela Secretaria de Educação do Distrito Federal, em uma curadoria que reúne livros sobre democracia, direitos humanos, ditadura, preconceito, racismo, distopias e temas que convidam à reflexão sobre o poder, a responsabilidade e as consequências das escolhas. Entre eles estão títulos marcantes de Conceição Evaristo, George Orwell, Harper Lee, Alice Walker, Ailton Krenak, Margaret Atwood, Ignácio de Loyola Brandão, Tolstói e Chimamanda Ngozi Adichie. É uma seleção que abraça diferentes vivências e vozes, construída para provocar questionamentos e ampliar repertórios, nunca para reforçar discursos de ódio ou discriminação, que são vetados pela política de remição.
A leitura, nesse contexto, não se resume ao ato de virar páginas. Ela representa uma oportunidade singular de contato com histórias que ecoam no debate público e atravessam o entendimento sobre democracia, liberdade, responsabilidade e humanidade. Dentro das unidades prisionais do Distrito Federal, clubes de leitura também podem ser criados mediante autorização judicial, sugerindo novas obras com potencial de reduzir dias de pena e estimulando a construção de espaços coletivos de debate.
Mais do que um mecanismo legal, a possibilidade de remição pela leitura é um lembrete sensível de que os livros carregam uma força que permanece intacta, capaz de transformar, desconstruir, provocar e ensinar. Em uma data que recoloca o país diante de sua própria história e de seus desafios institucionais, a literatura surge como ponte silenciosa entre passado, presente e futuro. Um convite à introspecção, ao diálogo e à compreensão, mesmo nos momentos em que a justiça precisa se fazer firme. A palavra, afinal, tem o poder de abrir caminhos onde antes só havia muros.
